quarta-feira, junho 17, 2020

O asqueroso roubo das vítimas - ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 17/06

O investimento inconsciente na ambiguidade e na incoerência deixa a nu um sistema que corrói o regime democrático, desmoralizando o seu processo eleitoral


Meu instinto brasileiro de desconfiança, pois vivo num país de ladrões da coisa pública, acendeu a luz amarela na medida em que os nossos múltiplos “governos” foram autorizados a adquirir sem licitação, e com a mais justa urgência, remédios, aparelhos de respiração, máscaras e a construir hospitais e outras facilidades em função da expansão da covid-19. Falou em suspender licitação, eu imediatamente pensei em corrupção. Lamentavelmente, não deu outra.

Mencionei “governos”, mas poderia invocar o modo como atuam: por meio dos tradicionais conselhos e comitês. Esses coletivos de elite projetados para que as responsabilidades sejam diluídas e se esvaziem no velho jogo de empurra acusatório e “dentro da lei”. A coletividade de um conselho (ou comissão) dissolve contabilidades e protagonismo individual de modo que todos se salvam. É, portanto, comum no âmbito administrativo: o nível federal joga a responsabilidade para o estadual e este ao municipal que a empurra novamente para “cima” de modo que, com o passar do tempo, o engavetamento ou o pedido de vistas dos inquéritos abertos dentro do nosso legalismo aristocrático evaporem ou sejam engavetados.

Esses mecanismos impeditivos de atribuição de responsabilidade são parte estrutural no nosso sistema político-legal. Eles garantem que os nossos eleitos invertam seus papéis num regime democrático já que, devidamente “empossados”, eles deixam de ser nossos servidores e se tornam os que lucram com o nosso trabalho. Somos alvos de suas promessas como candidatos apenas para sermos usados e abusados depois que esses “eleitos” ocupem seus cargos quando então (com raras exceções) lucram e, como de uma “classe burocrática” que detém o poder de legislar e de (deslegislar), trabalham mais para a sua hegemonia e seus interesses do que para quem os elegeu. O investimento inconsciente na ambiguidade e na incoerência deixa a nu um sistema que corrói o regime democrático, desmoralizando o seu processo eleitoral!

Essa é uma das resistências mais óbvias para quem vai ao fundo do lamaçal da polícia brasileira neste momento no qual rondamos o suicídio democrático em paralelo a uma pandemia. Esse fato não previsto por nenhum dos muitos “Joãos de Deus” salvacionistas, que são parte e parcela da nossa concepção de mundo. Uma visão marcada pela imensa intenção – tanto à direita quanto à esquerda – de não “mexer” num “Estado” que vale mais para uns do que para todos. No Brasil, um Marx comunista foi virado pelo avesso, mas poucos têm consciência desse movimento.

O resultado, em meio à crise permanente, é o asqueroso roubo de equipamentos médicos de primeira hora pelas “autoridades administrativas” num habitual gangsterismo de família e compadrio, como é normal e banal no nosso sistema político.

Enoja, aos 83 anos, testemunhar essa iniquidade que rouba dinheiros, vidas e, além disso, confiança e esperança para não falar na total marginalização do sistema democrático. É contra esse asco que devemos resistir, já que ele é o núcleo da nossa antidemocracia.

Ora, se quem rouba dos nossos doentes são precisamente os eleitos em disputas regradas por todos os múltiplos tribunais cujos vocais não perdem a oportunidade de nos dar aulas de democracia, pois eles confundem sentenças com discursos, estamos todos envolvidos numa perversão. Elegemos quem logo vai roubar recursos públicos ou, pior do que isso, vai tentar realizar um republicanismo absolutista invertendo (ou traindo) suas promessas de campanha.

Tal reação seria o fim da democracia, ou o começo de uma maior compreensão do nosso papel como cidadãos? A prova do pudim está em comê-lo, disse num texto célebre Karl Marx. No nosso caso, comemos a ponto da indigestão o pudim da direita – um liberalismo sem competição e totalmente legalizado, tal como ocorria no velho Portugal das corporações de ofício –, mas (entrementes) também provamos em altas fatias o bolo da esquerda lulopetista. A prova é clara: comemos tanto de um lado quanto de outro o mesmo pudim. Hoje, porém, sentimos a sua amargura...

O triângulo - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 17/06

Tantas coisas a conhecer em nós e lutamos para descobrir a vida alheia


Foram duas epidemias no ano em curso. A primeira, trágica, foi de coronavírus. A segunda, sem vítimas, foi a das lives. Não eram apenas médicos dando opiniões aguardadas sobre doenças ou cantores famosos nos ajudando a superar o confinamento. Todo mundo decidiu falar para o mundo.

O anonimato virou a dor mais aguda do mundo da internet. Disputas de likes e de fãs são fundamentais de uma forma objetiva: transformam-se em dinheiro. O argumento seria objetivo e bom: desejo ser conhecido porque preciso de recursos materiais. Ponto. “Monetizar” as intervenções na internet talvez seja o novo “concurso do Banco do Brasil”. Na minha geração, a instituição pública era um caminho indicado pelas mães de classe média para seus rebentos. Aquelas senhoras que se orgulhavam da aprovação dos filhos no disputado concurso, hoje tornadas avós, comentam que seu neto tem um milhão de seguidores.

O ponto subjetivo das lives é mais interessante. Ser conhecido é existir. O anonimato é a morte dolorosa em vida. Novidade? O grego Heróstrato tocou fogo no Templo de Diana, em Éfeso (atual Turquia), unicamente para... ser lembrado pela posteridade. Virou uma doença que atinge criminosos e terroristas, a “síndrome de Heróstrato”, mal daqueles que fazem atos violentos com o objetivo de serem conhecidos. Seríamos herdeiros dele? “Quem me cita me excita”, como li em uma página da internet. Um novo Eros, uma veleidade, uma forma de tocar a eternidade possível do mundo atual, um ou dois verões no hall da fama.

A fama é tudo, o anonimato, o vazio angustiante. Fala-se de uma dor que acometeria celebridades como membros do programa Big Brother: viram estrelas supernovas no céu e, em poucas semanas, escasseiam convites e o trend topic vira a pergunta “quem é ele”? “Ex-BBB”, ainda assim, parece ser um purgatório preferível ao vácuo do anonimato eterno.

As críticas à fama, claro, abundam em quem não a possui. O desdém da raposa pelas uvas inalcançáveis foi alvo de muitas reflexões de Esopo a La Fontaine. Racionaliza-se a frustração. Sim, nossos ataques falam de nós e de nossas dores. Em inglês usa-se a expressão “sour grapes” para o amargor profundo do cacho não degustado.

Ainda que levemos em conta o demônio de olhos verdes do ciúme e da inveja, o que é a fama? É dinheiro, já vimos. Assim como alguns juízes perdoam o “crime famélico” (a vítima rouba para comer), os gregos poderiam ter ignorado o ato incendiário de Heróstrato, pois ele buscava a mesma perenidade dos que tinham construído o templo que seria uma das sete maravilhas do mundo antigo. Como condenar no terrorista o idêntico impulso do arquiteto? A morte de Lady Di foi atribuída, pelo irmão enlutado, aos tabloides sensacionalistas que não permitiam que a infeliz princesa tivesse vida privada. Ele comentou que era irônico que a mulher que tinha o nome da deusa caçadora (Diana) fosse a mais caçada do mundo de então. O público concordou e ficou horrorizado com a fúria dos paparazzi que lutavam por fotos indiscretas que o mesmo público horrorizado consumia avidamente. Hipnose de dois lados, espelho duplo, comida e fome em um looping. O Templo de Diana foi queimado por um louco por notoriedade e Diana Spencer lutou para chegar à fama e queimou-se porque havia devotos da deusa da caça travestidos de caçadores.

Ganharemos em profundidade percebendo que o site de fofocas precisa de três ângulos para formar a figura equilátera: a entidade pública que busca (com sofreguidão) o néctar da fama; o público faminto que deseja ver para saber e para criticar e, por fim, o repórter/fotógrafo/editor que identifica a dupla necessidade e contata os polos que reclamam. O triângulo do jogo da fama é um polígono estável. Uma constante? Atribuir o mal ao vértice oposto: “Eles não me deixam em paz” complementa “esta gente só quer flashes” e “o público tem direito à informação e eu ao dinheiro”.

A fama nunca incomoda. Claro que sim. Uma vez, em um programa de televisão, Sidney Magal me confessou que não pode mais dormir em um voo. Não importa a duração de viagem, se ele cochilar, virará vídeo no YouTube. Como cantor profissional há décadas fazendo sucesso, Magal precisa de imprensa e de público. Não existe um botão on/off da celebridade. Bruna Lombardi disse, certa feita, que levara seu cachorro ao veterinário. O animal sangrava e ela estava angustiada. Algumas pessoas queriam selfies quando ela entrou no consultório. É difícil equilibrar o triângulo.

Reflito e acho que não tem solução. Cada parte gostaria de enquadrar a outra em algum cercadinho de controle. Todos (celebridade, fã, imprensa) são humanos com carências e necessidades. Circulando entre eles, uvas verdes e maduras. Por um instante, o famoso quer anonimato e paz; o anônimo anela haurir do prestígio com a fama, e o paparazzo quer ganhar dinheiro com ambos. Todos, conhecidos ou obscuros, sofremos de “síndrome de Heróstrato”. Tantas coisas a conhecer em nós e lutamos para descobrir a vida alheia. Talvez, como a personagem Kurtz de Coração das Trevas (Joseph Conrad), o horror do mundo distante distraia sua escuridão interna. Em resumo, autoconhecimento ajudaria a raposa, melhoraria a qualidade da uva e, de sobra, tornaria o texto de La Fontaine melhor. Esperança para o inverno que se aproxima.

