sexta-feira, maio 04, 2012
O esgoto e a CPI - MARIA CRISTINA FERNANDES
Valor Econômico - 04/05/12
Ao cidadão perdido em meio às denúncias da CPI do Cachoeira, um dado, divulgado esta semana pelo Instituto Trata Brasil, basta para se entender como a traficância de interesses privados no Estado afeta sua vida.
A ONG, dedicada a levantamentos sobre o avanço do saneamento do país, lista a situação da rede de esgoto das 81 cidades brasileiras com população acima de 300 mil habitantes. Conclui que mais da metade da população brasileira não tem acesso a saneamento e que o PAC só conseguiu entregar até agora 7% das obras direcionadas para o setor.
Lá estão relacionados os 10 municípios com as piores redes de esgoto. As digitais deixadas por esta lista são todas de interesse público. Quatro desses 10 municípios estão na Baixada Fluminense: Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João do Meriti e Belford Roxo. À exceção deste último, com 1% de esgoto tratado, os demais não têm uma única manilha pública.
Os quatro municípios estão sob jurisdição da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio, a Cedae. No Rio, a empresa é a principal contratante da Delta, cuja sociedade com o bicheiro Carlos Cachoeira no submundo dos contratos públicos tem sido objeto de vazamentos diários de investigações da Polícia Federal.
O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), pré-candidato a prefeito do Rio, fuçou no Siafem, o sistema nacional que monitora contratos de Estados e municípios. Num deles, achou o valor de R$ 214 milhões pago para "apoio, reparo, complementos e manutenção de ramais, ligações prediais, redes e elevatórias nos sistemas de abastecimento de água e esgoto sanitário, inclusive de reposição de pavimento nas áreas dos municípios da Baixada Fluminense". Talvez não seja muito perguntar onde foi parar esse dinheiro se o miolo da Baixada não tem saneamento.
Por meses a fio, Comissões Parlamentares de Inquérito produzem manchetes de jornal, horas nobres na TV e, agora mais do que nunca, avalanche de vazamentos na internet. Destroem reputações e constroem outras enquanto poupam a maioria delas. Ao final dos calhamaços aprovados, suas principais lideranças posam de vestais da moralidade. E, em meio à apatia contida dos poucos brasileiros que se dão ao trabalho de acompanhar as investigações, exorciza-se a revolta generalizada contra a corrupção. Mas se a CPI for incapaz de mobilizar o eleitor da Baixada Fluminense contra a cloaca a céu aberto, de pouco terá adiantado o circo.
Essa mobilização se inviabiliza se o eleitor não souber o que faz a empresa de saneamento, paga com o dinheiro de suas tarifas, no seu quintal. Desde janeiro do ano passado ficou mais difícil acompanhá-la. A Cedae informa que deixou o Siafem naquela data porque se prepara para abrir capital. A empresa alega que a publicação de balanços na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a desobrigaria a abrir seus contratos no sistema público de informações. O argumento é que a transparência desses contratos poderia prejudicar sua competitividade no mercado.
Sua retirada do Siafem estaria respaldada ainda pelo fato de a empresa ter-se tornado "independente" do governo. Ou seja, é capaz de gerar receita própria para se manter, não dependendo mais do orçamento estadual.
A posição da Cedae pode ter respaldo jurídico, mas abre um mar de problemas que nem uma CPI por dia seria capaz de resolver. O governo está prestes a regulamentar a Lei de Acesso à Informação que só terá validade federal mas deverá ser seguida por congêneres estaduais e municipais. Há uma forte pressão para que as empresas públicas não se submetam inteiramente às regras da lei.
Se é verdade que essas empresas públicas, cada vez mais fortes na era Dilma Rousseff, precisam preservar sua competitividade no mercado, deve haver outra maneira de fazê-lo sem confrontar a transparência. De que adianta ter aprovado uma Lei da Ficha Limpa para evitar que bandidos disputem votos se aqueles encastelados na máquina pública poderão continuar agindo sob o véu da "governança corporativa"?
A lógica que parece estar embutida nesse raciocínio é que a competitividade "limpa" o mercado e a transparência só é necessária para o reino sujo e corrupto da política. Isso apesar de o mundo estar sendo sacudido há anos por uma crise de mercados financeiros ultracompetitivos.
A Cedae tem balanço publicado na CVM - com ressalvas atípicas -, mas graças à sua presença no Siafem até o ano passado e ao blog do Garotinho, é possível saber que o empresário cujo casamento é marcado pelo governador do Estado num restaurante de luxo na França tem contratos com uma empresa pública que ultrapassam R$ 600 milhões.
Os blogs continuarão no ar, mas a cidadania perde se a regulamentação da Lei de Acesso à Informação tergiversar as empresas públicas.
A praia das CPIs sempre foi a vida dos despachantes de luxo em que se transformam muitos dos políticos no exercício de seus mandatos. Se as empresas públicas forem desobrigadas a abrir seus contratos ficará cada vez mais difícil identificar os interesses privados a que servem os despachantes eleitos.
A coragem da presidente Dilma Rousseff de assumir a batalha pela mudança no indexador da poupança é parte de um diagnóstico acurado sobre a posição do Brasil no mundo sacudido pela crise financeira. A presidente conduz-se determinada em sua investida pela redução de juros. E replica o mesmo zelo em sua imagem de intransigência com a corrupção.
As empresas públicas têm um papel relevante no papel que o Brasil pretende desempenhar, mas deixá-las a salvo da crescente demanda pública por transparência é querer crescer enxugando gelo.
Ninguém tira do governador Sérgio Cabral o feito de ter sinalizado um norte para o combate à criminalidade no Rio de Janeiro. Para isso, deu carta branca para seu secretário de segurança enfrentar a corrupção policial. Mas a política de segurança pública do Rio corre o risco de se transformar numa bússola desgovernada se a autoridade para cobrar correção se esgotar em José Mariano Beltrame.
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