domingo, junho 14, 2020

Os empresários e o joelho no pescoço - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 14/06

Donos do dinheiro vão apoiar esta venezuelização com desvario liberalóide-militar inepto?



O que o empresariado, a finança e o establishment econômico em geral ainda esperam de Jair Bolsonaro?

A conversa aqui exclui os colaboracionistas engajados no desgoverno e aqueles que patrocinam a propaganda parafascista, comícios golpistas e o terrorismo por ora virtual, nas redes insociáveis.

A pergunta é crua. Diz respeito apenas a interesses diretos da turma, manifestos desde a deposição de Dilma Rousseff, em 2015.

A premissa do plano era que a saída da crise depende da contenção de gastos, déficits e dívida, sem que essa conta fosse paga com impostos extras. Esperava-se que fossem reduzidos os custos da folha salarial, que viesse o desmanche sem substituição da proteção trabalhista e a limpeza do entulho burocrático e da confusão regulatória.

Quanto a providências de aumento da concorrência (como abertura comercial) e outras essenciais para que exista uma economia de mercado (como uniformização de impostos e fim de privilégios fiscais), o tema é divisivo, mexe no bolso e tem sido empurrado com a barriga o quanto possível.

Apesar do alerta até dos economistas liberais mais ilustrados, ainda é dominante a ideia de que tal plano será retomado, sem mais, “depois da epidemia”. Mas não haverá um depois da epidemia. A doença vai continuar por um longo tempo até que o espalhamento do vírus se esgote ou seja limitado por falta de vítimas, por muitos meses.

Neste momento, a economia terá sido infectada até a medula, transformada e não apenas arruinada pelo Covid-19 e pela baderna subversiva de Bolsonaro, de quem o país é refém, em parte por causa das ameaças golpistas de seus generais.

Não é jogo de palavras. Diz-se que, “depois da epidemia”, deve se limitar o gasto público ao teto. Suponha-se que não seja preciso gastar mais a fim de evitar convulsão social e mais falências. Ainda assim, o déficit será imenso, por falta de receita, receita que aliás jamais voltou ao nível de 2014 (em relação ao PIB).

Em uma economia estagnada, de resto, o teto ajudou apenas a trazer o déficit de 2,6% do PIB em 2016 para ainda 1,8% do PIB em 2019. Enfim, o teto passa a explodir em 2021. Faltará dinheiro para despesas elementares. Nem em seus termos o plano para em pé.

O endividamento crescerá sem limite a não ser que sobrevenha uma combinação de gerência eficaz da taxa de juros da dívida pública (talvez heterodoxa, alguma repressão financeira), alta de impostos e aceleração de início forçada do crescimento.

A economia dependerá decerto de alguma versão das “reformas” (espera-se que mais civilizada e inteligente), que não bastará para reacender a economia, como não o fez nos quatro anos depois da recessão. Investimento público será necessário, entre outras muitas medidas.

A alternativa é o plano Bolsonaro-Guedes, que nem saía do papel antes da peste, por incapacidade executiva, política e desvario.

Ainda pode ser feito, com uma combinação de repressão e miséria prolongada. Dadas as projeções de mercado para o PIB, apenas em 2028 o país voltaria a ter renda per capita igual à de 2013.

Sim, pode ser feito, com um joelho no pescoço dos miseráveis. Isso em um ambiente de incitação ao armamento do bolsonarismo, de insubordinação nas polícias, de politização dos quarteis, de radicalização do ódio político, de aliança do generalato com políticos corruptos e de crescente isolamento internacional do país. Como diz o clichê, é um programa Venezuela Plus Gold.

O empresariado vai ser cúmplice do joelho no pescoço?

Dinheiro público, dinheiro sujo e guerra à democracia - ROLF KUNTZ

O Estado de S.Paulo - 14/06

Até o TCU entra na briga pelo Estado de Direito contra a política de Bolsonaro


Democracia tem tudo a ver com imprensa livre - imprensa de verdade, conduzida de forma aberta e responsável - e essa verdade tem sido comprovada no dia a dia do governo Bolsonaro. O presidente mantém uma simetria perfeita entre seus atos contra as instituições, como a presença em manifestações golpistas, e, de outro lado, o combate constante aos meios de comunicação profissionais e o apoio às centrais de mentiras e de mensagens de ódio. O horror do presidente e de seus minigoebbels ao jornalismo decente já ultrapassou as fronteiras da política. Tornou-se um fato também contábil, como demonstra, por exemplo, o parecer preliminar do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre as finanças federais de 2019.