O presidente com vocação de ditador exalta a democracia - RICARDO NOBLAT

Blog do Noblat/Revista Veja

Quem o pariu que o embale


Tem preço assistir o presidente Jair Bolsonaro a defender-se dizendo que o histórico do seu governo “prova” que ele e sua turma sempre estiveram “ao lado da democracia e da Constituição”? Que “não houve por parte do governo, até agora, nenhuma medida que demonstrasse apreço ao autoritarismo”? E que está sendo “vítima de abusos”? Não, não tem preço.

Tudo isso e um pouco mais ele disse por meio de uma longa nota postada nas redes sociais no fim do dia em que, a pedido da Procuradoria-Geral da República, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou a quebra de sigilo bancário de dez deputados federais e um senador bolsonaristas. Moraes também é relator do inquérito das fake news.

Além de parlamentares, o inquérito tem como alvos o vice-presidente do novo partido de Bolsonaro, o Aliança Pelo Brasil, o marqueteiro do partido e empresários suspeitos de financiar a rede bolsonarista de produção de notícias falsas e manifestações de rua de natureza claramente antidemocráticas. A muitas delas compareceram Bolsonaro e vários dos seus ministros.

Quando se vê em apuros, o presidente da República, que sempre defendeu a ditadura, invoca a seu favor os valores da democracia. “Luto para fazer a minha parte, mas não posso assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas”, escreveu. Direitos violados de quem? Não disse. Que ideias estão sendo perseguidas? Não disse. Quem viola os direitos? Não disse.

“Fingir naturalidade diante de tudo o que está acontecendo só contribuiria para sua destruição. Nada é mais autoritário do que atentar contra a liberdade de seu próprio povo”, prosseguiu. Sem detalhar “o que está acontecendo”. Sem identificar quem atenta “contra a liberdade” do povo. E ensinou: “É o povo que legitima as instituições, e não o contrário. Isso, sim, é democracia”. Bravo!

O sujeito oculto das admoestações de Bolsonaro é o Supremo Tribunal Federal e demais instâncias da Justiça que, com decisões, põem seu mandato em risco, assim como os mandatos dos seus filhos – um senador, outro vereador, o terceiro deputado federal, todos envolvidos em negócios mal explicados. Foi para garantir o futuro deles que Bolsonaro se candidatou a presidente.

O público a quem se destinou a nota, também oculto, é a base eleitoral que resta a Bolsonaro. Não é pequena e não está se evaporando. Mas já foi muito maior. Os bolsonaristas de raiz, os mais radicais, aqueles que sempre defenderam tudo o que o capitão faz e fala, principalmente esses estão assustados com a inépcia do governo e a situação a que se encontram expostos.

O cerco político e judicial a Bolsonaro e aos seus garotos está se apertando. Na Praça dos Três Poderes, dois canhões apontam para o terceiro andar do Palácio do Planalto onde o presidente despacha. Um é o Congresso. O outro, o Supremo. O cerco a Lula começou com ele presidente e acabou com ele sem mandato e preso. O cerco a Bolsonaro poderá se fechar mais rápido.

Fernando Henrique Cardoso admitiu ter governado o país no seu primeiro mandato à base do gogó. Bolsonaro não tem competência para isso. Lula tinha um partido para chamar de seu e socorrê-lo nas dificuldades. Bolsonaro não tem. O que teve desprezou. O que gostaria de ter foi incapaz de montar até aqui. Corre atrás do prejuízo quando apela para a ratatuia do Congresso.

A carta que joga na mesa à falta de outra, a do apoio militar que poderia resultar em um golpe para favorecê-lo, configura mais um blefe do que uma possibilidade de vitória real. Onde já se viu generais darem um golpe em defesa de um capitão? E em nome do quê dariam? Da democracia ameaçada pelo Supremo e o Congresso? Do uso da cloroquina contra qualquer doença?

Só resta uma saída para Bolsonaro completar o mandato: submeter-se às leis e entender-se com os demais Poderes. Por ora, ele está a caminho do suicídio político, com direito a figurar num pé de página da História.

Elo entre radicais e o presidente - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 17/06


O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) foi visitado ontem pela Polícia Federal. Ele foi da PM do Rio de Janeiro e se sente tão inimputável que recentemente postou um vídeo em que ameaçava de morte quem estava em atos contra Bolsonaro. Alertou que os PMs andam armados e poderiam atirar no peito ou na cabeça de alguns que estavam na manifestação. É esse tipo de pessoa que o inquérito das fake news está encontrando. Há uma linha que liga ataques ao Supremo, manifestações a favor do presidente com faixas pedindo intervenção militar, nas quais Bolsonaro e alguns dos seus ministros já foram, e uma militância que em parte anda na faixa da ilegalidade.

O problema é que o próprio presidente anda nessa linha de sombras entre o legal e o ilegal. Bolsonaro, na última quinta-feira, fez aquela convocação aos seus militantes. “Deem um jeito de entrar nos hospitais e filmar.” Estava publicamente estimulando um crime. O procurador-geral da República, Augusto Aras, oficiou aos procuradores regionais para abrirem investigação contra quem invadiu hospitais. Aras se comporta como se não tivesse visto que o presidente estimulou aquilo que ele considera que deva ser investigado. Repetiu a mesma atitude de alienação seletiva no caso das manifestações antidemocráticas. Aras abriu o inquérito para investigar organizadores e financiadores daquela manifestação na frente do Exército. O fato de o presidente ter comparecido e fortalecido o grupo, dizendo que as Forças Armadas estavam com eles, Aras não achou importante. Ele tem um olhar periférico para os fatos. O que fez o ato ter gravidade foi exatamente a presença do chefe do Executivo.

O que torna Sara Giromini notícia não é ela em si. Seu grupo não consegue fazer jus ao nome que ela inventou. Deveria trocar para 10% de 300 do Brasil. Ela é resgatada da irrelevância pelo presidente Jair Bolsonaro, que diz que eles são sua base popular e em nenhum momento repudiou os fogos de sábado à noite contra o STF. O deputado Daniel Silveira não tem contribuição positiva à vida pública. Ficou conhecido por quebrar a placa de Marielle. Mas os manifestantes que ele ameaçou de morte foram chamados no dia seguinte de “terroristas” pelo presidente. Então eles falam a mesma língua. O problema de Bolsonaro não é que ele tem “bolsões radicais”. Ele se comporta como integrante do bolsão.

Quando o inquérito das fake news começa a oficiar as primeiras diligências, eleva-se o conflito com o Judiciário porque a sombra que recai sobre o bolsonarismo é a ponta final do fio que começa a ser puxado pelo ministro Alexandre de Moraes. O que eram ataques virtuais e ameaças aos ministros do Supremo se ligam a manifestações reais contra as instituições, nas quais o presidente vai, e que podem ter sido financiadas por empresários bolsonaristas. Os mesmos que são suspeitos de estarem por trás de financiamentos ilegais de campanha, através da contratação de disparos de mensagens em massa que distorcem os movimentos de opinião pública.

Esse fio entre investigados e o presidente, entre o legal e o crime, é que cria risco para a democracia brasileira. O que preocupa é a zona de sombra entre o governo Bolsonaro e esses ativistas agressivos capazes de hostilizar enfermeiras, de invadir hospitais, de lançar fogos de artifício contra o STF em meio de gritos de ofensa, de gravar vídeos falando em matar manifestantes, de postar ameaças gravadas a um ministro do Supremo. Há ilegalidade demais na atuação pública do governo. A ida de Abraham Weintraub para se confraternizar com militantes que muito provavelmente são os mesmos dos fogos contra o STF é mais um desses momentos em que fica explícita a relação perigosa entre o governo e o submundo. A demissão de Weintraub não resolve o problema. Ele sempre foi estimulado a ser assim.

O vice-presidente Hamilton Mourão disse à “Folha” que há um exagero e que não se pode considerar “meia dúzia de gente que estava aí na rua como ameaça”. Mourão disse que seria o mesmo que considerar “aquela turma da foice e o martelo como ameaça”. É verdade. O problema nunca foi haver grupos pequenos de radicais. A democracia convive com eles e os enquadra quando é o caso. A anomalia no Brasil neste momento é a intimidade entre esse bolsão e o presidente. Em atos, palavras e omissões, Bolsonaro tem estimulado um grupo de malucos.

Brasil já é uma democracia sob supervisão militar - YASCHA MOUNK

Folha de S. Paulo - 17/06

Quando especulações sobre o que militares aceitariam começam a moldar decisões de eleitos, essência da democracia já foi esvaziada


Sempre esteve claro para os observadores externos que o Brasil teria que pagar uma conta alta por ter eleito um líder tão perigoso e irresponsável quanto Jair Bolsonaro.

Mas os acontecimentos dos últimos meses asseguram que essa conta será ainda mais trágica do que se evidenciava.

Centenas de milhares de brasileiros provavelmente vão morrer desnecessariamente devido à reação caótica e incompetente do governo à Covid-19.

E, mesmo que seja possível evitar os piores ataques à democracia –quer seja sob a forma de um golpe militar ou de uma concentração gradual do poder político no palácio presidencial—, a Presidência de Bolsonaro deixará a democracia brasileira gravemente enfraquecida.

