domingo, outubro 16, 2011

DANIEL PIZA - A arte do apego (e do desapego)



A arte do apego (e do desapego)
DANIEL PIZA
O Estado de S.Paulo - 16/10/11

Os assuntos de A Lebre com Olhos de Âmbar, extraordinário livro de Edmund de Waal (editora Intrínseca, ótima tradução de Alexandre Barbosa de Souza), são muitos. Se você, como eu, é aficionado por artesanato japonês, Proust, Viena fim de século, Primeira e Segunda Guerras, entre outros nomes, endereços e datas, esse é o livro que você nem sabia que esperava. Como as miniaturas "netsuquês" cuja trajetória o autor biografa, o volume parece comprimir questões existenciais e históricas na leveza tátil de suas 320 páginas envelopadas por uma capa de textura notável. Sim, eis mais um tema em que nos faz pensar, a força palpável da polpa do papel como objeto em que as palavras se inscrevem em corrente. Computador não se folheia. E o livro de De Waal aguça o tato como parte do olhar. Depois que o fechei, precisei tocar em alguns objetos e quadros, como se pudesse encontrar mais coisas no que suponho conhecer tão bem.

Assim como o tema, é difícil definir o gênero do texto. De Waal, um ceramista inglês com formação em Literatura em Cambridge, fez uma espécie de mescla entre relato de viagem e ensaio cultural, à maneira de um Claudio Magris (Danúbio), mas que no fundo (ou na superfície) tem a simplicidade de uma narrativa de família. Herdeiro da coleção de 264 miniaturas japonesas que antes era de seu tio-avô Iggie, Ignace Ephrussi, ele decide reconstituir a história dela desde que sua família a adquiriu, na Paris dos impressionistas. Isso o leva a viajar muitas vezes não só para a capital francesa, mas também para Viena (onde Iggie nasceu), Odessa (o porto ucraniano no Mar Negro onde toda essa genealogia judaica se originou) e, claro, Tóquio (onde Iggie morreu). Rever a história da Europa de 1860 a 1950 a partir de uma vitrine de bonequinhos japoneses, quase uma "toy art" de alto refinamento, parece dar o tom da narrativa.

Mas esse tom não é tudo. O que distingue o livro é a sensibilidade de De Waal, sua percepção de arquitetura, design e artes visuais, suas vastas leituras, suas perguntas inesperadas, sua meticulosidade de pesquisador. Não é por seus interesses múltiplos e por sua forma livre que o autor não determina seu assunto com clareza; é pela riqueza de associações, pelo respeito à grandeza da história que tem literalmente em mãos, gestos que seriam dignos de um grande ficcionista. Como artesão, ele se diz interessado na pátina que as coisas adquirem com o passar das épocas, as memórias que se imiscuem no marfim daqueles minúsculos bichos e personagens. Como os objetos são manuseados e como se relacionam com os demais, deslocando "uma parte do mundo em torno de si", é sua questão primária. Não se trata de ficar exibindo com empáfia as informações sobre aqueles bibelôs orientais em mansões europeias; o desejo é entender o contexto, a rede de biografias que evoca, para meditar com o leitor sobre nosso apego ou desapego às coisas. Ao menos para mim este é o tema maior, o motivo que anima toda a composição do livro.

De Waal considera um netsuquê, por levar até dois meses para ser feito, sem somar a destreza que os séculos ensinaram a cada geração, "uma pequena e tenaz explosão de exatidão"; cita Edmond de Goncourt o comparando com um aforismo por sua elegância; vê nele um trabalho ao mesmo tempo preciso e desprendido, com uma noção de tempo nem sempre acessível aos ocidentais. Pede por uma história do tato, que "não é apenas dos dedos, mas de todo o corpo", e conta que sempre lhe perguntam no ateliê se não odeia ver os objetos que fez indo embora do estúdio, em mãos endinheiradas que nem sempre lhes dão o devido valor estético. O autor responde: "Não odeio. Eu ganho a vida deixando que as coisas partam. Você só espera que elas encontrem seu caminho no mundo e tenham alguma longevidade". E esses netsuquês fizeram um caminho e tanto no mundo, independentemente de contar a história de sua família.

De Waal não cai no erro comum aos que investigam genealogia de dar a ela um peso lógico ou simbólico exagerado (como até Pedro Nava cai em suas primorosas memórias). Talvez o fato de sermos descendentes desta ou daquela nacionalidade e ter um certo "sangue" influencie tendências de nosso comportamento, mas não há nada mais fácil para transmitir vaidades ou culpas. Ele não está procurando a si próprio ao viajar e narrar as gerações que o antecederam. Num dos capítulos finais, escreve: "Não há nenhum sentimentalismo, nenhuma nostalgia. Trata-se de algo muito mais duro, literalmente mais duro. É uma espécie de confiança". Não se trata de querer entesourar memórias como se esquecer fosse um pecado, de depositar em coisas uma prova de identidade indispensável. Estou pensando no físico Jayme Tiomno, também por origem judeu russo, que, ao ser trazido para o Brasil, ouviu do pai que tudo que temos está na cabeça, na capacidade de pensar e lembrar o que importa. (Ele me contou isso em entrevista, deixando escapar um pequeno acesso emotivo, que logo tratou de reprimir. Isso só fez o argumento ainda mais poderoso.) Nenhum objeto substitui a memória; pode servir apenas como metáfora ou lembrete.

