domingo, outubro 25, 2020

Captura - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 25/10

Isenções tributárias são resultado de um Estado capturado por pequenos interesses, mas a conta dos gastos públicos é paga por todos


O catálogo de benefícios tributários parece interminável. Recentemente, um deputado federal propôs isentar de IPI os carros comprados por corretores de imóveis. Não deveria surpreender. Táxis não pagam IPI. Caminhões também não.

O programa Repetro permite ao setor de petróleo importar máquinas sem pagar tributos federais. O Recine estabelece que sejam desonerados equipamentos para salas de cinema.

A legislação prevê uma alíquota menor para as incorporadoras do Minha Casa, Minha Vida. A indústria na Zona Franca de Manaus se beneficia da redução de IPI, além de outros privilégios tributários.

As empresas podem deduzir do Imposto de Renda seu investimento em certas atividades. O Rota 2030 concede benefício semelhante para a indústria automotiva. Muitos bens não pagam IPI, como caixa registradora eletrônica.

Doações para a produção cultural (Lei Rouanet), atividades cinematográficas (Lei do Audiovisual) e programas esportivos (Lei de Incentivo ao Esporte) são deduzíveis do Imposto de Renda.
Livros não pagam tributos. O mesmo ocorre com o papel utilizado para a impressão de jornais. Discute-se prorrogar a desoneração da folha de pagamentos, que beneficia 17 setores.

​Lideranças do agronegócio defendem que o imposto sobre valor adicionado não seja cobrado do produtor rural estabelecido como pessoa física (modelo adotado até por grandes fazendeiros para pagar menos tributos). Pedem, porém, que os compradores dos seus produtos possam se beneficiar de crédito tributário. Demandam, ainda, que os insumos utilizados pelo setor tenham alíquota zero.

As instituições filantrópicas são isentas da contribuição da folha de pagamentos, que financia a Previdência. Seus trabalhadores, no entanto, têm direito à aposentadoria, em grande medida paga com os tributos arrecadados dos demais.

O estado de São Paulo reduz o ICMS para muitos bens e serviços. O anexo I do RICMS sistematiza as isenções em 173 artigos (um deles trata do bulbo de cebola e outro, de preservativos). O anexo II sumariza os itens com redução da base de cálculo do imposto em 76 artigos. Vale ler esses anexos inacreditáveis, cujos links estão nesta coluna.

O estado também permite deduzir do imposto a pagar doações ao Programa de Ação Cultural e a atividades esportivas. A prefeitura paulistana possui leis semelhantes.

Essa é apenas uma amostra das distorções atuais, resultado de um Estado capturado por pequenos interesses. A conta dos gastos públicos, porém, acaba sendo paga por todos, ainda que de forma dissimulada e disfuncional. Nosso subdesenvolvimento parece obra de meticuloso desvario.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Riscos da inflação e de repressão financeira - AFFONSO CELSO PASTORE

O Estado de S.Paulo - 25/10


Ainda que em manifestações públicas empresários e economistas expressem confiança no cumprimento do teto de gastos, não é isso que indicam o comportamento do câmbio e da curva de juros, cuja inclinação positiva continua aumentando. Não precisam manifestar sua crítica. O mercado fala por eles.

Para evitar que o risco de insolvência cresça devido ao aumento do custo da dívida, o Tesouro optou por financiar o déficit primário deste ano com títulos de prazos curtos, que têm prêmios de risco mais baixos. Na rolagem da dívida que vence, resgata os títulos de prazos longos com recursos da venda de títulos mais curtos.

Com isso o prazo médio da dívida pública já caiu para 35 meses, e deverá cair ainda mais em 2021, quando ocorrem resgates superiores a R$ 300 bilhões por trimestre. Nesta velocidade, o prazo médio de vencimento da dívida rapidamente cairá abaixo de 30 meses.

A dificuldade na administração da dívida é uma primeira manifestação da dominância fiscal, que leva à inflação e à repressão financeira (a obrigatoriedade imposta aos intermediários financeiros de comprarem títulos com vencimentos mais longos), que já existiu nos anos 70 e 80, quando muitos dos que atuam no mercado financeiro não haviam nascido e desconhecem a magnitude das distorções que provoca.

Os prêmios de risco se manifestam também na taxa cambial, que desde o início do ano já se depreciou perto de 40%. Se o Banco Central atuasse sobre a curva de juros reduzindo sua inclinação positiva, pressionaria ainda mais o câmbio, e se tentasse conter a depreciação cambial com intervenções mais ativas no mercado de câmbio elevaria a inclinação positiva da curva de juros, encurtando ainda mais o prazo médio da dívida.