Com 14 ressalvas, 21 recomendações e 7 alertas, o parecer recomenda, apesar de tudo, a aprovação do balanço encaminhado pelo presidente da República. Mas passa longe de recomendar o comportamento presidencial em relação às instituições e à sociedade ferida pela pandemia de covid-19. Ao apresentar o documento, numa sessão virtual, o relator do processo, ministro Bruno Dantas, propôs em primeiro lugar um minuto de silêncio em homenagem às vítimas do novo coronavírus. Foi um gesto de respeito raramente esboçado pelo presidente Jair Bolsonaro, até a sessão ministerial transmitida ao vivo, há poucos dias, numa encenação de seriedade governamental.

“A democracia brasileira pode ser jovem”, disse o ministro, “mas seu conceito não é recente, nem é efêmera sua construção. O abalo dos alicerces de nosso Estado de Direito Democrático não é um mero recuo à década de 60 do século passado. É um recuo de oito séculos, ao período medieval”. Ele falava, nesse momento, da cooperação, da independência e do respeito entre os Poderes, noções frequentemente renegadas, com sua anuência silenciosa, por apoiadores do presidente. Mas às vezes, de fato, nem tão silenciosa, como quando ele anuncia - para em seguida se corrigir - a disposição de rejeitar decisões do Judiciário ou do Legislativo.

A defesa do Estado Democrático de Direito foi mais detalhada quando o ministro examinou a relação do Executivo com os meios de comunicação. A distribuição de verbas de publicidade, comentou, tem seguido “critérios pouco técnicos”. Mencionou conflitos com a Folha de S.Paulo e a ameaça de não renovar a concessão da Rede Globo.

“Por certo”, concluiu o ministro nessa parte, “esse assunto não se esgotará aqui, devendo toda a sociedade e este tribunal ficar vigilantes, atentos e zelosos pela regularidade, legitimidade e economicidade dos gastos com comunicação social do governo federal, visando a garantir a isonomia de tratamento entre os veículos, a imprensa livre e o compromisso com a verdade.”

Lambanças do governo com verbas de comunicação haviam sido denunciadas no começo de junho pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News. Uma semana antes de aparecer o relatório do TCU, o público já havia sido informado sobre a destinação de verbas a canais nada ortodoxos, dedicados, por exemplo, à pornografia, a jogos de azar, à promoção da figura do presidente e, é claro, à difusão de fake news. Segundo o relatório, elaborado por consultores legislativos, mais de 2 milhões de anúncios foram publicados em sites dessa qualidade num curto intervalo, em 2019. Dados da própria Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom), referentes a junho e julho, foram usados pelos consultores.

A maior parte dos anúncios foi destinada, segundo o relatório, à promoção da reforma da Previdência. O projeto foi defendido até em sites de atividades ilegais, como um dedicado à publicação de resultados do jogo do bicho. Entre os mais favorecidos havia 14 canais destinados ao público infantojuvenil, um deles caracterizado pelo uso do idioma russo. Sites de notícias falsas foram identificados em posições de destaque, assim como páginas de apoiadores do presidente Bolsonaro.

Divulgado o relatório, a direção da Secom tratou de se defender numa nota. Segundo o texto, a destinação das verbas era decidida pelo sistema Google AdSense, por meio de um algoritmo. A explicação deveria caber, portanto, ao Google. O responsável pela Secretaria de Comunicação exibiu, na tentativa de defesa, ignorância de noções fundamentais de administração. Um gestor pode transferir e até privatizar tarefas, mas a responsabilidade é intransferível. Mais que chocante, o desconhecimento ou menosprezo desse fato é inaceitável quando se trata de gestão pública - mais precisamente, de dinheiro público.