Quando populistas –de direita, como Bolsonaro, ou de esquerda, como Hugo Chávez— chegaram ao poder, cientistas políticos avisaram sobre os danos que eles infligiriam aos cidadãos comuns.

Pelo fato de afirmarem que eles e apenas eles representam o povo, esses políticos são incapazes de aceitar a dissensão legítima.

Assim, começam pouco a pouco a atacar tanto as instituições políticas independentes quanto tribunais, especialistas independentes e autoridades de saúde pública.

Entretanto, na última década, quando figuras desde Viktor Orbán até Donald Trump foram chegando ao poder, esses avisos, na maior parte do tempo, passaram batidos.

Depois de décadas em que as elites políticas locais haviam se colocado em descrédito, seus avisos sobre os líderes novatos que ameaçavam tomar seus lugares soavam como súplicas especiais.

Particularmente nos países com corrupção arraigada e cujos políticos tradicionais eram sabidamente oportunistas, muitos cidadãos, compreensivelmente, acharam difícil se preocupar com coisas como o Estado de Direito ou a separação dos poderes.

“Essa gente toda berrando sobre o perigo do populismo está querendo salvar a própria pele, nada mais”, desconfiavam.

Esse ceticismo pareceu justificado nos primeiros anos. Descobrimos que o navio do Estado é um transatlântico bastante robusto.

Mesmo quando ele se desvia da rota, demora para se chocar com um iceberg. Até alguns meses atrás, a maioria dos brasileiros (e a maioria dos americanos também) podia alegar justificadamente que os desastres previstos não os haviam atingido.

A crise extraordinária de saúde pública dos últimos meses mudou toda essa situação. Enquanto algumas democracias conseguiram conter o vírus e agora podem retornar para alguma forma de quase normalidade em relativa segurança, Bolsonaro passou meses negando o perigo evidente.

Ele participou de protestos contra quarentenas. Tentou combater a soberania dos governadores, mandando-os voltar à normalidade. Demitiu dois ministros da Saúde. Incentivou a população a tomar remédios de charlatão e a desafiar as medidas simples que poderiam proteger a saúde pública.

Diante de tudo isso, não surpreende que o Brasil agora tenha a distinção de ser o país com o segundo maior número confirmado de casos de Covid-19 no mundo –e, desde alguns dias atrás, o segundo maior número de mortes confirmadas.

E, em vista da deficiência do regime de testes no país, é quase certo que essas cifras subestimem a devastação real semeada pelo vírus.

Como se isso não bastasse, a ameaça à democracia brasileira também vem crescendo. Com Bolsonaro cada vez mais impopular, os militares vêm exercendo papel crescente em sua administração.

Com seus filhos aparentemente sob investigação, as tentativas de Bolsonaro de solapar a independência dos órgãos policiais e judiciários crescem a cada semana que passa.

Como observador externo, é impossível prever qual dos cenários sombrios para o futuro político imediato do país discutidos atualmente em detalhes pelas maiores publicações brasileiras vai se revelar presciente, se é que algum vai, e quais mostrarão ser paranoia.

Mas o que chama a minha atenção, a distância, é a mudança radical do teor geral da discussão.

Especialistas brasileiros que consultei alguns anos atrás sentiam confiança na força das instituições brasileiras. Os militares haviam se afastado de vez da política, disseram-me.

Mesmo que Bolsonaro cortejasse generais e elogiasse o regime militar, não havia jeito de o Exército se deixar atrair de volta à política. Hoje vejo esses mesmos especialistas debaterem, com urgência máxima, o que os generais fariam ou deixariam de fazer sob diversas circunstâncias.

Diz história apócrifa que as rãs não percebem quando a água começa a ferver. Mais ou menos da mesma maneira, a população brasileira não tomou consciência da extensão em que a possibilidade de ruptura democrática hoje molda a política brasileira.

Mas quando especulações sobre o que líderes militares aceitariam (ou não) começam a moldar as decisões dos representantes eleitos do povo, a essência da democracia já foi esvaziada.

Como me disse Filipe Campante, um colega da Universidade Johns Hopkins, “o Brasil já é uma democracia sob supervisão militar”.

Yascha Mounk, o cientista social é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Tradução de Clara Allain

Soa o temido alarme: o inverno está chegando - FERNANDO EXMAN

Valor Econômico - 17/06

Ministério da Saúde preocupa-se com avanço do vírus no Centro-Sul


Às 18h44 do sábado, pontualmente, começa uma nova etapa da missão do ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello. É o horário oficial do início do inverno de 2020, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). O momento a partir do qual as atenções da pasta no combate ao novo coronavírus precisarão se voltar cada vez mais para o Centro-Sul do Brasil.

O inverno é um período aguardado com preocupação pelos antecessores do general e que se principia num momento em que as relações do presidente Jair Bolsonaro com os governadores - dos Estados destas e de outras regiões - se deterioram a cada dia.

No governo, acredita-se que o Supremo Tribunal Federal (STF) exagerou na liberdade dada aos entes subnacionais para a condução das políticas de isolamento social. À natural briga por recursos e autonomia nos gastos emergenciais, somou-se uma discussão de natureza político-eleitoral entre o chefe do Executivo e governadores.

Cenário hostil para Pazuello, um militar da ativa, e também para o próximo secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal, um técnico especialista no trato com os Estados e os municípios. Ambos ganharão importância na tentativa de construção de uma interlocução mais saudável na federação, sobretudo se as preocupações com os efeitos do inverno em relação ao avanço da pandemia se comprovarem corretas.

Pouco se sabe sobre qual será o comportamento da moléstia no inverno do hemisfério Sul. Historicamente, observa-se o aumento de casos de gripe e doenças respiratórias durante os meses mais frios do ano. As pessoas tossem mais, espirram e se aglomeram em ambientes fechados. Locais propícios ao contágio, os quais, aos poucos, começam a ser frequentados novamente pelos mais incautos.

O Brasil titubeou na hora de iniciar o isolamento social. Agora que no hemisfério Norte diversos países já estão podendo retomar as atividades e apresentam temperaturas mais altas, acredita-se que o mesmo movimento pode ser executado por aqui. Essa decisão pode agradar a empresários e ao governo federal, embora pareça ser precipitada e capaz de produzir consequências desastrosas.

Pelo que se viu até agora, o combate ao coronavírus se tornou um assunto sobre o qual quem diz ter certezas absolutas parece estar mal informado ou deliberadamente agindo com má fé. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) vem sendo inconstante, para regozijo dos antiglobalistas.

Representantes da OMS já alertaram que uma nova onda de contágio poderia ocorrer na Europa durante o inverno, depois afirmaram que ainda não há qualquer evidência científica sobre o impacto da covid-19 em diferentes estações, a despeito de o vírus da Influenza sempre apresentar um salto de infecções durante esta estação. O comportamento da doença no inverno do hemisfério Sul ainda é, portanto, desconhecido.

Por isso é positiva a crescente preocupação do Ministério da Saúde com o que ocorrerá nos Estados do Sul e do Sudeste de sábado até o início da primavera, na última quinzena de setembro.

Na visão da atual gestão do Ministério da Saúde, os dados de infecções e mortes refletem as especificidades do Brasil: as regiões Norte e Nordeste seriam historicamente impactadas pelas crises respiratórias relacionadas ao hemisfério Norte, enquanto os maiores efeitos das gripes nas regiões Sul e Sudeste ocorrem durante os meses de junho, julho e agosto. Ou seja, no inverno.

Os balanços da pandemia refletiriam, então, essa dinâmica. De fato, hoje a incidência da covid-19 é relativa e assustadoramente maior nas regiões Norte e Nordeste, onde a taxa de contaminação é de respectivamente 1.001,3 e 570,9 por 100 mil habitantes. A média do Brasil é 439,3. Já o índice de mortalidade também é superior nessas duas regiões, principalmente no Ceará, Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Amazonas, Pará e Amapá.

As exceções a essa regra são os dois maiores centros urbanos do país - as capitais e regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Isso levou a taxa de mortalidade da região Sudeste a superar a média nacional, de 21,5 óbitos por 100 mil habitantes, com um índice de 23,5. Para se ter uma ideia, nas regiões Sul e Centro-Oeste, as taxas de mortalidade chegam a 3,2 e 5,3, respectivamente, ante 44,2 por 100 mil habitantes no Norte e 25,5 no Nordeste.

Os dados justificam o receio no Ministério da Saúde com a deterioração da situação no Centro-Sul, diante de um fator desconhecido como a chegada do inverno.

No nível técnico, as conversas de representantes do governo federal com os Estados até que vão muito bem, obrigado. Há contatos diários da pasta da Saúde com governadores, secretários estaduais e municipais, e gestores hospitalares, num monitoramento cotidiano sobre o comportamento da pandemia e as necessidades na ponta.

O problema é quando as discussões vão ao nível político. A ala ideológica do governo chegou a insinuar que as estatísticas estaduais estavam sendo manipuladas para prejudicar a imagem do governo federal. Os governadores de São Paulo e do Rio são vistos como inimigos. E o governador do Espírito Santo está na lista de oposicionistas.

Também no Sul a relação do Palácio do Planalto com os governadores não é das melhores, excluindo o caso do Paraná. O Rio Grande do Sul é governado por um tucano. Santa Catarina elegeu um candidato do PSL que se tornou alvo de bolsonaristas em pouquíssimo tempo de mandato, por querer implementar uma regra segundo a qual o ICMS poderia variar dependendo do volume de agrotóxicos usados por agricultores. Aliados próximos de Bolsonaro no meio empresarial também pressionam o governador catarinense pela reabertura das atividades.

