O GLOBO - 22/11
No domingo passado, milhões de brasileiros foram dormir sem saber dos resultados finais
No instinto de manter e ampliar seus privilégios, as altas burocracias têm na centralização uma aliada. Quando a oportunidade de centralizar não se apresenta naturalmente, o poder federal dá um jeito de criá-la. Foi o que o Brasil descobriu no domingo passado, dia 15, quando os resultados das eleições municipais foram divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com horas de atraso, numa total surpresa para uma população orgulhosa de seu sistema de urnas 100% eletrônicas, aquele que “dá de 7 x 1” no calhambeque eleitoral dos Estados Unidos. No pleito municipal anterior, o de 2016, às 20h do dia da votação do primeiro turno, os resultados finais nas principais capitais do país já eram conhecidos, e às 22h todas as urnas já haviam sido apuradas, informou O GLOBO em sua cobertura on-line das eleições. No domingo passado, milhões de brasileiros foram dormir sem saber dos resultados finais.
A culpa foi da centralização. Na tentativa de consertar o que nos vem sendo vendido desde 1996 como um sistema perfeito e indevassável de votação, o TSE decidiu centralizar a totalização dos votos num único computador instalado na sua sede, em Brasília. O novo sistema, pomposa e erradamente descrito como um “supercomputador”, dotado de Inteligência Artificial e contratado sem licitação à empresa americana Oracle por R$ 26 milhões, simplesmente “bugou”.
A primeira questão que o episódio suscita é por que cargas d’água é preciso usar Inteligência Artificial para o trabalho de soma aritmética de votos? Inteligência Artificial tem aplicações miraculosas em tarefas complexas com milhares de variáveis, como manufatura de robôs, gestão proativa de saúde, mapeamento de doenças contagiosas, automatização de investimentos financeiros e em ferramentas de conversação em linguagem natural. Usar Inteligência Artificial na tarefa repetitiva e simples de contar votos tem cara de ser apenas mais uma jabuticaba.
A segunda questão é mais delicada. Ela se refere às “vulnerabilidades” apontadas pelo relatório de 2018 da Polícia Federal. Foram elas que levaram a ministra Rosa Weber, presidente do TSE naquele ano, a decidir pela necessidade de um serviço centralizado. Não alimento a menor suspeita sobre a integridade do sistema eleitoral brasileiro. Como jornalista, já recebi dezenas de “denúncias” de fraudes nas eleições. A apuração das mais consistentes nunca produziu uma migalha sequer de evidências de que o sistema tenha produzido resultados fraudados. Como enfatizou o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do TSE, o fato básico, o voto, não se adultera no processo, e cópias impressas dos boletins de urna podem dirimir dúvidas posteriores.
Acredito que a ministra Rosa Weber, confrontada como relatório da Polícia Federal, tenha agido com a intenção de melhorar ainda mais o que já era bom. A história do matemático Abraham Wald (1902-1950) talvez tivesse a ajudado a decidir melhor. Durante a Segunda Guerra Mundial, os militares aliados encomendaram a Wald um estudo que permitisse proteger as seções dos bombardeiros mais vulneráveis à artilharia antiaérea do inimigo. A ideia era aumentar a segurança sem muito peso extra, blindando apenas os pontos cruciais. Wald recebeu estudos minuciosos dos aviões que voltaram para suas bases na Inglaterra depois de cumpridas suas missões sobre a Alemanha. As áreas mais atingidas foram a fuselagem e os sistemas de combustível. Os motores apresentavam o menor número de impactos.
Sua recomendação, surpreendente, foi: blindem os motores. Como assim, blindar as partes menos atingidas? Sim, explicou Wald, pois foram examinados apenas os aviões que, mesmo alvejados, conseguiram voar de volta para as bases. Estes, portanto, receberam impactos não fatais. Os aviões derrubados em ação não retornaram e não puderam ser periciados. Wald enxergou o óbvio que ninguém podia ver: os aviões abatidos receberam impactos fatais nos motores. Genial. Esse raciocínio aplicado às urnas eletrônicas pode levar à conclusão de que as potenciais falhas do sistema sejam mais de causa humana do que técnicas.
ESTADÃO - 22/11
Não demos nenhum passo para a resolução de nosso eterno problema fiscal
Cansado de me frustrar com a inação do governo no controle da pandemia, e com a sua recusa em propor e batalhar pela aprovação de reformas que são fundamentais para a retomada do crescimento e a melhoria na distribuição de rendas, resolvi olhar para o que outros países vêm fazendo a esse respeito. Na Europa, merece destaque o acordo liderado pela Alemanha e pela França para a criação de um fundo para financiar investimentos em infraestrutura nos países menos desenvolvidos da área do euro. Na área do Pacífico, foi assinado acordo envolvendo 15 países incluindo, entre outros, China, Japão, Coreia, Nova Zelândia e Austrália. Comparativamente aos países do Pacífico, cuja reação eficaz à pandemia impediu sua propagação, a Europa sofre uma segunda onda de contágio, correndo o risco de desaceleração ou de nova recessão. Porém, nenhum dos dois grupos abandonou a execução de projetos voltados ao aumento da produtividade e à aceleração do crescimento econômico, elevando o bem-estar de suas populações e reduzindo desigualdades entre os países.
