sexta-feira, fevereiro 26, 2010

DIONÍSIO DIAS CARNEIRO

Nova ordem e novo contágio

O ESTADO DE SÃO PAULO - 26/02/10


Os mercados financeiros descobriram a precariedade da construção econômica por trás do Tratado de Maastricht, que viabilizou o euro. É impossível abandonar o tema que vem motivando nossos comentários neste espaço há três semanas, uma vez que os desenvolvimentos da crise grega têm tomado o pior rumo possível. Surgem agora dúvidas quanto ao paradigma para a política monetária e fiscal que pode acelerar o contágio.

A questão vai, pois, além dos problemas do governo grego, que não consegue convencer o público interno sobre a necessidade de cortar despesas e reduzir o déficit, que já se agrava por força da recessão. Para os governos dos credores, fica ainda mais difícil explicar aos seus eleitores (que sofrem com o desemprego crescente) que vão usar o dinheiro de seus impostos para financiar um governo estrangeiro cujos líderes não conseguem explicar a seus eleitores que Papai Noel não existe.

E vai além também das consequências da exposição dos bancos estrangeiros ao risco grego (seja soberano, seja privado), que apertam a saia-justa em que se encontram as autoridades reguladoras nos demais países. Uma outra rodada de problemas no sistema dificultaria a estratégia de saída para a bonança monetária anticíclica e aumentaria a probabilidade de uma saída inflacionária.

Os governos dos países que ainda precisam usar o gasto público para suprir a contração da despesa privada ficam sem cartas para jogar. Nessas horas, a independência dos bancos centrais é um trunfo que poucos países poderão exibir.

Mas não é fácil conciliar as duas pontas da política macroeconômica. O consenso que tem sustentado a combinação fiscal-monetária mostra sinais de fadiga de material. Uma nova onda de contágio pode resultar da importância crescente da especulação financeira na determinação das taxas de câmbio e de juros, como ocorreu na crise asiática.

No final dos anos 90, quando o Fundo Monetário Internacional (FMI) instava os países atingidos pela reversão súbita de financiamento externo a contrair déficits e a elevar juros, a recomendação foi denominada de um "jogo de confiança". Os governos já atingidos pela queda de receitas cortariam na própria carne, para mostrar seriedade e conquistar a confiança perdida dos mercados. O selo de aprovação do FMI potencializaria os efeitos positivos da recuperação da confiança.

O resultado foi misto: a recessão dos países asiáticos foi a mais grave desde os anos 30. A confiança só foi recuperada de forma convincente quando a China se tornou uma força capaz de coordenar o soerguimento da região. Os países vitimados pelo contágio reverteram suas posições fiscais e se tornaram superavitários na conta corrente. O FMI perdeu, desde então, o papel de fiador da confiança e a capacidade de restaurar os fluxos privados de capitais. Mas foi substituído, nos últimos dez anos, por um benchmark para o julgamento comparativo da qualidade da política macroeconômica: a generalização de uma postura fiscal voltada para o controle da dívida, combinada com a estratégia de política monetária baseada em metas para a inflação. Os países abriram mão de controlar fluxos de capital para praticar taxas flutuantes e política monetária independente.

Esse benchmark estará com os dias contados? Um par de papers divulgado recentemente pelo FMI sugere mudanças que podem significar um "jogo de desconfiança".

Um paper tem como coautor o economista-chefe do fundo e defende o aumento da meta de inflação. Outro, de economistas do staff, restaura a respeitabilidade dos controles de capital, arguindo o caráter pró-cíclico, portanto desestabilizador, dos fluxos especulativos. Se for possível controlar tais fluxos, abre-se o caminho para o retorno do câmbio administrado. Já a tolerância com a inflação será música para os ouvidos dos governos mais atingidos pela desconfiança, que podem usar a inflação para desbastar a carga da dívida.

Há, assim, um novo tipo de contágio à vista: países como o nosso, que têm escapado razoavelmente ilesos da atual tragédia mundial, podem contar com a aprovação do FMI para abandonar pilares da política macro que foram responsáveis pela situação razoavelmente confortável com que têm atravessado a grave situação internacional. Uma aposta perigosa brilha no horizonte.

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Dionisio Dias Carneiro, economista, é diretor da Galanto Consultoria e do Iepe/CdG

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