Como diz um governador, havia três caminhos a seguir desde o início da crise: a negação, a omissão e a ação. Ele e seus colegas acreditam que o presidente já passou da fase de negação e da omissão, estando agora dedicado ao terceiro tipo citado. O problema, apontam, é que seria a uma ação voltada a colocar a população contra os gestores não alinhados. Os ventos frios do inverno podem ser propícios à disseminação da covid-19 e também do vírus do ódio na política.

Liberdade de expressão tem limite? - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 17/06

A democracia aceita críticas, mas não admite ações concretas com o objetivo de subjugá-la



Qual o limite da liberdade de expressão? Vale defender intervenção militar, fechamento do Congresso e prisão dos ministros do STF? E ideias racistas, antissemitas ou homofóbicas? Questões como essas, que em tempos normais teriam interesse primordialmente acadêmico, ganham gravidade na estranha conjuntura em que vivemos.

Como não poderia deixar de ser, defendo uma interpretação robusta do alcance da liberdade de expressão. Se alguém está convencido de que uma ditadura é o melhor caminho para o Brasil ou de que negros, judeus e homossexuais são intrinsecamente inferiores, deve ser livre para dizê-lo. De um modo geral, o ridículo dessas ideias e a inexistência de bons argumentos para apoiá-las já funcionam como antídoto à sua disseminação.

Então vale tudo? No que diz respeito à simples divulgação de ideias, sim. Isso significa que a democracia não pode se defender de ataques? Não.

O assaltante que aponta seu revólver para a vítima e proclama “a bolsa ou a vida” não pode defender-se com o argumento de que só exerceu sua liberdade de expressão. Os termos usados pelo bandido, que seriam perfeitamente legítimos em outros contextos (eu mesmo acabei de empregá-los), se somam neste exemplo a outras circunstâncias, como a posse da arma e o cenário de ameaça, para configurar um crime que não se confunde com os chamados delitos de opinião.

O que as autoridades precisam investigar no caso desses grupos que atacam a democracia é se estão instrumentalizando a liberdade de expressão para cometer ilícitos como calúnia, ameaça, associação criminosa e, ironicamente, se violam dispositivos da famigerada Lei de Segurança Nacional.

Basicamente, a democracia aceita quaisquer críticas, em quaisquer termos, mas não admite ações concretas com o objetivo de subjugá-la. Definir quando as primeiras se convertem nas segundas nem sempre é trivial, mas tampouco é impossível.

Em breve Bolsonaro será um comunista na Austrália - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 17/06

Os bolsonaristas começam a se tornar mais bolsonaristas do que Bolsonaro

Todo 31 de dezembro, às 13h do Brasil, ouve-se na TV: "Já é Ano Novo na Austrália!". Com 11 horas a mais, o Ano Novo lá chega mais cedo. Num dia de abril último, de manhã, Sergio Moro deixou o governo de Jair Bolsonaro e, pela TV, acusou seu ex-patrão de tentar controlar a PF. Em poucas horas, passou de herói dos bolsonaristas a traidor e, à uma da tarde, a internet deu: "Moro já é comunista na Austrália!".

Moro juntava-se ali aos comunistas a serem exterminados pelo governo Bolsonaro, os quais incluem intelectuais, artistas, professores, estudantes, globalistas, evolucionistas, ambientalistas, indígenas, LGBTistas, desarmamentistas, a Folha, a Globo, o Congresso, o STF, a ONU, a OMS, a China, os governadores, os prefeitos, os médicos, os infectados pela Covid e a própria Covid —enfim, todos que se opõem à promessa de Bolsonaro de acabar com a corrupção, a mamata, a velha política, o toma lá dá cá e o desvio de dinheiro público.

Afinal, não foi por esse programa que se uniram ativistas, milicianos, policiais, racistas, olavistas, financiadores ilegais, generais de pijama, duplas sertanejas, grileiros, laranjas, googlers, youtubers, whatsappers, facebookers, ku-klux-klaners, salles, damares e weintraubs, comandados pelos zero-zero-zeros? Até há pouco eles estavam coesos em torno do chefe. Mas, de dias para cá, Bolsonaro começou a desapontá-los.

Dá até para escutá-los. Ele tremeu diante do STF e quis entregar o Weintraub! Deixou Sara "Winter" ser presa! Vive negando que quer um golpe militar! Diz que acabou, que chega, que ponto final, mas não faz porra nenhuma! Ouviu do Olavo poucas e boas sem um pio! Dá cargos bilionários aos corruptos do centrão em troca de apoio! E agora começou a destratar o pessoal do cercadinho! É esse o homem que eles elegeram para aplicar o programa de Jair Bolsonaro?

Em breve na internet: "Bolsonaro já é comunista na Austrália!".

No rastro do dinheiro - MERVAL PEREIRA

O Globo - 17/06


Dificilmente será superada a crise entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF). Sobretudo porque não há nenhuma serventia em fazer acordo com os demais poderes da República, pois Bolsonaro acha que o Executivo tem que se sobrepor, e almeja que os outros se imbuam dessa secundariedade para que o deixem trabalhar sem limitações institucionais.

É seu entendimento autoritário do que seja democracia representativa. Vários acordos já foram feitos, pactos firmados, e Bolsonaro continua o mesmo, a ponto de o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, o mais empenhado nesse pacto de governabilidade, ter desabafado em sua mais recente manifestação, dizendo que não é mais possível aceitar “dubiedades” de Bolsonaro e Mourão.

Outra impossibilidade é o presidente renegar as atitudes insanas dos extremistas que o apoiam. Bolsonaro trata o pessoal do acampamento “300 do Brasil” como a sua base, e as operações da Polícia Federal contra eles, pedidas pelo Procurador-Geral da República Augusto Aras e aprovadas pelo ministro Alexandre de Moraes, são consideradas uma ação direta contra o governo, desnecessária já que os extremistas não são em grande número.

Essa leniência com esses malucos, mesmo que ainda não tenham passado da pirotecnia para atentados reais, só transmite a ideia de que eles têm a complacência do governo, que os considera seus aliados. Os blogueiros das fake news são “a mídia que eu tenho”, confessa Bolsonaro, tornando crível o financiamento oficial dessa máquina de destruir reputações.

O lado do presidente e sua trupe já está determinado por gestos e, principalmente, pela falta de crítica aos ataques ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso. O autoritarismo que esses comportamentos revelam, porém, não passam despercebidos pelos ministros do Supremo, especialmente quando a crítica passa também a ser pessoal, e não apenas às decisões de seus ministros, em termos apropriados a uma relação civilizada. Não é o caso do ataque desclassificado ao decano da Corte, ministro Celso de Mello, por um abaixo assinado de militares da reserva e poucos e desconhecidos civis. Nem dos ataques e ameaças pessoais que esses grupos fazem abertamente pela internet, sem receio de pagar por seus crimes por se sentirem respaldados.

Foi esse estado de coisas que fez com que Celso de Mello, na reunião ontem da segunda Turma do STF, se pronunciasse: “É inconcebível que ainda sobreviva no íntimo do aparelho de Estado brasileiro o resíduo de forte autoritarismo, que insiste em proclamar que poderá desrespeitar, segundo sua própria vontade arbitrária, decisões judiciais”.

Chamando a Suprema Corte de “a sentinela das liberdades”, Celso de Mello disse que é preciso resistir com armas da lei “(...) porque sem juízes independentes, jamais haverá cidadãos livres neste país”.

O comentário foi em resposta à ministra Carmem Lucia, presidente da Segunda Turma, que abriu a sessão com uma defesa da democracia, afirmando: “Somos nós, juízes constitucionais, a quem incumbe o dever de, em última instância judicial, não deixar que o Estado Democrático de Direito se perca, porque todos perderão. Atentados contra instituição, contra juízes e contra cidadãos que pensam diferente volta-se contra todos, contra o país”.

O objetivo do inquérito do STF é conter a propagação de fake news, e os ataques e ameaças aos ministros. É claro para todos que Bolsonaro tem apoio das chamadas milícias digitais. Ele próprio já disse que eles “são a mídia que eu tenho”. Jamais abriu a boca para criticá-los – até para o ministro Weintraub, que disse e repetiu que os vagabundos do Supremo deveriam ir pra cadeia, está procurando uma saída honrosa.

As investigações do STF descobrirão quem financia esses movimentos e se, como tudo indica, já estavam organizados antes da eleição e ajudaram ilegalmente a campanha de Bolsonaro e Mourão. Se ficar provada a conexão dos mesmos grupos durante a campanha, é financiamento ilegal. É um caixa 2 duplamente ilegal, porque agora o dinheiro privado é proibido por fora e por dentro nas campanhas.

Não adianta dizer que não admite julgamentos políticos, como se uma decisão contrária fosse política, e a favor, “justa”. Não há outra alternativa dentro da legalidade a não ser aceitar decisões dos tribunais superiores. Como disse o ministro Luis Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a um interlocutor de Bolsonaro que lhe perguntou se o presidente tinha motivos para se preocupar com o julgamento: “ Só se tiver feito alguma coisa errada”.

O dever de Aras - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 17/06

O único compromisso do procurador-geral da República pode e deve ser apenas com a lei


No dia 11 de junho, o presidente Jair Bolsonaro incitou seus seguidores a invadir hospitais para verificar “se os leitos estão ocupados ou não”, pois, segundo o presidente, “tem um ganho político dos caras”, referindo-se aos governadores, a quem acusa de aumentar o número de mortos pela pandemia de covid-19 para desgastá-lo politicamente. “Tem um hospital de campanha perto de você, tem um hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. Muita gente está fazendo isso, mas mais gente tem de fazer, para mostrar se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis ou não”, disse o presidente da República em sua live semanal em rede social.

Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), “invadir hospitais é crime – estimular também”. Cabe, portanto, ao procurador-geral da República, Augusto Aras, pedir a abertura de inquérito para investigar o novo descalabro presidencial. Esse pedido não teria nenhum caráter excepcional, sendo o escorreito cumprimento das atribuições definidas pela Constituição de 1988, tendo em vista o que ocorreu no dia 11 de junho. No meio de uma gravíssima crise de saúde pública, o presidente Bolsonaro incitou os brasileiros a invadir hospitais próximos de suas casas, para filmar leitos e checar a correção dos gastos.

Em vez de seguir a trilha constitucional, pedindo abertura de investigação a respeito da fala do presidente Bolsonaro, o procurador-geral da República optou, no entanto, por um estranho caminho. No dia 15 de junho, Augusto Aras enviou ofícios ao procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, e à procuradora-geral de Justiça do Distrito Federal, Fabiana Costa Oliveira Barreto, solicitando que investigassem a invasão de um hospital de campanha e agressões a profissionais de saúde ocorridas nas últimas semanas.

Em entrevista ao Estado, o procurador-geral de Justiça de São Paulo manifestou-se surpreso com o ofício de Augusto Aras. “O Ministério Público de São Paulo não consegue avaliar a razão pela qual esse ofício chegou aqui, solicitando uma investigação que já estava em andamento, que é da nossa atribuição e que efetivamente não compete a nossa coirmã da área federal requisitar, ou solicitar, na medida em que já havíamos instaurado essas investigações assim que tivemos a notícia. Não conseguimos compreender. Estamos realmente surpresos”, disse Mário Luiz Sarrubbo.

A investigação estadual refere-se à invasão do hospital de campanha do Anhembi, realizada por cinco deputados estaduais no dia 5 de junho. Segundo o chefe do Ministério Público de São Paulo, no mesmo dia da invasão abriu-se a investigação para apurar indícios de crime contra a saúde pública. Segundo Sarrubbo, a ação dos cinco deputados estaduais foi “no mínimo atabalhoada”.

No documento enviado ao procurador-geral de Justiça de São Paulo, Augusto Aras menciona possível “responsabilidade criminal ou por ato de improbidade” dos autores da invasão do hospital. Ora, cabe aplicar o mesmo raciocínio à fala de Jair Bolsonaro do dia 11 de junho. “Arranja uma maneira de entrar e filmar”, disse o presidente. E, de forma a excluir qualquer dúvida sobre o conteúdo de sua recomendação, Bolsonaro completou: “Muita gente está fazendo isso (invadir e filmar), mas mais gente tem de fazer”.

Se Augusto Aras entende que não pode se omitir em relação à invasão de hospitais, chegando a solicitar que Ministérios Públicos Estaduais investiguem tais condutas, é evidente que, como procurador-geral da República, tem o dever de pedir que se investigue o presidente da República que, em live em rede social, instigou a população a invadir hospitais.

Augusto Aras está em posição segura, não tendo necessidade de agradar ao presidente Bolsonaro. A Constituição assegura que eventual “destituição do procurador-geral da República, por iniciativa do presidente da República, deverá ser precedida de autorização da maioria absoluta do Senado Federal”. O procurador-geral da República tem, portanto, as garantias constitucionais necessárias para cumprir de forma isenta seu dever. Seu único compromisso pode e deve ser apenas com a lei.

Bolsonaro tenta acalmar investigados. Razão do pânico: uma delação premiada - REINALDO AZEVEDO

UOL - 17/06

Presidente Jair Bolsonaro: sua carta é um recado para que aliados se acalmem. Medo de delação premiada


É claro que a carta de Jair Bolsonaro está mandando um recado. Desta feita, não é dirigida aos adversários, mas aos amigos que caíram nas malhas do Ministério Público Federal e da Polícia Federal.

Embora o presidente não cite as investigações que colhem seus amigos, é sobre isso que está a falar, como todos sabem. O trecho mais importante é este:
"Luto para fazer a minha parte, mas não posso assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas. Por isso, tomarei todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituição e a liberdade do dos brasileiros."

O que o presidente está dizendo aos investigados é isto: "Ninguém solta a mão de ninguém".

O temor, obviamente, é que uma delação premiada venha a provocar um "strike" no governo e na cúpula bolsonarista.

Não dá para saber o que significa "tomar todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituição e a liberdade dos brasileiros".

Que risco correm os brasileiros?

Bolsonaro pretende se imiscuir na investigação? Vai mobilizar a estrutura do Executivo para obstar o trabalho do Ministério Público, da Polícia Federal e do Justiça?

Precisa é tomar cuidado para não meter os pés pelas mãos.

Com alguma esperança na razoabilidade, poderia dizer que o presidente pode ter acordado de um transe, imaginando que aquela escalada de violência contra as instituições caminharia, sem limites, até a vitória final — seja lá o que isso signifique.

Bem, não será assim.

De resto, convenham: é difícil, depois de tudo o que já houve no Brasil, acusar o Ministério Público Federal de estar a serviço do comunismo, não é mesmo?

Mais fácil seria tentar não praticar crimes. Ocorre que há entre os investigados aqueles que só têm existência na vida pública em razão do crime.

Bolsonaro está prometendo aos que estão caindo nas malhas do MPF e da PF que ele vai dar um jeito.

A depender da falta de jeito com que se entregue a tal intento, estará prejudicando a si mesmo, mas sem ajudar ninguém.

Alô, senhores procuradores! Daqui é pouco é hora de lembrar os investigados que existe a Lei 12.850, a que trata das organizações criminosas e da delação premiada.

Sugiro a alguns valentes que sabem o que fizeram no verão passado que passem a considerar a hipótese.

Bolsonaro pôs a língua na coleira por um instante - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 17/06


O embate com o Supremo Tribunal Federal faria bem a Jair Bolsonaro se ele seguisse uma linha esboçada em postagens que borrifou na noite desta terça-feira (16) nas redes sociais. Em 20 dias, o capitão evoluiu de um linguajar autoritário —"Acabou, porra"— para um palavreado civilizado —"Tomarei todas as medidas legais." O diabo é que todos sabem que o Bolsonaro real é aquele do palavrão dito no improviso do cercadinho do Alvorada, não este do texto domesticado pela assessoria.

O Bolsonaro genuíno superestima seu poder de mudar o Supremo no grito. O presidente do timbre terceirizado subestima o seu poder de mudar a si mesmo. Perdido em algum lugar entre a bravata e a realidade, o inquilino do Planalto sofre algo muito parecido com um cerco judicial. Precisa definir rapidamente um rumo. Sob pena de ser compelido a mudar não por enxergar a luz, mas por sentir o calor das investigações.

Em 26 de maio, a Polícia Federal varejou 29 endereços de bolsonaristas no âmbito do inquérito das fake news. Quebraram-se os sigilos bancários de empresários devotos do "mito" com data retroativa a julho do ano eleitoral de 2018. Na manhã seguinte, Bolsonaro derrapou: "Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase que pessoal certas ações."

O orador capotou ao engatar a segunda marcha: "Ontem foi o último dia. Eu peço a Deus que ilumine as poucas pessoas que ousam se julgar melhor e mais poderosas do que os outros, que se coloquem no seu devido lugar..." Bolsonaro referia-se ao ministro Alexandre de Moraes, a quem enxerga não como magistrado, mas como inimigo.

Nesta terça-feira, o mesmo Moraes determinou aos rapazes da PF que batessem em 21 portas de bolsonaristas —algumas delas já visitadas na operação anterior. Dessa vez, as ações policiais ocorreram no âmbito do inquérito sobre manifestações antidemocráticas. Romperam-se os sigilos bancários de 11 parlamentares apologistas de Bolsonaro.

O linguajar de Bolsonaro não foi a única coisa que mudou. Houve outra mudança notável entre uma operação e outra. Na batida policial do mês passado, o procurador-geral da República Augusto Aras manifestara-se contra. Foi ignorado por Alexandre de Moraes. Na ação desta terça, Moraes expediu os mandados judiciais a pedido da Procuradoria.

No primeiro caso, em que se investiga a industrialização de notícias falsas e a destilação de ódio contra a Suprema Corte, o inquérito nasceu torto. Foi aberto no Supremo, pelo Supremo e para o Supremo. Coisa sigilosa, trançada à revelia do Ministério Público Federal, a quem cabe exercer o monopólio legal da acusação. No segundo caso, relacionado às manifestações antidemocráticas, coube ao procurador-geral requisitar a abertura do inquérito. Tudo dentro do manual.

No arroubo do mês passado, Bolsonaro queixara-se da decisão monocrática (individual) de Moraes. Soou como se insinuasse que o ministro se move impulsionado por interesses extra-judiciais. "...Não podemos falar em democracia sem um Judiciário independente, sem um Legislativo também independente, para que possam tomar decisões, não monocraticamente por vezes, mas as questões que interessam ao povo como um todo, que tomem, mas de modo que seja ouvido o colegiado."

Nesta quarta-feira, Bolsonaro ouvirá a voz do colegiado. O plenário do Supremo concluirá o julgamento que manterá em pé o inquérito das fake news. Confirmando-se o aval, as decisões tomadas por Alexandre de Moraes no âmbito do processo ganharão o selo do colegiado. Eventuais morteiros de Bolsonaro acertarão o Supremo, não o ministro.

