sexta-feira, agosto 26, 2011

Morte e vida Severina - Letícia Lins



Morte e vida Severina

Violentada pelo pai, agricultora é absolvida de mandar matá-lo para evitar que filha sofresse o mesmo destino

Letícia Lins



RECIFE. Acusada de ter mandado matar o próprio pai — que começou a violentá-la ainda menina — a trabalhadora rural Severina Maria da Silva, de 44 anos, foi julgada ontem por júri popular e absolvida por unanimidade, mesmo sendo ré confessa. Ela viveu uma relação incestuosa com o seu agressor, com o qual chegou a ter 12 filhos, dos quais cinco estão vivos. Mas decidiu se vingar quando Severino Pedro de Andrade deu sinais que ia fazer com a filha-neta, então com oito anos, a mesma coisa que fizera com ela. A lavradora não conseguiu conter a emoção ao recordar os momentos mais dramáticos de sua história.

—- Fui obrigada a fazer isso, porque ele quis abusar de minha filha e isso eu jamais aceitei. Eu não ia aguentar ver a menina passar pelo mesmo sofrimento que passei, quando tinha nove anos. Eu não aceitei, e a solução foi fazer isso com ele. Espero vencer e que a Justiça entenda o meu desespero — afirmou ela ontem, ao chegar à 4a- Vara do Tribunal do Júri, no centro da capital. O trauma da acusada, no entanto, era muito maior, como revelou durante a audiência.

Pouco depois de ter sido estuprada pela primeira vez pelo pai, a sua própria mãe ajudou o maníaco a abusar mais uma vez da menina, depois que soube da relação sexual entre o marido e a filha. Ela confessou que desesperou-se ao lembrar da falta de apoio da mãe durante sua dor:

— No dia que ele abusou de mim, no caminho do roçado, a minha mãe foi me buscar na minha cama, onde eu e minhas irmãs, nós estava (sic) dormindo. Ela me levou para a cama dela, fez com que eu ficasse de bruços, ela segurou nas minhas pernas e mandou ele fazer o que queria. Uma irmã do agricultor, Otília Maria da Conceição, de 86 anos, funcionou como testemunha de defesa. Ela relatou que a família sabia da relação incestuosa, mas ninguém o denunciava por causa do seu temperamento violento. Os familiares temiam morrer.

— A gente sabia da tristeza de ela ser uma filha-esposa — disse. Violentada aos nove anos, Severina viveu por duas décadas com o seu algoz. Dos cinco filhos vivos, dois têm distúrbios neurológicos, devido à consanguinidade. Por conta do homicídio, ela passou um ano e seis meses presa, aguardando a sentença na colônia penal feminina de Buíque, na região agreste de Pernambuco. Saiu por bom comportamento e voltou para o sítio onde passou a criar os filhos. O crime foi no sítio Rafael, município de Caruaru, a 130 quilômetros de Recife. Ela pagou R$ 800 para que dois homens matassem o pai com uma faca, a mesma com a qual ele a ameaçava de morte, todas as vezes que Severina dizia que ia denunciá-lo à polícia:

— Quando vi ele olhando a menina, me desesperei. Já tinha apanhando por três dias, levado muito cacete. Os dois homens contratados —- Edilson Francisco de Amorim (Galego) e Denisar dos Santos (Denis) — foram condenados em Caruaru a 17 e 18 anos de reclusão. O julgamento de Severina foi transferido para Recife a pedido do Ministério Público de Pernambuco. O promotor José Edvaldo da Silva não chegou a pedir a condenação da ré, mas a criticou:

— Não pode existir segurança na vingança privada. O Ministério Público não faz apologia ao crime e não encampa a tese de que todo mundo pode mandar matar a mãe, matar o pai. — Com todo o sofrimento que ela passou, podemos dizer que foi a vítima quem coagiu a filha a agir daquela maneira. Severina passou duas décadas sendo violentada e, diante da ameaça da filha passar pelo mesmo sofrimento, não teve outra saída. Ela não contou, sequer, com o apoio da mãe, quando tinha nove anos — disse Poliana Queiroz, advogada de defesa.

— Ela não teve apoio do Estado. Quando procurou a delegacia, mandaram retornar ao sítio e ficar com ele. Não tinha apoio de ninguém. Negra e pobre, nunca frequentou a escola. A ré não é uma criminosa. Ontem, quatro dos cinco filhos de Severina estavam no fórum. A sentença foi comemorada com lágrimas. — Vou voltar para o sítio. É do roçado que retiro o sustento dos meninos. Todos são direitos e estão estudando — disse Severina.

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