domingo, fevereiro 15, 2009

MAURO SANTAYANA

Coisas da Política - A cumplicidadeda tolerância

Jornal do brasil -15/02/09

Em uma tarde de dezembro passado, o chefe de polícia de Passau, na Baviera, Alois Mannichi, saía de sua casa no subúrbio, quando foi esfaqueado. A lâmina por pouco não lhe atingiu o coração. No hospital, relatou que o atacante lhe dissera que ele nunca mais iria profanar o túmulo de seus camaradas. Semanas antes, o policial mandara retirar da tumba do dirigente neonazista do NPD, Friedhelm Busse, uma cruz gamada, símbolo proibido na Alemanha de hoje.

Em outra tarde, a da última segunda-feira, a brasileira Paula Oliveira chegava ao subúrbio de Dubendorf, em Zurique. Desceu do trem e se dirigiu à cabine telefônica, a fim de falar com a mãe no Brasil. Ao ouvir a língua estrangeira, três homens jovens a cercaram, agarraram-na, levaram-na a um canto, e com uma lâmina de barbear riscaram seu ventre e suas pernas, com as letras SDP, sigla do partido neonazista da Suíça. Nos dois casos, tão semelhantes e tão diferentes, as autoridades, encarregadas de investigá-los, tentam desmoralizar as vítimas e a elas atribuir a culpa do ocorrido.

O policial alemão é conhecido pela luta contra os neonazistas no land da Baviera, e havia a ordem para a abertura da cova de um de seus líderes e o confisco da cruz gamada que adornava o cadáver. Apesar de tantas evidências, não podendo dizer que o próprio policial se esfaqueara, os investigadores alegam que se tratou de "um drama familiar".

No caso da brasileira Paula de Oliveira, as autoridades suíças insinuam que a moça se autoflagelou. Ela se encontrava bem, vivendo legalmente no país, com o namorado, cidadão suíço – que confirmou sua versão, incluída a da gravidez. Advogada, ali trabalhava em sua profissão, e não em atividades mal remuneradas e humilhantes. Não havia razões para que assim agisse. Desde o primeiro momento, a polícia suíça desdenhou o depoimento da jovem. Outra versão, de sexta-feira, era a de que o aborto se dera "antes" da agressão e não "depois". É difícil crer que uma jovem que acaba de sofrer um aborto, em sórdido banheiro de estação ferroviária, vá telefonar para o Brasil, antes de buscar socorro médico. Como diziam os racionais padre Brown, de Chesterton, e Sherlock Holmes, de Conan Doyle, é necessário começar pela lógica. O crime não deixou de ser crime se, no momento em que se deu, a moça estava ou não grávida.

O fato é que, corretas ou não as versões sobre os dois episódios, o nazismo e o racismo se encontram de volta à Europa, se é que a deixaram algum dia. Também é fato que os governos europeus estão sendo coniventes com esses criminosos. Em seu conhecido ensaio, Repressive tolerance, Marcuse mostra que a tolerância para com os intolerantes é atitude de conivência e cumplicidade. Se a República de Weimar houvesse cortado, com a força do Estado, o avanço de Hitler e seus sequazes, o mundo não teria sofrido o que sofreu nos campos de batalha e de extermínio. Não estaríamos hoje discutindo sobre o Holocausto que, como registra a História, não vitimou apenas os judeus. Vale lembrar o campo especial de Natzweiller-Struthof, no qual os nazistas submeteram ciganos a experiências com bactérias, incluídas as do tifo, e, também, aos efeitos dos gases que empregariam mais tarde no extermínio dos "seres inferiores". Houve tempo suficiente para entender o que queriam os nazistas, que não escondiam seu propósito, mas a população estava de acordo com a eliminação dos "inúteis". É o que parece ocorrer na Europa de nossos dias.

Na Suíça alemã (onde o racismo é mais agudo) essa política procura justificar-se no sentimento de Befremdung. O vocábulo significa espanto diante de qualquer coisa estranha, que deve ser eliminada, como são os pobres do resto do mundo, estejam ou não entre eles. Trata-se de cínica torção ontológica, para desculpar o propósito da ampliada Endlösung, a solução final dos nazistas de 1942.

Nesse clima, vale registrar a atitude do governo britânico, ao impedir a entrada no país do deputado direitista holandês Geert Wilders, que iria apresentar seu filme anti-islâmico Fitna. De vez em quando a velha Inglaterra surpreende com seu pragmatismo. Em A Guerra das salamandras, excelente romance antitotalitário – em que as salamandras representam os nazistas, naquela época em ascensão – o tcheco Karol Capek atribui ao Foreign Office uma frase magistral: "O governo de sua majestade britânica tem todo o respeito pelos animais, mas não pode dialogar com eles".

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