De resto, o pedaço do bolsonarismo que percorre as redes sociais e as ruas à procura de encrenca tende a se frustrar com a promessa do "mito" de adotar "todas as medidas legais" para frear a Suprema Corte. Bolsonaro não pode mobilizar o aparato estatal para produzir petições judiciais em defesa de pessoas que não têm vínculo com o estado. Os encrencados pagam —ou deveriam pagar— do próprio bolso os honorários dos seus advogados.

Bolsonaro cogitava enfiar-se sob os cobertores sem comentar o novo sobrevoo da PF sobre o bolsonarismo. Mas não resistiu às cobranças que lhe chegaram pelas redes antissociais. A certa altura, o presidente —ou seu ghostwriter— anotou: "Luto para fazer a minha parte, mas não posso assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas." Faltou definir "minha parte".

Um presidente que transforma o Ministério da Saúde em unidade militar depois de expurgar dois ministros em plena pandemia, que estimula apoiadores a invadirem hospitais, que silencia diante de apologistas que simulam o bombardeio do Supremo com fogos, que mantém um olavista no comando da Educação, que entrega ministério, banco público e fundo educacional ao centrão... um presidente assim não faz adequadamente a sua parte.

Ficou claro que, além de pôr a língua na coleira, Bolsonaro precisa colocar os pés no chão. Na sequência, basta que o presidente comece a presidir, fechando a indústria do ódio e a fábrica de crises.

Ruim para os EUA, pior para o Brasil - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 17/06

Economia americana teve algum alívio em maio, mas depende de gás do governo


Maio foi um mês de despiora ligeira para a economia dos Estados Unidos. Houve mais festinha nas Bolsas marombadas e nova conversa sobre a projeção mais otimista de alguns adivinhadores profissionais, minoria para quem a recessão será em forma de “V”, queda e retomada rápidas.

O aumento das vendas do varejo americano em maio mais do que compensou as perdas de abril, embora o faturamento ainda esteja uns 8% abaixo do nível pré-epidemia. Cerca de 2,5 milhões de pessoas voltaram a trabalhar, mas falta empregar outros 20 milhões que foram para a rua na epidemia. Houve crescimento da indústria, embora bem abaixo do esperado.

Parte do salto das vendas foi consumo represado, de quem manteve o emprego e ficou com dinheiro na conta, poupança forçada devido ao confinamento. Parte foi graça dos trilhões de socorro do governo, que pagou uma renda básica instantânea e aumentou para valer o valor do seguro-desemprego —tudo somado, além da renda emergencial, o pacote é quase 50% maior do que o PIB brasileiro. Esse auxílio para trabalhadores e famílias acaba em julho.

O presidente do banco central, o Fed, Jerome Powell, disse ao Senado que a coisa ruim vai longe. A OCDE estima que o PIB americano caia 7,3% neste ano e chuta que, no ainda mais nebuloso 2021, cresça 4,1%, o que não recupera o prejuízo. Para o Banco Mundial, o PIB cai 6,1% em 2020 e sobe 4% no ano que vem.

Maio foi um refresco parcial em setores localizados. Haverá desemprego prolongado, redução de salários, redução no investimento, confiança baixa ainda por causa do risco de contágio, empresas falidas ou endividadas, destruição de capital, setores danificados por muito tempo (turismo, restaurantes, entretenimento etc.), ineficiências provocadas pela reabertura sujeita às condições do vírus e pilhas de outros problemas para fazer rodar a atividade econômica real. E há o problema das rendas de emergência e outros socorros. Como se dizia, os democratas querem dobrar a conta, para mais de US$ 4 trilhões (um quinto do PIB dos EUA).

Em escala e qualidade muito diferentes, o Brasil terá os mesmos problemas. Mas o governo federal americano não paga nada para se financiar (taxa real de juros zero ou menos do que isso); em parte, na prática, é bancado pelo seu Banco Central.

Esqueça-se, para facilitar, que a economia brasileira é uma carroça de roda quebrada perto da americana. A epidemia, por aqui, ainda irá mais longe do que nos EUA; os auxílios emergenciais e outros socorros, não. Em tese não haverá investimento público para dar impulso a uma retomada. Aqui, maio ainda foi mês de afundamento, embora o número de pessoas ocupadas tenha parado de cair.

As taxas de juros de prazo mais longo estão altas. O governo se financia no curtíssimo prazo ou paga contas com dinheiro que tem no colchão de emergência, a fim de evitar por ora o custo de se financiar no mercado.

Na receita da política econômica, a despesa com a epidemia terá de cair, o que vai arrastar a atividade econômica. O peso relativo da dívida pública continuará a aumentar (por falta de crescimento do PIB e de receita de impostos), o que já era um problema notório faz anos, antes desta calamidade.

A fim de evitar ruína sem fim, terá de haver uma mistura de crescimento rápido, juros (Selic) quase tão baixos quanto os de agora e alguma alta de impostos e/ou corte de gastos. “Reformas”, por si sós, não tiram a economia do chão, reconhece até a OCDE.

Nós não temos uma receita para essa mistura.

A história dos naufrágios mostra que a âncora é fiscal - CRISTIANO ROMERO

Valor Econômico - 17/06

Saída de Mansueto expõe fragilidade de Paulo Guedes


Quem conhece o economista Mansueto Almeida sabe que ele impôs apenas uma condição para continuar à frente da Secretaria do Tesouro Nacional, a que cuida do dinheiro da Viúva: ter o apoio absoluto do chefe, o ministro da Economia, Paulo Guedes. Mansueto não chegou ao ministério com Guedes, nem mesmo com os dois chefes anteriores - Henrique Meirelles (ministro da Fazenda de maio de 2016 a abril de 2018) e Eduardo Guardia (de abril a dezembro de 2018). Sua primeira passagem pela Fazenda se deu na segunda metade da década de 1990, quando, muito jovem, trabalhou na Secretaria de Política Econômica, na ocasião chefiada por José Roberto Mendonça de Barros.

Foi um privilégio para o promissor técnico do Ipea estar, na hora certa, no centro de comando da economia brasileira. Aquela era a primeira equipe econômica pós-lançamento, em julho de 1994, do real. O ministro era Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Pérsio Arida. Apesar do sucesso inicial do plano, quando a inflação caiu de 47,43% em junho daquele ano para 6,84% em julho e 1,71% em dezembro, a turma levou um susto logo após a vitória, em primeiro turno, do candidato Fernando Henrique Cardoso (PSDB), pai do Real, na corrida presidencial.

Em novembro, o México, sempre o primeiro a mostrar as falhas do receituário usado pelos países latino-americanos a jusante, enfrentou crise cambial e quebrou. Naquele momento, a maioria dos países em desenvolvimento adotou âncoras cambiais (regimes de câmbio fixo) para estabilizar os preços. Como a inflação americana, em dólar, já era muito baixa, as economias atrelavam a taxa de câmbio à moeda dos Estados Unidos. Na Europa, a referência era o marco alemão, que, depois, veio a se tornar o euro.

O câmbio fixo, de fato, nocauteia a inflação. Mas, com o tempo, se nada é feito para aumentar a produtividade e se as contas públicas não se equilibram, o regime se torna frágil como as teses dos terraplanistas. O incremento da produtividade ajuda a produzir mais com menos, o que, por sua vez, contém os custos (a inflação).

Para que a produtividade cresça, é necessário educar a população e treinar bem a mão de obra; ter um sistema tributário simplificado, menos oneroso para as empresas e que não avance tanto sobre a atividade econômica, pelo menos não enquanto o país ainda estiver se desenvolvendo; produzir tecnologia de ponta e facilitar a entrada em nosso mercado de bens de capital modernos, entre outros esforços.

Países como Brasil, México e Argentina têm, por várias razões, produtividade bem inferior à dos EUA e da Alemanha, por exemplo, em quase todos os setores - no agronegócio e em alguns segmentos da siderurgia, a produtividade brasileira supera a americana, mas são exceções à regra. Logo, manter a taxa de câmbio em linha com a flutuação do dólar não é algo sustentável por muito tempo.

No fundo, a âncora das âncoras é de natureza fiscal porque, se o governo gasta muito mais do que arrecada, diminui a poupança disponível para financiar o investimento privado e em algum momento eleva a carga tributária para pagar as contas. Essa pressão sobre a sociedade acaba por gerar baixo crescimento do PIB e inflação.

Para conter a alta dos preços, os bancos centrais aumentam os juros e, num regime de câmbio fixo, isso atrai fluxos de dólares, movimento que, por seu turno, aprecia a taxa de câmbio, isto é, valoriza a moeda nacional em relação ao dólar. Ora, isso diminui a competitividade da economia, uma vez que fica mais caro exportar e, assim, alcançar novos mercados. Por outro lado, o dólar mais fraco estimula as importações, que têm dois efeitos: ao baratear o produto importado, faz as empresas nacionais comprarem máquinas e equipamentos mais modernos, o que na prática lhes dá um ganho de capital; por outro lado, a exposição do mercado doméstico a produtos estrangeiros bem mais baratos, sem que as empresas tenham as mesmas condições de competir, desnacionaliza setores inteiros, tornando o país muito dependente de fornecedores internacionais.

Mantido esse esquema por muito tempo em economias que não conseguem realizar reformas que façam crescer a produtividade, o país começa a acumular déficits crescentes nas contas externas, o que leva o investidor estrangeiro a duvidar da capacidade daquela nação de honrar suas dívidas com o exterior. Nesse momento, os mais acautelados começam a bater em retirada, forçando o governo local a jogar os juros na lua com o objetivo de convencer os investidores a manterem seus dólares aqui.

