domingo, novembro 22, 2009

BORIS FAUSTO

A censura na perspectiva histórica

O ESTADO DE SÃO PAULO - 22/11/09


No tempo da ditadura do Estado Novo (1939-1945), como se sabe, os jornais eram submetidos ao crivo dos censores e O Estado de S. Paulo foi confiscado pelo interventor federal. Relembrando esses tempos, em depoimento prestado ao repórter Noé Gertel, na Folha de S.Paulo de 10 de janeiro de 1979, nos últimos anos do regime militar, Hermínio Sacchetta dá bons exemplos das instruções da censura.

É preciso lembrar Sacchetta. Jornalista infatigável, militante comunista, rompeu com o Partidão em 1937, por discordar de sua linha política, e se tornou trotskista. Na entrevista, Sacchetta reproduz algumas "pérolas" da censura no curso de 1943. Nessa época, Getúlio Vargas abandonara o namoro com o nazi-fascismo, o Brasil rompera relações diplomáticas com os países do Eixo e entrara na 2ª Guerra Mundial, em agosto de 1942.

A atividade da censura, em qualquer circunstância, costuma ser chamada de incoerente, errática, mas é possível encontrar algumas linhas de coerência na sua ação. Naquela conjuntura, era evidente a preocupação do governo Vargas com o comunismo, muito embora a União Soviética integrasse, em primeiro plano, o grupo dos países que enfrentava o Eixo. Para começar, os censores não usavam a expressão "União Soviética", e sim "Rússia". Viviam-se os tempos em que a referência à União Soviética se associava aos feitos heroicos da guerra, combinados com a ilusão de que naquele país se gestavam os tempos radiosos da sociedade comunista. A designação "Rússia" simbolizava o despotismo, o atraso, as maquinações sinistras nos bastidores do poder.

A ação dos censores consistia em varrer das páginas dos jornais a existência da União Soviética e de personagens a ela vinculados. Curiosa atitude que, guardadas as proporções, lembra a iniciativa de Stalin e sua corte de apagar das fotografias e das imagens cinematográficas os líderes bolcheviques caídos em desgraça.

Ao longo dos meses, encontramos reiteradas determinações para que não se divulgassem fotos da guerra na Rússia e nada também sobre um possível reatamento de relações diplomáticas com o Brasil. A certa altura (maio de 1943) a censura, quase sempre mercurial, abranda. "Fotografias da Rússia: podem ser publicadas as que forem submetidas à censura; as legendas devem conter apenas as palavras Rússia, ou russos." Alvo constante eram as publicações da Editora Calvino, ligada ao PCB, sujeitas a estrito controle, a ponto de não lhe ser possível anunciar seus livros, mesmo os autorizados. No plano pessoal, os censores proibiram a divulgação da morte da mãe de Luís Carlos Prestes, Leocádia Prestes, certamente por lembrar a existência do filho, preso e condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional.

No plano ideológico, há uma referência significativa sobre a natureza do regime estado-novista: (são) "proibidas quaisquer alusões ao regime brasileiro anterior a 10 de novembro de 1937, sem prejuízo de referências à democracia, pois o regime atual é também uma democracia." Notável jogo de palavras que veríamos ressurgir muitos anos depois, na época do regime militar. Embora no caso do Estado Novo houvesse intelectuais e outros personagens que teorizavam sobre as virtudes do regime autoritário, a palavra oficial - especialmente depois da definição no tocante ao conflito mundial - insistia em caracterizar o Brasil como uma democracia, adjetivada como "nova democracia", "democracia orgânica", lembrando, a nossos olhos, o general Geisel, que, mais prudente, falava em "democracia relativa".

Um das preocupações da censura era a Sociedade Amigos da América, fundada em janeiro de 1943 com o objetivo de apoiar a luta dos Aliados contra o Eixo e promover a democracia contra o totalitarismo. A sociedade, cujo presidente era o general positivista Manoel Rabelo, tornou-se um reduto da oposição. Em outubro daquele ano, os censores deram mostras de "ter perdido a paciência", com a associação: "Em caráter definitivo, não pode ser dado nada sobre a Sociedade Amigos da América, nem mesmo expressões parecidas ou relacionadas com esta."

Os tópicos poderiam ser multiplicados. Sacchetta assinala que pessoas com acesso aos meios governamentais conseguiam impedir notícias desabonadoras sobre membros de sua família, ou a realização de mágicas pelas quais um suicídio se convertia em colapso cardíaco. Muito curiosa a referência à propaganda do Urodonal, a princípio proibida e depois liberada (fevereiro de 1943). Qual a razão? Não sei. Sei apenas que o bordão do Urodonal dizia: "Alô, como se sente, rim doente? Tome Urodonal e viva contente."

Estamos a muitas léguas de distância do Estado Novo, no âmbito de um regime democrático em consolidação, com problemas bem conhecidos. A ameaça de um golpe de velho estilo pode ser descartada, embora esteja na cabeça do presidente Lula, como figura de péssima retórica, ao atribuir recentemente o escândalo do "mensalão" a uma armação golpista.

Nem por isso o País está livre das ameaças à liberdade de expressão. A mídia em geral e os jornais em particular são alvos da irritação dos governantes. Tentativas de formação de um Conselho Federal dos Jornalistas, a pretexto de introduzir normas éticas, fracassaram em passado recente. Agora, estão no ar iniciativas do governo para ampliar e reforçar a mídia estatal, que ninguém vê, como é o caso da TV Brasil.

Por sua vez, reportagens investigativas rompem silêncios, ocultações, manipulações dos detentores do poder, ou de representantes de grandes interesses corporativos. Por isso, quanto maior for o grau de corrupção no âmbito do estrato político e da sociedade, maiores serão as tentativas de intimidar a imprensa. O recente exemplo de censura por via judicial a este jornal não é, pois, um caso isolado.


Boris Fausto, historiador, presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional (Gacint-USP), é autor, entre outros livros, de História do Brasil (Edusp)

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