Os muito otimistas poderão apostar em mudanças. Descumprindo mais uma de suas promessas, o presidente acaba de recriar o Ministério das Comunicações. Escolhido para o posto, o deputado Fábio Faria (PSD-RN) é genro do empresário Sílvio Santos. O ex-chefe da Secom será secretário-geral, isto é, vice-ministro. Só haverá mudança, obviamente, se o novo ministro renegar a política da Secom e do presidente e seguir os valores do Estado Democrático de Direito. Como fazer isso e ao mesmo tempo obedecer a um Bolsonaro?


O segundo inverno do governo Bolsonaro - PEDRO MALAN

O Estado de S.Paulo - 14/06

O presidencialismo de confrontação vem encontrando resistência crescente na sociedade



“The life so short, the craft so long to learn” - Geoffrey Chaucer

“A vida tão curta, o ofício tão longo de aprender”, poderia ser essa a tradução para nossa língua do belo inglês medieval com que Chaucer traduziu o conhecido e um tanto insípido original em latim: “Ars longa, vita brevis”.

Em junho do ano passado escrevi neste espaço texto que tinha por título O primeiro inverno do governo Bolsonaro. O artigo tratava da importância de estimular debates políticos “vigorosos e eficazes” (Rorty) e notava que isso exigiria a superação da excessiva polarização vigente e um gradual deslocamento para o centro, de forma que pudessem restar atenuadas as posições extremadas que marcavam o precário debate nas redes sociais. O texto comentava ainda que esse sonho teria de ser construído ao longo dos meses e anos seguintes, porque era difícil imaginar que pudéssemos seguir com o grau de polarização, surpresas e incertezas que marcaram os primeiros seis meses do governo.

E, no entanto, as incertezas, dubiedades e contradições, em lugar de arrefecer, só fizeram acentuar-se desde então. A polarização acerba que aquele texto apontava terá sido a marca dos primeiros 18 meses do governo Bolsonaro, que serão alcançados ao fim deste mês e correspondem a 40% do tempo de que dispõe até as eleições de outubro de 2022.

Ainda este ano o Brasil elegerá nada menos que 5.570 prefeitos, e cerca de 57.800 vereadores. Essa disputa costuma dar-se em torno de agendas locais ou, no máximo, estaduais, à exceção de algumas grandes capitais. Caso queiramos tentar evitar, em outubro de 2022, uma reencenação da experiência de 2018, desde este ano de 2020 as coisas deveriam passar-se de forma diferente. Dois versos do famoso poema de Yeats The Second Coming (1939) vêm à mente: “The center does not hold/ things fall apart” (o centro não se sustenta, as coisas entram em colapso).

Há razões para acreditar que “as coisas” estão mudando, e podem continuar a mudar. O presidencialismo de confrontação permanente – com adversários que, embora legítimos, são vistos como inimigos a serem batidos, derrotados nas ruas, nas redes e, se necessário for, pelas armas – vem encontrando resistência. Resistência por parte dos outros Poderes, da mídia profissional e, crescentemente, por parte expressiva da sociedade. Daí a importância das eleições municipais deste ano. Seus resultados terão forçosamente influência nas eleições de 2022.

Aplicam-se ao Brasil de hoje as palavras com que Barack Obama, em discurso recente, se referiu a seu país: “Por mais trágicas que as últimas semanas tenham sido, (...) elas também foram dias de oportunidades incríveis para que as pessoas acordem para algumas questões – e (...) para que trabalhemos juntos para enfrentá-las”. Obama referia-se à pandemia de covid-19 e ao racismo, que chamou “praga e pecado original da sociedade americana”. Ao final de seu discurso, realçou a importância do voto; ao tratar da discussão na internet sobre votar versus protestar, sobre participação política versus desobediência civil, apontou a necessidade de “ressaltar qual é o problema, fazer as pessoas que estão no poder desconfortáveis, mas também (de) traduzir isso em leis”. Lá, como aqui, nos três níveis de governo.

Gradualmente, insisto, a sociedade brasileira vem se expressando mais. Em poucos meses, com as eleições municipais, haverá ocasião especialmente relevante para fazê-lo. Será fundamental que a expressão – de vontade, de opinião – resulte de cuidadosa avaliação: sobre quem os partidos indicaram, sobre como conduziram suas campanhas, sobre as eventuais novas faces que terão surgido e se mostrado dispostas a de fato contribuir para mudar para melhor a vida das pessoas no âmbito de suas respectivas cidades, sobre quantos, enfim, terão demonstrado real conhecimento dos desafios a enfrentar – e não se limitado a expressar platitudes, chavões batidos e promessas fadadas ao descumprimento.