Como a situação vai se tornando insustentável em vários flancos, embora todos relacionados ao problema da Viúva, isto é, ao déficit público, "hedge funds" (fundos que buscam retornos altíssimos para o capital investido) veem nessa enorme fragilidade a oportunidade de fazer bons lucros. Estes resultam de ataques especulativos às moedas, que, se bem-sucedidos, provocam crises cambiais num curto espaço de tempo.

Quando estudamos as crises passadas, tendemos a achar que elas são de natureza cambial porque este é o sinal visível da turbulência. Com as maxidesvalorizações da moeda, todos ficamos mais pobres da noite para o dia - não só mais pobre em relação a outros países, mas, sim, aqui mesmo, em Cabrália. A gênese de toda crise, porém, está no Tesouro, cujo chefe em Brasília, Mansueto Almeida, avisara no domingo que está de malas prontas. Um mau sinal porque, se ele só deixaria o cargo em caso de falta de apoio do chefe, não se tenha dúvida: esta é a razão da partida de Mansueto, um dos maiores especialistas do país em finanças públicas.

O México assombrou a equipe do Real porque nosso plano caminhava para ancorar-se no dólar por meio de um regime de câmbio fixo. O curioso é que, nos primeiros seis meses do plano, o câmbio flutuou. Como o Banco Central dispunha de um volume razoável de reservas cambiais para conter ataques especulativos e havia excesso de liquidez nos mercados globais, a flutuação se deu para baixo, criando a falsa sensação de que a nossa moeda era mais forte que o dólar. Mas, em março de 1995, no início do primeiro mandato, adotou-se o câmbio fixo.

O México caiu em 1994 e, em 1997, feito dominó, sucumbiram várias economias asiáticas, os antigos "tigres". Depois, vieram Rússia, Brasil e Argentina. A história continua...

Esqueçam o artigo 142 - VERA MAGALHÂES

ESTADÃO - 17/06

Generais, com cargos no 1º escalão e de pijama, usam interpretação golpista da Constituição para ameaçar demais Poderes


O maior fator de instabilidade da democracia hoje vem da caserna. As Forças Armadas contribuem de forma definitiva para que paire sobre a Praça dos Três Poderes a sombra de risco de um autogolpe por parte de Jair Bolsonaro à medida que generais com cargos no primeiro escalão e os de pijama em clubes militares nas redes sociais, meio en passant, usam a interpretação golpista do artigo 142 da Constituição para ameaçar os demais Poderes.

Virou moda. O Tribunal Superior Eleitoral vai investigar a chapa Bolsonaro-Mourão? Opa aí não, olha o artigo 142 aí. Pedidos de impeachment são apresentados? Não vamos admitir, temos o artigo 142. O STF usa sua atribuição constitucional de exercer o controle jurisdicional sobre atos do presidente que ferem os princípios da administração pública? Estão exagerando e podemos puxar da manga o artigo 142.

Não, senhores militares, não podem. Diz o famigerado artigo: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Garantia dos Poderes, e não da permanência do presidente no poder.

Não são a guarda de inverno do presidente tresloucado que quer armar a população, acha que pode fazer escambo do Ministério da Educação com a blindagem dos seus extremistas.
Governo teme que saída de Mansueto cause ‘efeito fim de feira’

Causou celeuma na esquerda a saída de Mansueto Almeida do Tesouro. Chegaram a compará-lo a burocratas do nazismo que assistiam aos horrores de Hitler calados – embora ele tenha pedido demissão e não haja comparação entre os horrores do bolsonarismo, que são atentados à democracia e à saúde pública, e os do nazismo, que são crimes contra a Humanidade. Já no governo a saída gerou pânico: na equipe econômica e nos poucos ministérios ocupados por não ideólogos a sensação é de que ficar, de agora em diante, significa ter a reputação para sempre arranhada. E o temor no entorno fiel a Bolsonaro é de que haja debandada semelhante à do fim do governo Collor.
STF vai esvaziando inquérito das fake news e transfere ações para outro

O Supremo Tribunal Federal já começou, mesmo antes da decisão do plenário da Corte, a sanear o inquérito das fake news. Primeiro, Alexandre de Moraes franqueou aos advogados dos investigados acesso às provas obtidas e aos indícios que balizaram as diligências determinadas por ele. As novas operações realizadas pela Polícia Federal e as quebras de sigilo de bolsonaristas se deram já no inquérito dos atos antidemocráticos, também relatado por Moraes, que teve trâmite padrão: foi aberto a partir de representação, e não por decisão do próprio STF, teve relator sorteado, e não designado, e o Ministério Público participa desde o início. Isso porque Moraes tem boas razões para crer que, no julgamento a ser retomado nesta quarta-feira, seus pares optem por estipular prazo, objeto e limites para o inquérito “supertrunfo” das fake news, aberto por determinação de Dias Toffoli há mais de um ano e no qual cabe tudo e mais um pouco.

Papel desagregador de Bolsonaro torna maiores incertezas no retorno - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 17/06

Saída do isolamento social ficou mais arriscada pela falta de um trabalho coordenado na Federação


A localização geográfica do Brasil dava ao país condições de aprender com erros e acertos no enfrentamento da pandemia da Covid-19, à medida que o vírus Sars-CoV-2 se disseminava a partir de Wuhan, na China. Infelizmente, a vantagem não foi aproveitada como seria possível. Devido ao negacionismo do presidente Bolsonaro, que prejudicou a atuação do Executivo federal junto a governadores e prefeitos, na execução coordenada de medidas preventivas contra a doença e, na etapa seguinte, de retomada da normalidade.

Ao contrário, preocupado com efeitos da crise econômica causados nos seus projetos político-eleitorais pelo vírus, com o isolamento social e lockdowns, Bolsonaro esvaziou o Ministério da Saúde em plena aceleração da epidemia. Demitiu dois ministros médicos, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, entregando a pasta ao general de divisão Eduardo Pazuello, um interino que se eterniza. Sem poder intervir, por decisão do Supremo, em estados e municípios, no enfrentamento da epidemia, o presidente boicotou o trabalho de governadores e prefeitos, e é dessa maneira que o país começa a executar o relaxamento de quarentenas, em cada capital e estado.

Mas em um país que não consegue testar em massa a população — a falta de empenho do governo federal foi decisiva para o fracasso — este retorno é em alguma medida um voo cego.

Assim, o Brasil começa a reabrir as portas quando o país já ultrapassou os 45 mil óbitos pela Covid-19, a segunda marca mais elevada no mundo, apenas superada pelos mais de 119 mil mortos nos Estados Unidos, presidido por outro presidente negacionista, Donald Trump. Resta a governadores e a prefeitos de grandes cidades monitorar a ocupação de leitos de UTIs, e do número de mortos, para medir o pulso da epidemia. Há alguns indicadores que sinalizam arrefecimento na disseminação da doença, tanto em São Paulo quanto no Rio, existindo preocupação com o interior dos estados. Mas especialistas temem que o relaxamento ocorrido nos últimos dias nas duas capitais, por exemplo, possa resultar em um pico da doença nos próximos dez ou quinze dias.

A população deve se preparar para idas e vindas no fim do isolamento social, dada a característica de fácil disseminação do vírus, reforçada por um afrouxamento descuidado do isolamento, ajudado pelas necessidades financeiras da grande massa de trabalhadores informais e de receitas tributárias por parte de governantes, mas que podem prejudicar a própria recuperação dos negócios. A China, modelo de lockdowns e de isolamento bem-sucedidos, acaba de fechar 11 bairros em Pequim, devido ao risco de um surto na cidade. É um dos casos a acompanhar.

A batalha mascarada - ROSÂNGELA BITTAR

ESTADÃO - 17/06

A cisão das Forças Armadas é a crise das crises entre tantas encomendadas pelo presidente


Coube a um ministro, general de Exército da ativa, ocupando o cargo civil e político mais importante desta gestão, abrir uma fresta de luz sobre algo muito grave que ferve no corpo a corpo do interior do governo. Há muito se falava de uma tensão latente pela cisão que o presidente Jair Bolsonaro tenta promover nas Forças Armadas, sem que nenhuma autoridade a admitisse abertamente.

Bolsonaro tem a ascendência constitucional sobre Exército, Marinha e Aeronáutica, e é, portanto, legalmente o comandante supremo. Porém, para fazer particularmente o que deseja deste arsenal, teria de passar por cima de algumas cabeças de bom senso que têm ascendência direta sobre as tropas. Entre seus objetivos não explicitados estaria o de manobrá-las politicamente na guerra pessoal que declarou à República.

Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, o ministro mencionado, deixou nas entrelinhas da sua já célebre entrevista à Veja, semana passada, que a cisão pode estar por trás do intenso trânsito na política dos generais e coronéis da reserva, das três Forças.

Uma excitação desproporcional para quem jura que não vai deflagrar um golpe, revelada na redação de notas, advertências e presença em atos que pregam ruptura. Sem cuidados com a imagem, associam-se aos grupelhos de fanáticos que perambulam pela Esplanada em estado de provocação permanente.

Ramos deu a senha que faltava. Disse que ex-alunos seus estão atualmente no comando de unidades do Exército. “Eles têm tropas nas mãos”, avisou. Ou seja, que fique clara sua ascendência (de Ramos e, portanto, de Bolsonaro) sobre eles (alunos) e elas (tropas). Pode-se inferir que quis, com isso, evidenciar o poder de vencer a resistência dos comandantes a atuar na política.

