sábado, janeiro 09, 2010

J. R. GUZZO

REVISTA VEJA
J. R. Guzzo

Primeira classe

"Os ministros do STF, com as exceções de sempre,
têm conseguido, na prática, tornar a Justiça brasileira
cada vez mais incompreensível"

A Câmara Distrital de Brasília, essa mesma do noticiário policial, deveria começar 2010 com a inauguração de uma nova sede, cuja construção foi decidida em 2001, teve as obras paralisadas durante quatro anos por ladroagem geral e seria entregue, finalmente, em fevereiro próximo. Em fevereiro? Eis aí um real problema. O novo prédio, um colosso de 50 000 metros quadrados que atenderá aos confortos dos 24 deputados de Brasília e custou ao contribuinte brasileiro quatro vezes o previsto no orçamento inicial, ou perto de 100 milhões de reais, terá de ser inaugurado por alguém. Mas quem? Um candidato natural, o governador do Distrito Federal, foi pego em flagrante recebendo um tijolo de dinheiro vivo no esquema de propinas recém-descoberto em seu governo; após se desligar do DEM, do qual iria ser expulso, termina o ano desfilando no bloco dos mortos-vivos da política brasileira. Outro nome indispensável para a cerimônia de inauguração seria o próprio presidente da Câmara Legislativa; mas foi esse, justamente, o deputado que a investigação policial filmou escondendo dinheiro na meia. Pediu afastamento do cargo, antes de ser deposto, e, como o governador, transformou-se em ectoplasma político.

Os dois, no momento, não estão em condições de inaugurar nem sequer um abrigo em ponto de ônibus; ou reencarnam até fevereiro, caso a história acabe esquecida até lá, ou a inauguração do mais novo palácio de Brasília, com heliporto, piso de granito e estacionamento para 1.000 carros, terá de ficar com o sub do sub do sub. Com o tempo todo que foi gasto em sua construção, o prédio bem que poderia ter ficado pronto um pouco mais cedo – o que teria permitido a festa antes de serem servidas ao público as imagens de escroqueria que todos viram. Ou então, já que a coisa atrasou tanto, que atrasasse mais ainda, para não haver cerimônia alguma em futuro visível. Mas não: a obra está sendo terminada bem agora, quando seus beneficiários mal podem colocar a cara na rua. É uma demonstração, talvez, de que a Divina Providência ainda não perdeu o senso de humor.

A Constituição brasileira proíbe a prática da censura em todo o território nacional; não se prevê nenhuma exceção. Mas o jornal O Estado de S. Paulo está sob censura desde o dia 31 de julho de 2009: não pode, por ordem judicial, publicar nem uma palavra sobre o processo por corrupção que envolve o empresário Fernando Sarney, filho do senador José. (O autor da sentença, um juiz federal de Brasília, é amigo querido da família Sarney.) Por quatro vezes, nestes últimos cinco meses, o jornal recorreu à Justiça pedindo que a censura fosse levantada; nas quatro vezes teve o seu direito negado. Viu-se obrigado, assim, ao disparate de apelar ao Supremo Tribunal Federal para resolver uma questão que já deveria ter sido resolvida muito antes e muito abaixo. Um desastre, sem dúvida – mas nunca se deve subestimar a capacidade do STF de tornar as coisas ainda piores do que já são. No caso, os ministros supremos decidiram manter a censura.

O jornal O Estado de S. Paulo pediu ao STF algo extremamente simples: que pusesse fim a uma situação obviamente ilegal, pois, se o artigo 5º da Constituição proíbe a censura no Brasil, o único entendimento possível é que não pode haver censura no Brasil. Nada disso, decidiu o Supremo; quem está errado, no seu entendimento, é o jornal. Deveria ter entrado com o recurso XPTO-1, em vez de entrar com o recurso XPTO-2, ou falhou em alguma outra questãozinha de baixa burocracia processual. Ou não poderia divulgar informações de um processo que corre sob sigilo de Justiça – sigilo cuja guarda não é responsabilidade da imprensa. Ou então, segundo o prodigioso raciocínio de um dos ministros, não existe censura alguma, pois foi um juiz quem proibiu a publicação das notícias sobre Fernando Sarney – e, se foi um juiz quem resolveu, não é censura, é apenas uma decisão judicial. Ou seja: se o autor da proibição fosse um sargento da PM, aí, quem sabe, talvez se pudesse discutir a coisa. Mas foi um juiz. Fim de conversa.

Os ministros do STF, com as exceções de sempre, acham que são os magistrados mais sábios que a humanidade já viu desde o rei Salomão. O que têm conseguido, na prática, é tornar a Justiça brasileira cada vez mais incompreensível.

Ainda bem que o Brasil, como nos garante o presidente Lula, é um país de primeira classe.

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