terça-feira, abril 03, 2012

Riscos vividos - MIRIAM LEITÃO


O GLOBO - 03/04/12


Começa a haver desabastecimento na Argentina, a inflação é crescente, apesar de manipulada, e o governo quer controlar a imprensa. Mas, 30 anos depois, a Argentina em nada lembra o país devastado econômica e politicamente que entrou na guerra por um delírio do ditador.
A presidente, Cristina Kirchner, disse que a Guerra das Malvinas não foi decisão do povo argentino. Não foi.
Coube ao povo apenas pagar a conta, como sempre.
O então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ramiro Saraiva Guerreiro, vestiu o robe e foi falar com os jornalistas. Ele admitiu no seu livro de memórias que foi uma das raríssimas surpresas que teve em sua vida profissional. "Acostumei- me a prever com razoável precisão como os Estados se comportariam na cena internacional." O chanceler brasileiro em 1982 estava voltando de uma viagem à China, passara por 13 fusos horários, e dormiu em Nova York. Foi acordado pelo porta-voz Bernardo Pericás, que lhe disse: "Ministro, a Argentina invadiu as Malvinas, e os jornalistas brasileiros que o acompanharam à China gostariam de ouvir seus comentários." Ele não teve tempo de pensar, mas definiu com precisão milimétrica o que fazer: apoiar a Argentina, mas não a guerra. Estava fora de questão brigar com os argentinos. Fora longo o trabalho de recompor as relações, afastar as desconfianças, e firmar o acordo que pacificou a região desde o início da construção da Usina de Itaipu. Brigar com a Inglaterra, não havia por quê. O ministro disse então aos jornalistas que o Brasil apoiava o direito da Argentina sobre o arquipélago desde 1833, quando, na regência, o nosso ministro plenipotenciário em Londres avisou à corte de St. James que o país era contra a invasão das ilhas pelos ingleses. Ao mesmo tempo, defendia solução negociada.
Foram dias tensos para a diplomacia brasileira. Em maio, o presidente, João Figueiredo, tinha viagem marcada aos Estados Unidos, que apoiaram imediatamente a Inglaterra. Não ir seria entendido como gesto político. Ir seria uma inutilidade, porque só haveria um assunto, Malvinas. Ele foi e deu um recado: "Se houvesse algum ataque ao território continental argentino, os latino-americanos, que estavam dando apoio à Argentina em sua reclamação, mas evitando agir como se se tratasse de uma agressão britânica ao continente que os obrigasse à ação de defesa coletiva, seriam provavelmente forçados a reagir muito além de suas intenções." A história foi contada por Guerreiro em seu livro "Lembranças de um empregado do Itamaraty".
Havia muitos riscos para o Brasil naquele conflito.
Um era ter que tomar partido.
Quando um avião britânico pousou no Galeão, a Argentina queria que a aeronave fosse retida até o fim do conflito; os ingleses, que ela fosse liberada imediatamente.
O avião foi retido por um tempo que não significasse uma afronta aos ingleses, mas que fosse um recado aos argentinos de que o Brasil não ajudaria a Inglaterra.
O Brasil temia uma vitória argentina porque isso fortaleceria o governo de Galtieri.
Ele seria louco o suficiente para arranjar outro inimigo externo.
E o Chile já estava escalado, pela disputa no Estreito de Beagle. Havia generais nos governos daqui e de lá, mas aqui o processo de abertura estava bem adiantado. Na Argentina, havia uma devastação em todos os sentidos. A ruína econômica pousava sobre 30 mil mortos e desaparecidos.
Galtieri achou que a guerra o salvaria. Foi deposto, e o país pôde abreviar o tempo até a democracia. Margaret Thatcher saiu popular da guerra e se reelegeu.
Trinta anos depois, o que faz a Inglaterra continuar mantendo a posse das ilhas? Eles dirão que assim querem os kelpers, mas Hong Kong foi devolvida à China, após 100 anos de controle, sem qualquer consulta popular. O compromisso feito pela China de manter "um país, dois sistemas" está cada vez mais fraco. Devolveram Hong Kong porque temem a China, não o fazem com as Malvinas porque não temem a Argentina. Os kelpers são descendentes dos ingleses transplantados para lá desde a ocupação em 1833. Em Hong Kong, a maioria é de origem chinesa mesmo. Mas o tamanho do país reclamante foi o mais decisivo.
E de quebra tem petróleo no pedaço. Quanto? Há controvérsias sobre quantidade e qualidade do produto, mas cinco empresas prospectam na área, todas britânicas: Falkland Oil & Gas, Rockhopper Exploration, Desire Petroleum, Borders & Southern, Argos Resources. A Rockhopper Exploration é que está em estágio mais avançado e calcula-se que produzirá a partir de 2016, e ao longo de 20 anos, um total de 448 milhões de barris nos campos que explora. Ao todo, fala-se, segundo o "Telegraph", em potencialmente 4,7 bilhões de barris.
De acordo com especialistas ouvidos pelo jornal inglês, o governo argentino ao elevar o tom de suas reclamações contra a dominação britânica no arquipélago quer assustar os investidores e impedir que as companhias consigam financiar seus investimentos.
A tensão entre os dois países vai continuar. Um olhar 30 anos atrás revela que aquele não foi apenas um conflito extemporâneo. A região correu mais risco do que ficou na lembrança. O melhor é negociar, lembrando que a Inglaterra fica a 12.735 quilômetros de distância do arquipélago. A Argentina, a apenas 482.

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