segunda-feira, julho 23, 2012

Lágrimas de esguicho - MARCELO DE PAIVA ABREU


O Estado de S.Paulo - 23/07


A história do futebol brasileiro registra o caso de famoso jogador do Bangu que, apesar de nunca ter jogado em seleção, tinha talento: Décio Esteves. Não era exatamente um craque, mas ótimo jogador, que tinha como peculiaridade poder "jogar nas onze". Atuava nas mais diversas posições sem fazer feio. Sua versatilidade virou piada boba: "Décio Esteves, Estavas, Estarias...". Não há registro de muitos polivalentes Décios Esteves na história do futebol. Porque também no futebol se aplica o princípio smithiano da divisão do trabalho para maximizar o resultado.

Nos regimes presidencialistas, a expectativa é de que o presidente concentre poder decisório e conduza negociações políticas que viabilizem o seu governo. Isso com base em informações providas pelos seus ministros aptos a gerar recomendações em sua área de atuação. Idealmente o presidente decidiria sempre com base na avaliação de alternativas, levando em conta argumentos políticos e "técnicos".

Não é o que se vê hoje no Brasil. A presidente Dilma Rousseff pretende exercer bem mais do que a sua prerrogativa presidencial quanto ao poder decisório de última instância. De forma sistemática, tem interferido de tal forma na formulação de políticas em nível ministerial que não se beneficia da contribuição que poderia ser aportada pelo conhecimento especializado dos diferentes segmentos da máquina pública. É propensa a certezas, nem sempre providas da fundamentação adequada. E seu estilo abrasivo - para ser comedido na adjetivação - já é conhecido além das fronteiras.

Essas tendências centralizadoras, que têm tido como consequência a deterioração da qualidade do processo decisório público, podem ser detectadas em relação a diversos setores.

Na política econômica, a interferência presidencial tem resultado em unanimidade medíocre, com a adoção de uma colcha de retalhos de medidas discricionárias que beneficiam setores específicos. É difícil perceber qual é exatamente a política do governo e quais são os setores efetivamente prioritários. Em paralelo, em meio a grande desconfiança quanto a disciplinas comerciais multilaterais, têm prosperado medidas tributárias discriminatórias de importações. O Brasil tem sobrevivido a sanções internacionais porque concentrou tais medidas em setores oligopolizados que são comensais costumeiros na distribuição de favores governamentais ou capazes de negociar compensações adequadas.

No quadro dos investimentos em infraestrutura o que se vê lança sérias dúvidas quanto à reputação de perícia gerencial da presidente, alegadamente consolidada no governo anterior. De fato, a fama de "gerentona" teria sido crucial para explicar o "dedazo" de Lula na sua sucessão. O que se constata, entretanto, em meio ao notório "mar de lama", é a lamentável incapacidade de o governo cumprir as suas metas de investimento público. O que aconteceu com os supostos méritos gerencias da presidente?

Talvez seja em relação à política externa que a centralização rousseffiana tenha causado danos mais explícitos. A mudança de posição em relação aos direitos humanos no Irã foi, agora se sabe, uma finta inicial que despertou esperanças quanto à correção de curso em relação aos excessos da diplomacia lulista. O episódio paraguaio desfez essa impressão, em especial pelo açodamento para admitir a Venezuela na "janela" criada pela suspensão do Paraguai como membro do Mercosul. O registro de que o rolo compressor presidencial prevaleceu sobre a cautela do Itamaraty preserva, de certo modo, o profissionalismo da diplomacia brasileira, embora não contribua para exaltar a rigidez de princípios por que se pauta, ou deveria pautar-se.

A melhor interpretação seria a de que o chanceler estaria empenhado em extrair o melhor resultado possível de situação muito desfavorável, "the best of a bad job", ante a impetuosidade e a truculência presidenciais. Tais esperanças ficam muito atenuadas quando se lê espantoso artigo firmado por diplomata graduado, assessor da presidente e irmão do chanceler, que faria corar o mais entusiasmado defensor da diplomacia amorinista. Certamente faria Nelson Rodrigues chorar "lágrimas de esguicho". A traços francamente paranoicos - "a mania de diminuir o Brasil só pode ser medo de um país grande dar certo" - junta-se a indefectível denúncia do complexo de vira-latas que ditaria o alinhamento de nossa diplomacia "menos arrojada de antanho". Se metáfora canina é válida, pode-se perguntar como qualquer Kennel Clube classificaria o Irã ou a Venezuela. Houve até audácia para inepta incursão econômica com denúncia de pretenso conflito entre os que ainda preferem reduzir tarifas a reduzir pobreza. Como se a redução de tarifas não pudesse reduzir pobreza. Tudo em meio à louvação dos diplomatas brasileiros - que certamente não necessitam de elogios tão canhestros e autorreferidos - e a arroubos patrióticos (em mais de um sentido).

Para "jogar nas onze" é preciso ter talento, como tinha Décio Esteves. A presidente melhor faria se desse ouvidos a assessores e ministros capazes de lhe apresentar alternativas de ação, em vez de se deixar levar pela impetuosidade e por ideias preconcebidas.

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