segunda-feira, janeiro 30, 2012

Os ilegais e o Brasil legal - JORGE FONTOURA


Correio Braziliense - 30/01/12


A Polícia Federal tem impedido a entrada de haitianos na ponte da Brasileia, no Acre, e em Tabatinga, no Amazonas, a reescrever mais um capítulo da tragédia universal dos refugiados, agora em nossas portas. De forma legal, já recepcionamos grande contingente deles, o que não justifica o anunciado uso de mediadas draconianas, com os rigores da lei, para evitar que venham muitos mais. Usa-se o simplismo ingênuo, de cara anglo-saxã, de proibir, vigiar e punir, na convicção de que em migrações indesejáveis basta fechar-se a porta, a ponte, o porto, para que tudo esteja resolvido.

Os haitianos são sobreviventes de inúmeras tragédias, algumas naturais, como terremotos e tempestades. Outras humanas, como o processo histórico trágico de que são vítimas, com sucessivos surtos de exploração e desgoverno, a gerar hordas errantes, em busca de nova vida e de novos horizontes. Como metáfora, o Haiti é a nossa África e não podemos fazer dela o que os europeus fazem com seus extracomunitários, estigmatizados até pela expressão infeliz que inventaram.

Se os haitianos querem vir para o Brasil, nada impedirá que o façam, com ou sem polícia. Por um lado, imigrantes clandestinos são obstinados e corajosos para desafiar as leis; por outro, podem constituir força de trabalho inigual, como o Brasil hoje necessita, em tantas novas áreas de desenvolvimento, carentes de empenho e de disposição. O Canadá, que está na moda, recebe mais de 250 mil imigrantes por ano, em política inteligente e de benéficos resultados para toda a sociedade.

Aqui, no caso dos haitianos, vê-se desde logo imenso campo de trabalho potencial, como no setor de hotelaria primitiva de que dispomos, a beneficiar-se com o aporte maciço de trabalhadores dispostos e hábeis em línguas internacionais. A construção civil, os grandes projetos hidrelétricos, a cultura açucareira, entre outros, são setores que poderiam capitalizar o elã desses trabalhadores, sem prejudicar a mão de obra nacional.

Soluções legais para a avalanche de imigrantes que se prenuncia são difíceis à luz do Novo Estatuto do Estrangeiro, a Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980, que, apesar do nome, já é legislação obsoleta e ultrapassada. A falta de respostas fáceis, no entanto, não representa obstáculo à capacidade criadora do Ministério da Justiça, em particular do secretário executivo, Luis Paulo Barreto, reconhecida autoridade em temas de direito internacional e do direito do estrangeiro.

Talvez em primeiro momento fosse desejável conceder visto temporário de trabalho ou algo de natureza emergencial, apenas para acomodar juriricamente a gravidade da situação. Depois, seria essencial o engajamento da sociedade civil, em grande campanha nacional, para reunirem-se esforços na recepção ordenada dos tantos infelizes que nos vêm procurar.

O Sebrae, os sindicatos, as delegacias regionais do trabalho, os clubes de serviço, as associações comerciais, entre tantas outras instituições, seriam essenciais na condução de programas abrangentes de treinamento e de incorporação de haitianos a nosso mercado de trabalho. O Brasil, que dá lições ao mundo com sua atuação na Minustah (Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haiti), poderia agora dar outro exemplo dignificante, a exercer na prática a vocação generosa do povo.

Se no passado o Brasil é em certa medida a história de imigrações desordenadas e caóticas que ocasionaram aflições e heroísmos desmedidos, no presente, razões e motivações não nos faltam para bem acolher estrangeiros. Afinal, eles são apenas como muitos de nossos ancestrais que um dia também quiseram ser brasileiros.
Por fim, se assim o fizermos, demonstraremos que nossa Constituição não é apenas um amontoado de letras frias na defesa de direitos humanos e de valores humanitários abstratos. Superaremos assim a retórica para passar a ação, com atos de governo e com engajamento cívico e social, na contundência inequívoca das decisões de Estado.

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