sexta-feira, junho 29, 2012

Muito além de uma Miami 2.0 - BARBARA GANCIA

FOLHA DE SP - 29/06


A vacuidade da Rodeo Drive se confunde com o Truman Show oferecido em Mônaco ou no Cidade Jardim


QUEM MANDOU ser carente e conversadeira?­ Agora aguente, sorrindo, as três horas de aluguel que o funcionário aposentado do Depar­tamento de Águas de Los Angeles está lhe aplicando na viagem entre a Cidade do México e seu destino final. Juro que tento demonstrar interesse no relato das férias que ele passou em Cancún a fim de aplacar a dor da perda da mulher, Consuelo, falecida há dois anos.

Mas, meu Deus, onde andará o personagem de Roman Polanski em "Chinatown"? Meu compa­nheiro de voo não trabalhou a vida inteira no departamento de águas? Pois então.

A esta altura, em vez de picotar-me o nariz, queria mais é que a célebre ponta que o diretor fez em seu filme me furasse os tím­panos com seu canivete esperto. Consigo dizer adeus na fila da imi­gração. Mr. Jackass dá-me um san­tinho com uma foto über photos­hopada de Consuelo e aconselha: "A esta hora, evite a 405 para chegar a Santa Mônica" e toma a fila que diz: "Bem-vindos ao lar". Eu sou obrigada a me aviar para outra bem mais demorada, a dos estrangeiros, que sempre me deixa tão aflita quanto vestiário de academia. Não é o Dick Cheney ali, atrás daquele coluna?

Em um "flash" estou em uma "freeway" de Los Angeles na hora do "rush" ao volante de um "Dod­ge". Tudo indica que vai ser o "dog" assobiando o "Star-Spangled Ban­ner" e chupando "mango".

A cidade foi inteirinha planejada para o automóvel, há pouca ênfase em transporte público, ninguém usa o metrô, táxi quase inexiste e ônibus raramente se vê passar. O "smog" (poluição) de Los Ange­les é conhecido, como também são famosos os efeitos no espírito desse implacável planejamento urbano.

Los Angeles é uma caricatura de papelão, um set de cinema ou TV, uma cidade de anjos desalmados. Woody Allen adora cair matando, é esporte mundial execrar a falta de profundidade dos angelenos. Steve Martin conseguiu extrair alguma aspartame da platitude local em "L.A. Story" e David Lynch meio que per­deu o pé no noir "Mulholland Dri­ve". A estrada homônima é tão inóspita quanto as vias pouco ilu­minadas de São Paulo e o nome presta ho­menagem ao engenheiro William Mulholland, que inspirou (vaga­mente) o personagem Noah Cross (John Huston), o magnata brutal de "Chinatown".

Falo de Los Angeles, mas interes­sa-me mesmo São Paulo. Já tinha visitado LA outra vez, há muitos anos, e desta achei menos grotesca. Talvez São Paulo tenha piorado em ter­mos de convívio e tornado tudo mais brando. E a vacuidade da Ro­deo Drive hoje se confunde com o Truman Show que é oferecido em qualquer Mônaco, Bond Street, Palm Beach ou Cidade Jardim.

A verdade é que o trânsito na hora do rush flui, ninguém deixa de che­gar na hora, não se veem motoboys estirados no chão ensanguentados e há estacionamento de graça em todo canto. LA funciona.

Pode-se comer fora por preços decentes, circular em público sem so­frer violência e ninguém vai levar seu filho enquanto você estiver na igreja. E a cidade é bem menos acé­fala que Miami. Há cinemas e museus incríveis, livrarias de so­nho, lojas de CDs e DVDs como an­tigamente e parques vistosos.

E eu não sei se, de uma hora para a outra, o angeleno vai entrar em guerra contra quem dirige carro e passar a andar de bicicleta descontroladamente em cima da calçada gritando contra motoristas que pagam seus impostos. Por enquanto, a cidade, criada sob o veio da corrupção e que tinha tudo para ser um inferno, parece um paraíso para quem acaba de chegar de São Paulo.

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