Estes são exemplos de ações que apenas escondem a manifestação do risco em um dos dois mercados, e como o verdadeiro risco é fiscal, e não desaparece com mágicas, o prêmio apenas migraria de um mercado para o outro.

Nesta situação, o risco de inflação é maior do que se supõe. Há muito aprendemos que o repasse cambial para os preços dos bens tradables não é afetado pelo hiato do PIB. Diante de uma depreciação cambial, os produtores de soja, carne, milho, arroz, açúcar, entre muitos outros, elevam os seus preços no mercado interno e se não conseguirem vender o que produziram exportam todo o excedente àquele preço.

Por isso, a depreciação cambial eleva fortemente os preços pagos aos produtores de produtos agrícolas, que são repassados aos preços nos supermercados e nas feiras livres, elevando o item “alimentação no domicílio” dentro do IPCA, que nos últimos 12 meses já cresceu 15%.

Para os 66 milhões de brasileiros que por quatro meses se beneficiaram de uma ajuda emergencial de R$ 600 ao mês, há enorme diferença. Como a demanda de alimentos tem uma elasticidade-preço muito baixa, e eles têm de se restringir ao seu orçamento, que encolheu com o fim do auxílio emergencial, terão de cortar outros gastos para continuar comendo.

Isto significa que o peso da alimentação no domicílio na sua cesta de consumo será maior do que o usado pelo IBGE no cômputo do IPCA. Sua “inflação percebida” será maior do que a inflação medida por todos os possíveis núcleos computados pelos economistas. Não adianta tentar convencê-los de que houve apenas uma mudança de preços relativos porque as expectativas ainda estão ancoradas às metas.

O Banco Central sabe que a desancoragem ocorrerá, e os indivíduos sabem que sofreram uma dupla perda: da renda nominal, devido ao fim do auxílio emergencial, e da renda real, devido ao aumento da inflação percebida.

Nestas circunstâncias, a reação de um governo populista é transferir mais renda à população, aumentando o desequilíbrio fiscal e piorando o risco de inflação e da repressão financeira.

Se o País não reafirmar com ações concretas, e não com palavras, a sua determinação de atender ao teto de gastos, não há como impedir uma curva de juros mais inclinada e um câmbio mais depreciado.

O Banco Central seria colocado na incômoda posição de ter de elevar a taxa de juros quando a economia ainda se encontra fortemente deprimida, e para fugir desta armadilha pode ser forçado pelo governo a taxar as saídas de capitais ou mesmo impedi-las para evitar uma sangria nas reservas.

Todas estas formas de repressão financeira são extremamente prejudiciais à economia, e a única forma de evitá-las é o retorno rápido e sem subterfúgios à austeridade fiscal.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS.

A Âncora e a Corda: algumas propostas possíveis - ARMÍNIO FRAGA

FOLHA DE SP - 25/10

Governo precisa sinalizar como vai parar de tomar mais empréstimos para pagar juros


Há um ano e meio escrevo esta coluna procurando variar, mas com frequência voltando a um tema: como viabilizar investimentos vultosos em áreas de alto retorno social, como saúde, educação, assistência social, para colocar o Brasil em um caminho de crescimento inclusivo, acelerado e sustentável e, ao mesmo tempo, e de forma complementar, como sanear as finanças públicas do país, fonte de incertezas paralisantes e de crises recorrentes.

Hoje, os dois objetivos estão ameaçados. O que fazer?

Sim, algumas reformas importantes foram feitas a partir de 2017. O quadro fiscal melhorou com a introdução do teto de gastos e com a aprovação da reforma da Previdência. No entanto, a despeito desses esforços, as fragilidades fiscais seguem nos assombrando, ameaçando a sustentação do teto, a única âncora fiscal que nos resta. Ademais, o clima geral de negócios piorou em face de sinalizações preocupantes do atual governo (que, por razões de espaço, não poderei detalhar aqui). Como se não bastasse, com a pandemia a situação social e fiscal se deteriorou ainda mais.

Após sete anos de déficits fiscais (primários) e mais de 10% de queda acumulada do PIB, a dívida pública se aproxima dos 100% do PIB. Mesmo respeitado o teto, o déficit primário só seria eliminado em cinco anos, o que não seria suficiente. A rolagem da dívida vem ficando cada vez mais difícil e o Tesouro está sendo obrigado a encurtar os prazos da dívida. As taxas juros de prazo mais longo exibem um elevado prêmio de risco. O dólar a R$ 5,60 grita o mesmo recado. Não se iludam com a bolsa. Estamos mal.

