segunda-feira, maio 21, 2012

Fora de controle - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA

Se a presidente Dilma Rousseff estiver interessada em resolver muita coisa que faz o governo brasileiro ser tão ruim, uma boa ideia pode ser encontrada bem perto do seu local de trabalho, em Brasília mesmo, na Quadra 03, Bloco O, do Setor de Autarquias Sul. É onde funciona a Receita Federal brasileira, e a presidente ganharia de graça, ali, uma grande lição. Bastaria perguntar como foi resolvida uma questão fundamental para a própria Receita, e para o interesse público - o recebimento, a cada ano, das declarações do imposto de renda. Se repetisse em metade do seu governo o que a Receita faz com tanta competência nessa operação, a presidente talvez entrasse para a história do Brasil como uma heroína - a Santa Guerreira que venceu o Dragão da Maldade. É esse bicho que comanda a inépcia, a preguiça e a burrice da burocracia nacional.

A Receita Federal acaba de receber mais de 25 milhões de declarações de renda - quase tudo pela internet, sem que ninguém precise sair de casa, falar com um único funcionário ou fazer fila. Não há papel de espécie alguma. O contribuinte não tem de preencher formulários ou enviar qualquer documento - nem comprovantes da renda que recebeu, nem recibos das despesas que teve. A Receita não lhe manda protocolos ou certidões; fica tudo registrado no computador. O cidadão não precisa assinar nada - e se não precisa assinar também não tem de reconhecer firma. O que vale é a sua assinatura eletrônica, que o identifica como autor da declaração. Ao fim das contas, o Fisco ganha porque consegue receber; a população ganha porque consegue declarar. É um espetáculo de classe mundial. E, também, uma prova indiscutível de que pode haver eficácia na máquina pública.

Por que, num governo que funciona o mal, há um serviço que funciona tão bem? É comum ouvir-se que a tecnologia fez tudo. É um equívoco. O que realmente ganhou essa parada foram as ideias inteligentes, e não a eletrônica. A primeira delas foi perceber que o verdadeiro inimigo era a burocracia da idade da pedra que envenena o poder público no Brasil; se tivesse de se conformar com as suas regras, a Receita não conseguiria, fisicamente, manter vivo o imposto de renda. Adotou, então, um princípio brilhante: mandar para o diabo as normas idiotas, caprichosas e inúteis que ameaçavam a execução de uma das suas principais tarefas e recomeçar do zero com um sistema destinado, acima de tudo, a resolver o problema que tinha de ser resolvido. A segunda atitude foi decidir que o contribuinte, em sua declaração, não tem de provar nada. Ele é, simplesmente, o responsável pelo que declara; depois, se houver problemas, tem de comprovar o que afirmou. É o contrário, exatamente, da postura sagrada da administração pública brasileira.

É pouco comum que se aponte algum mérito num órgão do governo - especialmente nesse, a Receita Federal. Com a possível exceção de Jesus Cristo, que ficou a favor do publicano desprezado por todos, jamais alguém gostou de um coletor de impostos ao longo da história humana. Tudo bem - mas o fato é que, com as declarações de renda, a Receita tem feito um trabalho impecável. Daria para imaginar algo parecido no resto do governo?

Os sinais não são nada bons. A presidente Di1ma não gosta dessa conversa; já chamou de "cegos" os que propõem simplificar o governo. Acha, ao contrário, que o importante é ter mais "controles". Recentemente, ainda, falava-se em Brasília sobre uma "reforma gerencial" pela qual seria possível controlar a cada quinze minutos quantas pessoas pegaram senha nos postos do INSS, obrigar os ministros a apresentar relatórios semestrais de resultados ou enviar direto para a sala da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, e durante as 24 horas do dia, imagens do que está acontecendo nos aeroportos - embora não esteja claro o que a ministra Gleisi pode fazer com tanta imagem assim. Enquanto isso, segundo reportagem recente de O Estado de S. Paulo, o poder público escreve mais de 2 milhões de palavras a cada dia útil, na forma de leis, regulamentos, decretos e por aí afora. Um livro que reunisse só a legislação tributária atual pesaria mais de 7 toneladas. Ou seja, o que está acontecendo, mesmo, é uma situação que fugiu a qualquer tipo de controle - o exato oposto do que quer a presidente. É o estouro de uma manada de mamutes. Mas Dilma, ao contrário da Receita, acha que reduzir a quantidade de mamutes é uma ideia falida. Vai acordar amanhã, como todos nós, com mais 2 milhões de palavras na cabeça.

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