terça-feira, abril 03, 2012

Quando a Argentina enlouqueceu - CLÓVIS ROSSI


FOLHA DE SP - 03/04/12

Guerra das Malvinas, dois meses e meio de um delírio coletivo que acabou com a ditadura militar 

Eu era correspondente em Buenos Aires, mas estava cobrindo os conflitos centro-americanos quando forças argentinas invadiram as Malvinas, fez ontem 30 anos.
Quando meu chefe me acordou na Cidade da Guatemala para me anunciar a novidade, achei que ele estava brincando. Não era imaginável que uma ditadura militar já desgastada se atrevesse a desafiar o império britânico, ainda que já não fosse império. Era, de todo modo, integrante da Otan, a aliança militar mais poderosa do planeta.
Liguei para minha mulher em Buenos Aires e ela me contou que o general Leopoldo Fortunato Galtieri, o chefe de turno da junta militar, estava sendo aplaudido nas ruas.
Achei que ela havia enlouquecido. Afinal, meses antes, eu mesmo havia sido testemunha ocular de uma grande manifestação popular em que se gritava: "Se va a acabar/se va a acabar/la dictadura militar".
Não, ela não havia enlouquecido. Os argentinos é que estavam embriagados de um patriotismo equivocado. Domingo, em "El País", o jornalista John Carlin, que também vivia em Buenos Aires, lembrou: "No dia seguinte [à invasão], 100 mil pessoas foram celebrar na praça de Maio, algumas das quais as mesmas que se haviam manifestado poucas semanas antes contra o bêbado Galtieri e seus cupinchas".
Na volta a Buenos Aires, testemunho o apoio à junta militar até dos Montoneros, o grupo guerrilheiro que havia sido praticamente dizimado pela ditadura, como parte do genocídio por ela operado.
Para não mencionar o fato de que os militares dizimaram também a economia argentina.
Se a sabedoria convencional ensina que, na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade, na Guerra das Malvinas a verdade foi torturada antes de ser morta.
Afinal, não havia internet nem TV a cabo com notícias 24 horas nem o tal "jornalismo cidadão" como fonte alternativa, e a guerra se travava a 600 quilômetros do ponto mais próximo do continente.
Nesse ambiente favorável à propaganda mentirosa, quando as forças britânicas desembarcaram em uma das ilhas, as Geórgias do Sul, corri para o centro de imprensa que a ditadura montara no Hotel Sheraton com a dura missão de arrancar um fiapo de verdade em muito pouco tempo (era sábado e o jornal, naquela época, fechava muito mais cedo que hoje).
Perguntei de mil e uma maneiras se, afinal, os britânicos haviam ou não conseguido estabelecer um cabeça de praia, como diziam.
O oficial responsável negou mil e uma vezes.
A Argentina, pela propaganda oficial, estava ganhando a guerra até o minuto anterior à rendição, anunciada por Galtieri à multidão que ele próprio convocara à praça de Maio, talvez imaginando que os aplausos colhidos após a invasão continuariam após a derrota.
Era mais uma loucura. A massa, ensandecida, promoveu outra colossal manifestação contra o regime, aos gritos de "Galtieri, borracho/mataste a los muchachos" (a fama de bêbado do general era disseminada; "muchachos" eram os 649 soldadinhos que ele enviara às ilhas para combater).
A ditadura argentina começou a acabar nas Malvinas, após dois meses e meio em que um país inteiro enlouqueceu.

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