No caso europeu, não há surpresa que a iniciativa tenha sido liderada por Alemanha e França, que foram os países responsáveis pela criação da união monetária. Desde o início era sabido que, para que uma união monetária tenha sucesso, são necessárias ou grande mobilidade de mão de obra entre países ou união fiscal. As barreiras culturais e de língua impedem que muitos trabalhadores de um país afetado por um choque que deprima sua economia migrem para outro que continue crescendo, mantendo o pleno emprego. Na ausência deste mecanismo, resta o recurso da união fiscal, através da qual recursos de impostos pagos pelos habitantes dos países que crescem são usados para financiar investimentos com altas taxas de retorno privado e social nos países deprimidos. Da mesma forma como a crise de 2008/09 tornou claro que a preservação da união monetária exigia a criação de uma união bancária, a crise da covid-19 revelou que era necessário que se desenvolvesse uma união fiscal. Ao reconhecer o problema e superar a oposição dos países “frugais” da área, Áustria, Dinamarca, Holanda e Suécia deram um passo importante para a consolidação da união monetária e para o crescimento sustentado da área do euro. Não menciono este problema para insinuar que o Brasil poderia pensar em alguma forma de união monetária, como uma moeda única para Brasil e Argentina, que não faz sentido nem para os alunos do primeiro ano de economia, mas para que nos miremos no exemplo de países que, diante do desafio da pandemia, inovaram e continuaram trabalhando para promover o crescimento.
No caso do acordo entre os países do Pacífico, a lição é dupla. Todos conseguiram por meio do isolamento social ou de rígido lockdown poupar vidas, aproximando-se mais rapidamente da normalidade. Porém, não interromperam o longo ciclo de negociações que os levou a assinarem o acordo pelo qual crescerá sua integração comercial, elevando a produtividade e o crescimento de todos. É uma iniciativa que vai na direção contrária à dos EUA que, pelo menos sob o jugo populista de Trump, caminhava na direção do protecionismo, influenciando Bolsonaro e reforçando o lobby de parte da nossa elite industrial que nunca conseguiu ver as vantagens que a abertura comercial tem para o País.
Ao fim do segundo ano de mandato do atual governo, qual é o balanço das realizações? Afora algumas reformas importantes, como a da Previdência e o marco do saneamento, não demos nenhum passo para a resolução de nosso eterno problema fiscal. Tão grave quanto é a desatenção com reformas que pudessem aumentar nossa produtividade. Um caso emblemático é o da reforma tributária, que poderia unificar os impostos sobre bens e serviços em um IVA cobrado no destino, removendo o incentivo para a guerra fiscal entre Estados e criando condição necessária para enfrentar o desafio de uma significativa abertura comercial. Interessado na manutenção da popularidade que favoreceria sua reeleição, Bolsonaro sequer cogita esta alternativa. Não há surpresas. Ele não está interessado no crescimento da produtividade e na melhoria da distribuição de rendas, mas apenas em obter do Centrão apoio que garanta sua sobrevivência no cargo até o fim de 2021, e sua reeleição em 2022.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS
FOLHA DE SP - 22/11
Se usássemos tambores ou sinais de fumaça, nos entenderíamos melhor
Neste ano, engolfado pelo conluio tenebroso entre confinamento e Bolsonaro, entrei em diversos grupos de zap cujo objetivo é defender e aprimorar a democracia. “Conversas progressistas”, “Esporte pela democracia”, “#estamosjuntos”, “Autores democratas”, “Escola antirracista”, “Corredores antifascistas” e por aí vai. Não houve um único grupo em que não chegássemos, em algum momento, numa batalha campal.
Engraçado (nem um pouco, na verdade) é a semelhança das brigas. Frases como “Gente, vamos respeitar a opinião alheia?”, “Discordar é uma coisa, debochar é outra!”, “Desculpa, não era esse o tom que eu quis dar”, “A gente já não tinha decidido isso, pessoal????!” e invariavelmente: “fulano saiu do grupo”, “sicrano saiu do grupo”, “beltrano saiu do grupo”.
Depois de participar da décima batalha virtual, comecei a desconfiar que o problema não era das pessoas, das causas, do desespero com o governo ou do estresse com a quarentena. A encrenca era a ferramenta. Quando penso, hoje, sobre criar um movimento coletivo via WhatsApp, a imagem que me vem à cabeça é a de servir um almoço, coletivamente, sobre uma esteira rolante.