Me dou conta de que cheguei ao sexto parágrafo e mal resumi o livro, que afinal descreve passo a passo as vidas da família Ephrussi, que começou sua fortuna produzindo e especulando com trigo e depois se tornou dona de bancos, em determinado momento se aparentando aos Rothschilds e outros clãs milionários. Por outro lado, sempre estiveram muito próximos da alta cultura. De Waal alega consistentemente que Charles Ephrussi, editor de uma revista de arte e autor de um livro sobre Dürer, amigo de Degas e Renoir, secretariado pelo ótimo poeta Jules Laforgue, é uma das inspirações para Proust compor Swann, o esteta cosmopolita, habitué de salões aristocráticos, que adere à onda do japonismo do meio artístico francês e, mais tarde, passa ao gosto pelo estilo Império, mais pomposo e assimilado - e que defende Dreyfus e acaba pagando por isso o preço de ver explodir o antissemitismo latente na Belle Époque.

Esse é outro assunto forte no livro, e nos capítulos vienenses ganha tons trágicos. Viktor Ephrussi, que herda os netsuquês de Charles e os deixa no quarto de vestir da mulher, Emmy, colecionadora de roupas e amantes, se sente integrado à alta sociedade austríaca e pensa encarnar o ideal iluminista alemão da "Bildung", da educação erguida sobre clássicos literários. Sua filha, Elisabeth, advogada, ensaísta e poeta, que também ficaria um tempo como guardiã dos netsuquês, se corresponde com o genial Rainer Maria Rilke. Quando vem a Primeira Guerra, que poria fim à era dourada da civilização europeia, eles imediatamente aderem à causa. Mas depois dela se veem pintados como os culpados da derrocada econômica, em cuja esteira se segue o rolo nazista, e com a Segunda Guerra são obrigados a se dispersar em exílios. De Waal nota algo em que eu não havia pensado com clareza: essas famílias judias, de raízes espalhadas da Rússia à França e hegemônicas na Europa Central, também por isso incomodavam o nacionalismo vigente.

Viktor, diz o autor, deixa "sua terra de Dichter e Denker, de poetas e pensadores" transformada "na terra de Richter e Henker, juízes e carrascos", e emigra com apenas uma mala. Coube a Anna, a empregada alemã gentia, salvar os netsuquês da fúria burocratizada de Hitler, os quais foram para a Inglaterra com Elisabeth. É lá que Ignace, seu irmão, voltando da guerra em que atuara como soldado pelas forças americanas, um dia manipula as miniaturas e decide ir viver - com elas - no Japão. Embora fora de moda, ali os netsuquês deixam de ser uma vitrine exótica numa Europa tão criativa quanto destrutiva e, enfim, parecem levar uma vida feliz, com Iggie e seu jovem companheiro japonês, Jiro, onde diferenças culturais aproximam ao invés de afastar. Felicidade não como em comercial de TV, mas a simples sensação de ter mais dias bons que ruins, a realização sempre imperfeita de afetos e vocações, a consciência do que nos faz bem e o acesso frequente e desencanado a esses prazeres.

Leio o livro em alguns dias, ansioso para continuar a cada página folheada, triste ao chegar ao final, mas o objeto semiartesanal de celulose e tinta ganha alguma longevidade em minha mente. Penso nas coisas que levaria caso mudasse de país. Tenho um lado "maverick", sou homem de poucos apegos emocionais: minha mulher, meus filhos, uma pequena parte dos meus livros (os mais manuseados e anotados, com as lombadas mais craqueladas), algumas fotos, objetos e quadros, dentre eles seguramente a estampa japonesa que comprei em Kyoto de um poeta indo visitar um eremita no meio de montanhas e cachoeiras. Gosto do meu apartamento e de meus amigos, mas "já morei em tantas casas que nem me lembro mais" e os amigos viajariam até nós de vez em quando. Ao mesmo tempo, ainda quero realizar alguns sonhos, inclusive comprar isto ou aquilo - quem sabe o netsuquê de um tigre -, e aprender muito. É uma espécie de confiança.

Por que não me ufano (1). No andar de CDs da Saraiva, pergunto se já chegou o novo de Dori Caymmi, que me deixou curioso ao contar que as canções nasceram do incentivo de seu pai, o grande Dorival, para que tivessem melodia mais popular. O vendedor escreve no computador: Caimi. Se alguém que trabalha com música não conhece a grafia de uma família de compositores e cantores como essa, não há são Google que resolva.

Por que não me ufano (2). Não faz sentido ficar só reclamando de que os protestos contra a corrupção tenham reunido poucas pessoas; na capital federal foram 20 mil. A hora é de incentivar. Ocupemos Brasília!

Inté. Tiro três semanas de férias.

Como você, leitor, preciso descansar de mim.

Aforismo sem juízo

"Tristeza não tem fim, felicidade sim." Por isso a queremos sempre de volta

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