terça-feira, janeiro 26, 2010

ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN

Mercados atrasados

O ESTADO DE SÃO PAULO - 26/01/10


Mais de uma vez ocupei este precioso espaço com relatos de pequenos problemas econômicos que eu ou pessoas próximas vivenciamos no dia a dia, a partir dos quais procuro fazer algumas reflexões que possam ser de interesse mais geral. Retomo este veio para tratar do desenvolvimento dos mercados do ponto de vista das famílias (B2C, business to consumer), e não dos mercados intermediários (B2B, business to business) em que transacionam as empresas.

Nas últimas décadas os mercados B2C mais relevantes se modernizaram, incorporando tecnologia da informação em suas operações, melhorando as instalações físicas e diversificando a oferta. Alguns "sofisticaram" o atendimento ao consumidor - a máquina de café expresso já integra o kit básico de estabelecimentos comerciais até nas periferias. As empresas têm investido no desenvolvimento de marcas fortes e na segmentação dos mercados. No entanto, minha percepção é de que existe um descompasso entre a evolução da economia e a dos mercados B2C, que os consumidores brasileiros são vítimas do mal funcionamento desses mercados e com isso sofrem considerável perda de bem-estar.

O problema começa com a informação, elemento essencial para a boa decisão do consumidor. No Brasil, os preços embutem impostos e juros e o consumidor não consegue avaliar quanto de fato vale o que está comprando. Pagar à vista ou parcelado não faz nenhuma diferença, o que leva a decisões insatisfatórias: consumidores que prefeririam comprar à vista acabam parcelando porque não faz sentido fazê-lo sem desconto; ou não parcelam e "perdem a vantagem" do pagamento a prazo.

Muitas informações veiculadas em comerciais são claramente enganosas e induzem os consumidores a no mínimo perder tempo visitando as lojas para descobrir que é grande a distância entre o "a partir de" e o preço real. Isso para não falar nos asteriscos e nas ininteligíveis notas de rodapé com "esclarecimentos" sobre as condições da oferta. Todo bom livro de microeconomia tem um capítulo que trata das ineficiências causadas pela informação assimétrica. O exemplo clássico é o mercado de carro usado. É difícil para os compradores distinguir carros bons dos ruins, e isso leva à depreciação do valor dos bons. O problema é minimizado com informação e garantia.

Recentemente, acompanhei um colega estrangeiro na busca por um carro usado e fiquei impressionado com a precariedade do atendimento nas melhores lojas do ramo. Informações básicas, como histórico do carro e livreto de revisões, simplesmente não estavam disponíveis. E, como fazíamos muitas perguntas, os vendedores logo faziam cara feia e nos deixavam no meio do salão. Quisemos levar um carro ao mecânico, mas a política da loja (adotada amplamente) era que o mecânico viesse ao carro. O colega coçou a cabeça, desconfiado, e... acabou optando por usar táxi durante os meses de estadia no Brasil.

A dificuldade para comprar um eletroeletrônico aumenta com a diversidade da oferta, pois é raro encontrar vendedor que saiba distinguir uma coisa da outra. Numa loja de uma grande rede que gasta milhões em propaganda, pedi para ler o manual e a resposta foi singela: "Não posso abrir a caixa." Chamei o gerente, que confirmou a impossibilidade. Consultar rótulos dos produtos pode exigir instrumentos ópticos de ampliação e pelo menos alguns cursos técnicos para saber o significado das informações disponíveis. Até mesmo a mais simples e mais consultada, a quantidade de calorias, pode ser complicada, pois raramente as porções se referem à unidade do produto. Num pacote de sopa instantânea encontrei como porção 1½ colher de sopa; num de gelatina, a porção era ¼ de colher de sopa; e em outro produto a porção era ¾ de xícara.

Numa compra a prazo é impossível saber com precisão a taxa de juro efetiva (apesar de constar do contrato). Sobre o preço do produto recaem taxas de cadastro, avaliação do bem, pagamento de terceiros, além do IOF. Não adianta argumentar que o banco já conhece o cadastro, que o valor do bem é publicado na internet, muito menos indagar sobre que serviços os terceiros estão prestando. A resposta-padrão é que todos cobram essas taxas.

Noutra ocasião, uma conhecida financeira me pedia para assinar um contrato em branco, dizendo que eu o receberia preenchido junto com o carnê. Segundo o vendedor, este também era o comportamento-padrão e eu não deveria me preocupar, que eles nunca tinham tido nenhum problema. Acabei optando pela compra à vista, com empréstimo dos amigos. Mas e quem não tem essa opção? Assina em branco.

Já comentei em outro artigo (A teoria na prática é outra, 21/4/2009) neste espaço sobre a taxa de juros. Mas o tema é inesgotável. Nessa aventura de comprar o carro com o amigo me dei conta de que tanto faz financiar 100% ou 50% do veículo: a taxa é a mesma. Mas e a relação entre taxa de juros e risco? No segundo caso o risco é bem menor, pois, no caso de inadimplência, o credor recebe um bem cujo valor é muito superior ao da dívida. É tudo padronizado e, com os negócios aquecidos, as financeiras nem gostam de clientes "chatos" como eu e meu amigo. De fato, a teoria na prática é outra.

Temos boas leis. A do consumidor é um exemplo. O Brasil foi o primeiro país a publicar um código, avançadíssimo, de defesa dos direitos do consumidor, que adota os princípios da transparência e da informação. O problema é assegurar o respeito e fazer valer a lei. Buscar os direitos custa tempo e dinheiro. Com a (i)mobilidade nas grandes cidades, é preciso perder o dia de trabalho para enfrentar a fila nos bem-intencionados serviços de proteção do consumidor e gastar horas no telefone e em consultas do andamento do processo pela internet. A Justiça, mesmo a de pequenas causas, já está abarrotada e também exige tempo. O cidadão pesa o valor do prejuízo e acaba deixando para lá. Não é falta de consciência, como dizem muitos. É uma decisão bem racional e justificável. No final, correr atrás dos nossos direitos acaba sendo uma opção para aposentados e desempregados.

E não tratei, aqui, dos mercados de serviços regulados pelas agências, que beiram a calamidade. Construir uma sociedade de consumo democrática e "cidadã" (para usar o termo da moda) exigirá ampla e profunda reforma microeconômica, que assegure transparência, informação e os direitos dos consumidores.

*Antônio Márcio Buainain é professor do Instituto de Economia da Unicamp. E-mail: buainain@eco.unicamp.br

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