Não há dúvidas de que armas, munições, incentivo à guerra civil, compõem o mundo bélico construído à volta do presidente e seus filhos, bons alunos de clubes de tiro. Tanto melhor se nele puder contar com os amigos que integram as tropas (armadas) do Exército, os amigos das polícias (armadas) militares, que se somariam aos apoiadores (armados) dos acampamentos e às milícias digitais.

A cisão das Forças Armadas, embutida neste enredo, é a crise das crises entre tantas encomendadas pelo presidente neste ano e meio de governo.

O constrangimento de alguns comandantes revela-se também no seu silêncio diante de tudo que se tem dito em seu nome.

Jair Bolsonaro, desde sempre atuando no informal sindicalismo militar, conquistou a admiração dos quartéis, o voto das famílias militares, o apoio eleitoral de oficiais de patentes variadas. A hierarquia e a disciplina, porém, ainda são valores essenciais para as tropas. Um limite em que se equilibram os comandantes, mas o presidente busca estreitar cada vez mais a relação pessoal e direta.

Aposta na concessão de vantagens financeiras, é fato, uma vez sindicalista, sempre sindicalista. Mas também cultiva amizades, comparece a solenidades, testa seu poder de sedução. Não se vê como poderá desistir de seus planos.

Além da divisão nas estruturas verticais, fica cada vez mais claro o incentivo ao racha entre as três Forças. Da última tentativa concreta teve de recuar sem disfarces: a criação da aviação de asa fixa no Exército. A Aeronáutica, claro, não gostou de perder uma briga antiga numa mísera canetada.

As polícias militares, conquistadas também pelo bolso, onde a disciplina e a hierarquia são valores mais frouxos, integraram-se mais rapidamente ao projeto Bolsonaro. Muitas já lhe devem mais vassalagem do que devem aos governadores. Embora as Forças Armadas olhem com certa desconfiança o movimento do presidente em direção às polícias militares, nada podem fazer quando não podem se distrair e precisam se dedicar, integralmente, à disciplina dos seus. Certamente para não perderem de vez o controle e não terem de ouvir, de um subalterno, que é Bolsonaro que o representa.

O pandemônio bolsonarista - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 17/01

A ideologia de Weintraub, como a de Bolsonaro, é irrelevante


A fritura de Abraham Weintraub começou no início do mês. Sua ida à manifestação contra o Supremo Tribunal, bem como o seu “já falei minha opinião, o que faria com esses vagabundos”, foi deliberada provocação. Ele refletiu aquilo que Pedro Malan denominou de “presidencialismo de confrontação”. Essa marca de Jair Bolsonaro está infiltrada num governo que atira para todos os lados, mas não vai a lugar algum.

Um governo com rumo não teria três ministros da Saúde durante uma epidemia. Quando Weintraub disse numa reunião ministerial que “por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no Supremo Tribunal Federal”, a gravidade não estava nas suas palavras, mas na naturalidade com que foi ouvido. O ministro da Educassão manteve o nível do clima de churrasco na laje. Nele, além dos palavrões do presidente, o ministro da Economia fez uma suave defesa da legalização da jogatina.

Weintraub chegou ao governo substituindo um professor capaz de dizer que “o brasileiro viajando é um canibal, rouba coisas dos hotéis”. Como ministro, deu-se a cenas ridículas, hostilizou as universidades e o idioma. Com o rótulo de “ideológico”, mostrou-se um ruidoso inepto. Atrás dessa marca de fantasia, desfilou trapalhadas, inépcia y otras cositas más.

Durante seu mandarinato, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação teve quatro presidentes. O primeiro patrocinou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks para a rede pública de ensino. Coisa de R$ 3 bilhões. A Controladoria-Geral da União percebeu que 355 colégios receberiam mais laptops do que seu número de alunos. Aos 255 estudantes de uma escola mineira seriam mandados 30 mil laptops. Não havia ideologia nessa maracutaia.

Apontados os absurdos, o edital foi cancelado. O presidente do FNDE foi embora, como foram embora os dois seguintes, até que esse cofre de R$ 54 bilhões foi dominado pelo centrão. Até agora ninguém contou quem botou o jabuti na forquilha. Apesar de ter sugerido a remessa de “vagabundos” do Supremo para a cadeia, Weintraub não mostrou curiosidade pela concepção do edital.

Bolsonaro acha que a ida do doutor à manifestação de domingo “não foi muito prudente”. Vá lá, mas seu silêncio diante do jabuti do FNDE foi mais que imprudente. Se o governo busca uma saída honrosa para Weintraub, melhor faria anunciando uma entrada triunfal para a revelação do metabolismo que produziu o edital.

O “presidencialismo de confrontação” briga com as instituições e com chargistas, defende remédios milagrosos, flerta com a jogatina e chama Covid de “gripezinha”, sabendo que a economia amargará uma recessão histórica. A ideologia de Weintraub, como a de Bolsonaro, é irrelevante. Gustavo Bebianno, o general da reserva Santos Cruz e o economista Joaquim Levy foram demitidos sem preocupações cerimoniais e nenhum dos três fez um décimo das trapalhadas de Weintraub. Isso para não se falar de Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, que saíram do governo por suas virtudes.

No seu segundo ano de governo, a questão ideológica pode ser ruidosa, mas o maior problema de Bolsonaro está na inépcia.

Bolsonaro e o Dia de São Nunca - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 17/06

As atenções do Congresso para o combate aos efeitos da pandemia deram ao presidente o pretexto ideal para deixar as reformas para o Dia de São Nunca


Um governo que trabalha apenas para dar sobrevida política ao presidente da República dificilmente será capaz de propor as reformas de que o Brasil urgentemente precisa e, mais, de articular sua aprovação no Congresso. Mesmo antes da presente crise, quando a continuidade do mandato de Jair Bolsonaro não estava em questão e não havia a emergência nacional causada pela pandemia de covid-19, a agenda de reformas não era tratada com a devida seriedade pelo governo. Nada mudou de lá para cá – com a agravante de que a monopolização das atenções do Congresso para o combate aos efeitos da pandemia deu a um presidente tão desinteressado nas reformas que prometeu o pretexto ideal para deixá-las para o Dia de São Nunca.

Não surpreende assim que o presidente Bolsonaro tenha informado na segunda-feira, em entrevista à TV Band News, que a reforma administrativa, prometida por ele no ano passado e de novo no início deste ano, “com toda a certeza” ficará para 2021. “É um desgaste muito grande”, disse o presidente, argumentando que o maior obstáculo à reforma administrativa é uma suposta campanha da imprensa contra seu governo. “Eu não estou preocupado com reeleição, mas nós devemos nos preocupar com o brasileiro de forma honesta, justa, e não ser massacrado pela opinião pública por uma coisa que você não fez e não propôs. Então, a guerra da mídia é importante, por isso o atraso no envio da reforma administrativa”, disse Bolsonaro.

Para o presidente, portanto, a reforma administrativa só será enviada quando houver um “bom trabalho de mídia” para convencer os funcionários públicos de que eles não perderão sua estabilidade. “Senão, chega para os 12 milhões de servidores públicos que estou acabando com a estabilidade deles. Eu não estou preocupado com reeleição, mas temos que ouvir nossos eleitores”, disse o presidente. Ou seja, a obsessão de Bolsonaro, preocupadíssimo com a reeleição, é não contrariar sua base eleitoral. Logo, se vier, a reforma administrativa tem tudo para ser apenas um arremedo.

Já a reforma tributária é, nas palavras de Bolsonaro, “complicada”. Deve ser mesmo. Em 23 de setembro de 2019, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que a proposta de reforma tributária seria enviada pelo governo “na semana que vem”. Pouco menos de seis meses depois, em 5 de março deste ano, o mesmo ministro disse que a proposta de reforma tributária seria enviada “na semana que vem”.

Aparentemente essa tal “semana que vem” vai demorar ainda mais para chegar, pois Bolsonaro informou que quer uma reforma “que possa ser aprovada”. Em outras palavras, o governo está longe de elaborar uma proposta politicamente factível.

Assim, a exemplo do que aconteceu com a reforma da Previdência, o Executivo, preocupado somente em evitar desgaste eleitoral, tende a deixar para o Congresso o protagonismo da reforma tributária. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já avisou que essa reforma é prioridade do Legislativo, a partir de projetos apresentados pelos próprios parlamentares.

A boa notícia, portanto, é que o País parece depender cada vez menos da iniciativa de um governo tão perdido. Embora seja no mínimo excêntrico que, num regime presidencialista, o debate político esteja ocorrendo sem a participação do presidente – que, desde a posse, se dedica exclusivamente a causar tensão e criar instabilidade –, parece haver um bom clima para tocar adiante as reformas quando a pandemia arrefecer. E as reformas são ainda mais importantes diante da perspectiva sombria para as contas nacionais.

Nesse cenário de incerteza, teme-se, com razão, que a anunciada saída do secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, espécie de guardião dos limites fiscais, sinalize afrouxamento da agenda de controle dos gastos públicos. Mas essa agenda, mais do que nunca, não pode ficar na dependência dos humores de um ou outro funcionário do Ministério da Economia, do ministro Paulo Guedes ou, pior, do presidente Bolsonaro. O esforço de manutenção dos mecanismos de responsabilidade fiscal e de aprovação das mudanças necessárias para adequar os gastos públicos à real capacidade do País depende fundamentalmente da mobilização da sociedade – esta sim, a avalista indispensável das reformas.