quarta-feira, dezembro 15, 2010

MERVAL PEREIRA

Expectativa de poder 
Merval Pereira 

O Globo - 15/12/2010

O presidente Lula é um mestre na manipulação política e está conseguindo manter-se em evidência mesmo a poucos dias do fim de seu mandato. Por enquanto, ainda é Lula quem manipula os cordéis, tendo indicado grande parte do Ministério, mas a presidente eleita já deu alguns sinais de que pode vir a ter autonomia na sua ação de governo.

Na sua obsessão por não perder a primazia, Lula faz o que sabe melhor, transmitir uma expectativa de poder futuro, para tentar se contrapor à sua criatura, que está prestes a assumir o proscênio, com todas as condições objetivas de se tornar a figura central de seu próprio governo, pelas características do presidencialismo brasileiro, que confere ao chefe do Executivo poderes muito amplos.

Transmitir expectativa de poder é uma coisa que Lula sabe fazer muito bem, e por isso ele surpreendeu o mundo político ao antecipar a campanha da sua própria sucessão, invertendo os termos da equação política tradicional que ensina que a sucessão só deve ser discutida quando não for mais possível conter a demanda, sob o risco de ser abandonado ainda no exercício do cargo.

Lula conseguiu o que parecia impossível: convenceu o PT, e depois seus aliados, de que com sua popularidade elegeria qualquer um, e escolheu a mais improvável das candidatas, a chefe do Gabinete Civil Dilma Rousseff, que não tinha respaldo partidário nem história política para ser alçada a candidata à Presidência da República.

Justamente o que Lula queria, deixar claro que quem elegeria o futuro presidente seria ele. Ou mais ainda: que ele seria o presidente de fato por interposta pessoa.

Para completar o serviço, ele utilizou sua força eleitoral para transferir aos estados a mesma expectativa de poder que conseguiu no plano nacional, no qual, antes mesmo de sua candidata oficial aparecer na frente das pesquisas, já havia uma percepção generalizada entre os eleitores de que ela acabaria sendo a vencedora.

A estratégia eleitoral do presidente Lula, que foi vitoriosa em relação à campanha presidencial, desdobrou-se na fase regional, onde o objetivo não era fazer a maioria dos governadores, mas, sim, garantir uma maioria sólida no Congresso, especialmente no Senado, o que conseguiu, pelo menos numericamente.

A base aliada governista controla cerca de 70% das duas Casas, embora seja muito heterogênea e tenha interesses próprios que surgirão certamente em meio às negociações.

Conseguiu a façanha e, embora seja tecnicamente um “pato manco” (lame duck), expressão americana que define o político que continua no cargo, mas por algum motivo não pode disputar a reeleição, não perdeu o poder e dá sinais de que não quer perdê-lo. A expressão “pato manco” nasceu na Bolsa de Valores de Londres, no século XVIII, em referência a um investidor que não pagou suas dívidas, e foi transferida mais tarde para a política.

A ave (e o político) com problemas torna-se presa fácil dos predadores. Mas tudo o que Lula não quer, e parece temer, é justamente ser identificado como um “pato manco”, e por isso permanece até o final de seus dias no cargo exercendo o poder e, mais que isso, transmitindo sinais de expectativa de poder futuro.

Mesmo negando que pretenda se candidatar novamente em 2014, Lula no momento é a maior aposta petista para continuar no governo.

E só se tornará um “pato manco” de fato quando (e se) a presidente Dilma Rousseff assumir integralmente suas prerrogativas presidenciais e, sobretudo, se ela tiver êxito na empreitada.

Também na oposição o que mais se persegue é a tal da expectativa de poder.

O candidato tucano derrotado pela segunda vez à Presidência da República, José Serra, reapareceu no cenário político transmitindo a seus interlocutores a disposição de transformar em realidade o “até logo” com que brindou os eleitores no discurso de aceitação da derrota.

A partir de São Paulo, ele montou sua barricada para barrar as pretensões da ala amplamente majoritária do PSDB que vê hoje no ex-governador de Minas e senador eleito Aécio Neves a encarnação da expectativa de poder dos tucanos para 2014.

Serra pretende, pelo menos no momento, insistir pela terceira vez na sua candidatura à Presidência da República e tem como exemplo o próprio Lula, que só venceu na quarta tentativa.

Mas Serra não tem o controle do PSDB como Lula tinha do PT, e o PT nunca teve candidatos viáveis à Presidência, o que o PSDB tem.

O senador Tasso Jereissati, uma das vítimas da campanha de Lula que não conseguiu se reeleger, vê em Aécio Neves a expectativa de poder do partido e acha que ele será sua liderança natural.

O próprio Aécio trata da questão com desembaraço, defendendo a “refundação” do PSDB a partir da defesa de seus êxitos, citando o Plano Real e as privatizações.

“Temos ao invés de esconder as nossas bandeiras, nossas trajetórias, que brigar por elas. Eu quero ir para os debates dizendo que sou a favor das privatizações porque os resultados estão aí, na telefonia, na siderurgia, vamos falar na própria Vale. Não temos que ter receio do legado que nós deixamos”, defende ele.

Com essa disposição, ele se aproxima do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que não teve nem em Alckmin nem em Serra defensores de seu governo.

O ex-governador mineiro transita com desembaraço por diversas alas governistas e vende a imagem de ser um potencial candidato à Presidência da República sem, no entanto, assumir tal posição.

Mas tem uma boa tese: “Não existe nada que agregue mais na política do que a expectativa de poder. Agrega mais que o poder presente. O presente é finito.”

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