domingo, janeiro 24, 2010

JANIO DE FREITAS

Na hora trágica

FOLHA DE SÃO PAULO - 24/01/10

Visão do governo Lula sobre a presença brasileira na tragédia do Haiti é menos humanitária do que política

NEM 24 HORAS foram necessárias para que o governo Lula se desmentisse e, com fatos claros, confirmasse que sua visão da presença brasileira na tragédia do Haiti é muito menos humanitária do que política, na sua concepção de Brasil potência. Concepção, aliás, bem semelhante à de Brasil Grande criada pela ditadura, há 30 e tal anos atrás (por acaso ou não, também naquela altura foi feito com a fábrica Dassault um negócio caríssimo de compra de aviões de caça).
Por ora, o resultado de tal política é apenas o ridículo. Sem promessa de que o resultado final seja outro, senão pior, caso o governo não perceba que seu "enfrentamento" com os Estados Unidos está fora do lugar, da hora e das possibilidades mais concretas.
Na quinta-feira, por exemplo, Lula tomou a iniciativa de cobrar ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, que a distribuição de alimentos e água no Haiti seja feita só por civis. Na sexta, os soldados brasileiros montaram um posto de distribuição, no qual entregaram "22 mil garrafas de água e 10 toneladas de alimentos". Nada de mais, só um pequeno vexame de falta de orientação e organização.
Pior foi que, no desejo de impedir que os EUA façam o papel simpático de distribuir gêneros, os nossos estrategistas concentrados na sede provisória do governo (o Planalto está em obras) puseram Lula na contramão. As distribuições, em circunstâncias de desespero como as do Haiti, devem ser feitas por militares ou com forte presença militar, para evitar o tumulto e a violência dos famintos na distribuição civil e desarmada. Espera-se que a proposta de Lula tenha ficado, na ONU, só como um vexame telefônico.
A terceira impropriedade em 24 horas sobe de nível: é a explicitude da disputa com um toque de adesão ao estilo Chávez de política externa. O posto de distribuição foi montado ostensivamente diante do que resta do palácio presidencial, porque a área foi ocupada por soldados dos EUA. O que os responsáveis pela atitude brasileira pensariam estar provando ou provocando? Nada mais inteligente, apropriado e adulto do que o cutucão no colega em fila na escola. A não ser que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, ainda que vestido à paisana, tenha explicação mais elevada, não relativa ao nível primário, mas já ao secundário.
Por falar nele, outro exemplo, entre vários possíveis, foi a resposta política brasileira ao envio de 7.000 soldados dos EUA para o Haiti. Lula e Jobim: "o Brasil vai duplicar sua presença". Mais 1.750 soldados, portanto. Deu manchetes, TV, entrevistas. Mas, de fato, a soma dos que vão substituir os recém-retornados e dos acréscimos anunciados é de 900, que são os já treinados para as atividades lá. Previsto recurso a soldados que já estiveram no Haiti. A Casa Branca deve ter-se impressionado com a "duplicação da presença brasileira".
Os EUA estão retirando parte do seu pessoal, mas decidiram mandar mais 10 mil pessoas, com a finalidade declarada de servirem à reconstrução. Aguardemos, ansiosos, a réplica do governo brasileiro. Sem perguntar o que imagina obter da disputa prioritária, que tudo indica ser unilateral, com os norte-americanos nesta hora trágica do Haiti.

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