Claramente falta uma âncora fiscal mais robusta. Em bom português: o governo precisa sinalizar como vai parar de tomar mais empréstimos para pagar juros, pois essa bola de neve é insustentável. Chegou a hora de definir metas plurianuais para o saldo primário, que em quatro anos precisa passar de um déficit de 3% do PIB em 2019 para um superávit de pelo menos 3%, de forma a promover uma gradual queda da dívida pública. Essa segunda âncora fiscal nos serviu bem por 15 anos a partir de 1999 e precisa ser relançada.

Como chegar lá? Em vários círculos, inclusive no governo, prevalece a posição de que a tributação não pode aumentar. Penso diferente. Eliminar uma série de subsídios injustificáveis e reduzir a regressividade da tributação nos permitiria obter um espaço fiscal de pelo menos dois pontos do PIB. Segundo dados do Monitor Fiscal do FMI recém-publicado, uma recuperação modesta da economia brasileira ao longo de quatro anos melhoraria o saldo primário em cerca de dois pontos percentuais do PIB. Os dois pontos restantes, teriam que vir do lado dos gastos, com a ajuda de medidas como a PEC da flexibilização.

Muitos acreditam que essas medidas seriam recessivas. Ignoram o fator confiança. Ignoram que na raiz da profunda recessão que começou em 2014 estava um colapso fiscal de cerca de seis pontos percentuais do PIB. Relevam também 1999, quando ocorreu o inverso: fez-se um ajuste de quatro pontos e evitou-se um colapso da economia (à época a projeção de consenso no início do ano era de queda de 4% no PIB; acabou ligeiramente positivo).

Vejo tensões em torno da manutenção do teto no curto e no longo prazos. No curto prazo, há legítimas pressões para a prorrogação por mais algum tempo de gastos com assistência social. O teto é uma âncora. Embora boa em tese, como toda âncora, depende da resistência da corda, que no caso corre o sério risco de não aguentar a tensão.

Não recomendo a volta ao orçamento pré-Covid em apenas um ano. A economia vem se recuperando, mas segue fraca. Melhor seria deixar um pouco do ajuste para 2022, sem, no entanto, abandonar a meta de superávit primário de 3% do PIB para 2024.

Não ignoro que 2022 seja um ano eleitoral, o que tornaria pouco crível a promessa de qualquer aperto adicional naquele ano. Mas nas circunstâncias atuais é o caminho que nos resta, pois há sinais de que importantes reformas estruturais não parecem politicamente viáveis no curto prazo. E nem estamos falando dos estados, a maioria em crise, em alguns casos grave.

Num prazo mais longo, a aderência ao teto levaria ao final de seus sete anos a uma queda de cerca de três pontos percentuais do PIB no gasto federal (em função do gasto crescer menos que o PIB).

Quedas semelhantes terão que ocorrer também nos estados, onde gastos com folha de pagamentos e Previdência são insustentáveis.

Sem completar a reforma da Previdência e fazer uma reforma do RH do Estado que tenha impacto de curto prazo (inclusive sobre a qualidade dos serviços públicos), será impossível fazer o ajuste fiscal necessário e ,ao mesmo tempo, gerar recursos adicionais em maior escala para investir nas áreas sociais.

Mesmo sem as grandes reformas, seria possível com os ajustes propostos acima criar algum espaço para investimento, fazendo o teto crescer 1% ao ano acima da inflação. Dessa forma, ao final dos sete anos, o ajuste fiscal do governo como um todo ocorreria dividido em partes mais ou menos iguais entre cortes de gastos, aumentos de tributação e ganhos de receita com a recuperação. Pela ótica do gasto haveria uma redução do tamanho do Estado. Pela ótica da arrecadação haveria um aumento, voltando aos níveis de 2011.

Fazer as reformas para reforçar o SUS e a rede de assistência social seria a melhor opção. Não sendo possível, recomendo a opção acima.

Embora não recomendáveis, outras opções seriam possíveis. Apresento aqui os casos extremos: por um lado, com as reformas, usar as economias para reduzir a carga tributária; por outro, sem as reformas, seguir aumentando a carga para gastar mais ou para preservar privilégios. Essa última opção tem prevalecido há décadas no Brasil, com resultados modestos, a meu ver, bem modestos.

