segunda-feira, abril 04, 2011

MANOEL CARLOS - Liz

Liz
MANOEL CARLOS
Revista Veja _ RJ
Meu amigo Horácio fez 70 anos no último dia 23, e lá fomos nós, seus amigos mais íntimos, atrás de uma garrafa de vinho antecipadamente escolhida e reservada na pequena adega do Café Severino, uma geladeira climatizada para trinta garrafas, que ali adormecem na temperatura ideal. São poucos rótulos, entre tintos e brancos, mas todos escolhidos com honestidade. Éramos cinco, “a las cinco en punto de la tarde”, como no poema de García Lorca. Aliás, foi o próprio Horácio que um dia, há mais de dez anos, ao agendarmos um encontro para aquele horário, fez a referência:
— “A las cinco en punto de la tarde”, hein? Sejam pontuais!
E a expressão ficou para sempre. A esses nossos encontros vespertinos meu filho Pedro costuma chamar, com elegante humor, de matinê da terceira idade, o que não deixa de ser verdade.
Mas voltemos ao dia 23 de março. A comemoração no Severino seria rápida, já que poucas horas depois o aniversariante estaria festejando em casa a chegada da nova idade, entre filhos, genros, noras e netos, e ao lado da mulher, Amélia, com quem estava casado havia quarenta anos e que fazia jus à definição de Mário Lago no samba de Ataulfo Alves: era mesmo uma mulher de verdade.
Após o brinde e a sucessão de abraços e votos de felicidades, o silêncio caiu, por alguns segundos, entre nós, e instantaneamente todos nos lembramos da notícia que nos alcançara no começo daquele dia e que ninguém ainda mencionara: a morte de Elizabeth Taylor. Alguns leitores talvez fiquem chocados ao ver que a morte da atriz nos atingira tanto, que até mesmo pusera um tom gris naquela tarde de começo de outono, ameaçando o brinde ao aniversariante, mas devo contar, de pronto, que foi o próprio Horácio, do alto dos seus 70 anos e algumas horas, quem declarou, inaugurando o assunto, após o tinir das taças:
— Por que ela tinha de morrer logo hoje, meu aniversário?
E ele mesmo explicava a razão do seu descontentamento:
— Era a mulher dos meus sonhos e minha referência de beleza, entre todas as atrizes do mundo!
E todos nós concordamos que era um duro golpe na nossa geração. E vieram as lembranças, começando também pela voz do aniversariante:
— Um Lugar ao Sol foi o filme que mais me marcou. A dupla com Montgomery Clift nunca foi superada. Nem mesmo a que ela formou com Richard Burton.
— Para mim seu auge foi com a Gata — declarou o Otávio, referindo-se a Gata em Teto de Zinco Quente, que a atriz fez com Paul Newman.
— Fico com Quem Tem Medo de Virginia Woolf? — afirmou o Paulo, com quem eu e o Raul concordamos sem hesitar.
E Horácio, ele mais uma vez, resolveu dividir a comemoração dos seus 70 anos com a saudação à sua atriz preferida:
— À minha saúde e ao descanso eterno de Liz!
Observamos que, apesar de a atriz desaparecer aos 79 anos, mais velha, portanto, do que qualquer um de nós, falávamos dela como se ainda fosse jovem. E Raul lembrou-se de uma entrevista em que ela afirmara ter vivido sempre em situações próprias dos adultos e que deixara de ser criança quando começou a fazer cinema, com menos de 10 anos.
— Ela também disse uma vez — lembrou o Paulo — que tinha o corpo de uma mulher e as emoções de uma criança.
— Ela sabia das coisas — garantiu seu admirador número 1.
Em menos de uma hora Horácio foi para casa e nós quatro secamos uma segunda garrafa, antes de nos dispersarmos e depois de muitas outras lembranças da vida e do trabalho de Liz.
*****
Nesta semana, os jornais noticiaram que Elizabeth Taylor deixou de herança perto de 700 milhões de dólares, destinando grande parte dessa quantia a instituições de caridade, a clínicas especializadas no tratamento de portadores de HIV e, principalmente, ao financiamento de pesquisas para a cura da aids.
E, entre as muitas declarações da atriz, em meio a menções a festas, diamantes, maridos, futilidades e bebedeiras, uma se destaca, fazendo dela uma celebridade de rara humanidade:
— Se não é para melhorar o mundo, para que serve o dinheiro?
Só por essa pergunta, a que ela acaba de responder com o seu testamento, Liz já merece ser lembrada para sempre.

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