Às 14:32:28 o Daniel põe um garfo. A Joana chega às 14:32:35 e põe a faca, o Valter, entrando às 14:32:43, reclama: “Gente, tá o garfo num lugar e a faca três metros depois, não seria mais interessante botarmos um do lado do outro?”. “Desculpa, querido, mas você chegou agora, eu e a Joana estamos aqui tentando botar a mesa, se você tivesse chegado antes, poderia ajudar mais em vez de criticar”. Aí vem alguém com a salada, outro estende a toalha por cima, a carne fica ao lado da sobremesa. Oito da noite, um desavisado entra no grupo e sugere, sem saber o que rolou ali o dia todo: “pessoal, e se puséssemos a mesa?”.
Não é a mente vazia a oficina do demônio, é o WhatsApp. Dentro dele a conversa não se concatena, os raciocínios não fecham, as decisões invariavelmente ficam no ar. É uma ferramenta perfeita pra disseminar o caos, no bom e no mau sentido. O bom sentido é a bagunça dos grupos de amigos. Ninguém ali está tentando construir nada, só quer se divertir postando memes, gifs, vídeos engraçados. Qualquer um pode entrar a qualquer hora e em qualquer ponto da conversa e simplesmente sorrir com o que passa na esteira.
Já no lado maléfico da balbúrdia está a disseminação de fake news. Justamente pelo fato de as conversas não terem começo, nem meio nem fim, tudo chega entreouvido. Frases soltas. Informações desconexas. O Trump querendo que parassem a contagem dos votos nos estados onde estava na frente e poderia perder, ao mesmo tempo em que exigia a continuação da contagem onde poderia ganhar é o tipo de loucura que só faz sentido neste mundo do WhatsApp.
O fato de estarmos vinte e quatro horas por dia com a cara no celular, discutindo em 176 grupos, simultaneamente, também não colabora muito na concentração. Incêndio no Pantanal, legalização do aborto, mamadeira de piroca, eleição na Índia, violência policial e figurinhas da Hebe fazendo coraçãozinho de mão se misturam, sem muita hierarquia e em alta velocidade. É na tela plana que germinam as Terras planas. Duvido que, se estivéssemos todos em torno de uma mesa, olhos nos olhos, as pessoas teriam coragem de dizer metade dos absurdos que enviam por WhatsApp.
Acho até que, se em vez de celulares usássemos tambores ou sinais de fumaça, nos entenderíamos melhor. Mesmo porque deve ser bem difícil comunicar, com toques de atabaque ou uma fogueira, conceitos tais como “mamadeira de piroca”.
Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.
FOLHA DE SP - 22/11
Crise no Amapá revela falhas em todos os Poderes
A decisão judicial de afastar por 30 dias a diretoria da agência responsável pela regulação do setor de energia, Aneel, e do órgão responsável pela operação do sistema, ONS, revela quanto estamos distantes da normalidade institucional e reféns do voluntarismo desinformado.
A razão alegada foi evitar que os gestores possam interferir na investigação das causas do apagão que atinge o Amapá há cerca de 20 dias. Na ânsia de achar culpados, a decisão pôs em risco o abastecimento de energia elétrica em todo o país.
O juiz concluiu, precipitadamente, que o apagão pode ter ocorrido por uma negligência óbvia e com a complacência da diretoria da Aneel e do ONS. A questão, porém, é bem maior
A liminar revelou desconhecimento sobre a teia de controles cruzados no setor, os problemas de coordenação nas diversas instâncias deliberativas e a possível longa sequência de eventos para a ocorrência desse apagão.
Pior ainda, ela deixou acéfalas as instituições responsáveis pela gestão nacional do fornecimento de energia. Felizmente, o TRF-1 suspendeu a liminar na sexta-feira (20).
A estrutura do setor elétrico é tecnicamente complexa. Administrar o sistema de geração, transmissão e distribuição requer modelos matemáticos sofisticados, além de projeções da oferta e demanda anos à frente em razão da longa maturação dos investimentos.
A estabilidade do sistema exige normas de segurança em razão de restrições técnicas e operacionais de difícil coordenação. Falhas, porém, podem ocorrer mesmo com todos os cuidados, como mostra o apagão na Califórnia em agosto deste ano.
O sistema elétrico brasileiro tem problemas no desenho das relações comerciais e de operação entre seus agentes. Temos também frágeis critérios de qualificação técnica para os participantes no setor.
Muitos fatores contribuíram ao longo de anos para o desastre ocorrido no Amapá. Edvaldo Santana, no Valor Econômico de 19/11/2020, sistematiza a extensão dos desafios na regulação do setor elétrico.
Falhas graves no sistema elétrico podem ser previsíveis, mas ainda assim inevitáveis no curto prazo. Isso decorre do longo período necessário para corrigir a infraestrutura. O governo Temer elaborou uma proposta de reforma da regulação do setor elétrico, PLS 232/2016, que anda lentamente no Senado, presidido por um senador do Amapá.
Em vez de enfrentar as fragilidades do desenho regulatório, com frequência optamos por ampliar a intervenção atabalhoada do setor público, como ocorreu na gestão Dilma.
O ativismo desinformado contribui para ampliar a insegurança no país, desestimular investimentos em infraestrutura e dificultar o enfrentamento os problemas.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.