No âmbito da assistência social, seria sensato prorrogar modesta e temporariamente o auxílio emergencial, enquanto se aprofunda a discussão sobre o formato e a viabilidade de propostas mais permanentes. Importante notar que tanto a esquerda quanto o governo se recusam a considerar ajustes internos à rede de assistência, uma curiosa convergência. Fica claro aqui que a eliminação dos aspectos regressivos da tributação nos daria autoridade moral para uma discussão desarmada do
desenho da assistência social.

Claramente estamos diante de um caso extremo de cobertor curto. Não é possível ao mesmo tempo manter o teto atual, gastar mais com assistência social e SUS e não elevar a carga tributária. Não é possível esperar tanto tempo pelo ajuste fiscal. Se as reformas estruturais avançassem, a margem de manobra fiscal aumentaria. Idem com a eleição em 2022 de uma alternativa de centro.

Arminio Fraga
Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

Na guerra da vacina e do general Maria Fofoca, bomba econômica está armada - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 25/10

O custo da comida ainda não incomoda porque ainda se pagam auxílios, mas se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas


A diversão está garantida nessas próximas semanas em que o pavio da bomba econômica continuará queimando, sem que o país em geral se importe muito. A diversão maior, no sentido de desvio de atenção, virá da guerra da vacina que ainda nem existe, das decisões que o Supremo deve tomar sobre a obrigação de tomá-la e da aprovação da "vacina chinesa paulista" pela Anvisa e pelo governo.

Enquanto isso, o centrão e alas do governo se ocupam de disputar cadeiras ministeriais. Jair Bolsonaro trata de sua preocupação maior, livrar filhos da cadeia. Parlamentares articulam a eleição dos novos comandos do Congresso.

Até fins de novembro, as eleições nos EUA e nas cidades brasileiras vão dizer qual o valor de mercado eleitoral de extremistas e lunáticos em geral.


Eventual derrota de Donald Trump e de candidatos bolsonaristas nas cidades maiores pode aumentar o passivo político de Bolsonaro, embora esse débito talvez não seja cobrado tão cedo.

O risco maior para o presidente é a política econômica, ora em estado de animação suspensa.

Parte do centrão e gente do governo disputam a cadeira do general Luiz Ramos, ministro da Secretaria de Governo. Com o general Braga Netto, ministro da Casa Civil, Ramos levou Bolsonaro a criar uma coalizão bastante pelo menos para evitar um impeachment.

Foi chamado na sexta-feira de Maria Fofoca pelo ministro do Mau Ambiente, Ricardo Salles, desafeto dos militares.

Não importa muito a rixa que detonou o mexerico vulgaríssimo, portanto condizente com este governo. Interessa que isso explicitou movimentos para decapitar Ramos. Outra disputa de boquinha-mor é a do Ministério do Desenvolvimento, que Bolsonaro estuda recriar. Enquanto o país morre, queima e se endivida, é disso que tratam no Planalto.

A revista Época revelou que Bolsonaro recorre à Polícia Federal, a seus espiões e a outros recursos do governo para cuidar de rolo de filho. É disso, talvez um crime de responsabilidade, que trata o presidente.

Não se liga muito para os sinais de infecção na economia. Desde fins de agosto, as taxas de juros subiram degraus e lá no alto ficaram. O dólar não baixa da casa perigosa dos R$ 5,60, dado o rebu incompetente de um governo endividado.

A combinação de desvalorização da moeda e de auxílio emergencial levou os preços dos alimentos às maiores altas em mais de década (como em 2008, 2013 e 2016).

O custo da comida ainda não incomoda de modo generalizado, como de costume, porque ainda se pagam auxílios. Se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas.

Juros de longo prazo e dólar foram às alturas em grande parte porque o país não tem Orçamento para 2021, porque pode ser que tenha até dois (um outro "emergencial") e porque os donos do dinheiro temem furos no teto de gastos. Bolsonaro e a elite política empurraram a discussão dessa crise para depois de novembro.

As soluções para o impasse orçamentário não são politicamente boas. Bolsonaro pode decidir estourar o orçamento, o que vai dar em besteira feia. Pode ignorar o auxílio aos pobres, o que vai dar em fome feia. Pode arrochar outrem a fim de financiar alguma renda básica. Terá de enfrentar reformas, como a politicamente divisiva mudança tributária, sem o que o país vai ficar mais encalacrado (não se trata de dizer que vai ficar melhor ou pior para esta ou aquela gente, mas ficará encalacrado).

Mesmo que não se tomem as piores decisões, a retomada da economia ainda será incerta. Mas a gente se diverte com outros horrores.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).