Volto à epígrafe deste artigo. A parte inicial da expressão medieval de Chaucer pouco se aplica a países, que só muito raramente têm a vida “tão curta”. Mas a palavra craft, quando precedida do vocábulo state, significa ofício de estadistas – statecraft. Este será sempre, para países, um ofício “longo de aprender”.

Países que não têm praticantes desse ofício e não estimulam seu surgimento tendem a ficar para trás com relação aos que os têm e que o fazem. Estes produzem – por meio do funcionamento da democracia, pelo voto – lideranças (o plural é importante). Que se caracterizam por respeito aos fatos, capacidade de coordenação, predisposição ao diálogo franco com pessoas e partidos de visões diferentes, incluídos aí adversários políticos, que podem discordar, mas também concordar em matérias de interesse geral – e não devem ser vistos, todos, como inimigos.

Statecraft, está claro, é o que não temos hoje em nosso país e, a julgar por estes primeiros 18 meses, não teremos nos 60% do tempo que resta até as eleições de outubro de 2022. O presidente – e seus fiéis seguidores – julgam que esses 60% constituem pouco tempo. Muitos outros discordam, legítima e pacificamente. Como é natural em democracias.

Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC

A Constituição como inimiga - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 14/06

No devaneio ditatorial que os camisas pardas bolsonaristas acalentam, não há verdade senão aquela “revelada” por seu líder.


Impressiona a quantidade de vezes que ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tiveram que explicar ao presidente Jair Bolsonaro aspectos básicos da Constituição - aquela mesma que ele jurou respeitar ao tomar posse, mas que, dia e noite, trata de desvirtuar.

Na hipótese de que seja apenas ignorância, é espantoso que um político que passou três décadas no Congresso e hoje é a autoridade executiva máxima da República demonstre desconhecimento tão profundo do texto constitucional.

O presidente, por exemplo, já declarou que “qualquer dos Poderes” pode “pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”. Fazia referência ao artigo 142 da Constituição, que, na exótica interpretação de Bolsonaro, lhe permitiria convocar as Forças Armadas para intervir em crises e também para atuar como uma espécie de “Poder Moderador” quando há conflito entre Poderes.

O presidente repetiu em diversas ocasiões essa interpretação mesmo tendo sido alertado por especialistas e magistrados de que se tratava de uma leitura estapafúrdia da Constituição. Isso enseja uma outra hipótese: a de que Bolsonaro sabe muito bem o que está fazendo, ou seja, trata de confundir a opinião pública e, em meio a um “debate” constitucional sem sentido, dar verniz de legitimidade a seus propósitos autoritários. Ao mesmo tempo, tenta enredar as Forças Armadas em seu projeto de poder, com o objetivo óbvio de intimidar os opositores.

É por esse motivo que são tão importantes manifestações cristalinas como a do presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, a propósito da absurda interpretação bolsonarista sobre o papel das Forças Armadas. “As Forças Armadas sabem muito bem que o artigo 142 não lhes dá (qualidade) de Poder Moderador. Tenho certeza de que as Forças Armadas são instituições de Estado que servem ao povo brasileiro, não são instituições de governo”, disse o ministro Toffoli.

Sendo o Supremo o intérprete final da Constituição, pode-se dizer que o caso está encerrado, mas tudo indica que Bolsonaro insistirá em sua exegese ardilosa do artigo 142. Afinal, seu objetivo é fazer suas mentiras se transformarem em verdades apenas pelo mecanismo da repetição incessante, a despeito - e muitas vezes à revelia - da realidade.

O presidente usa essa estratégia tipicamente totalitária ao insistir também que “o Supremo Tribunal Federal decidiu que governadores e prefeitos é que são responsáveis por essa política (de impor a quarentena contra a pandemia de covid-19), inclusive isolamento”, razão pela qual ele diz que não pode ser responsabilizado nem pelas mortes nem pela crise. “Não queiram colocar no meu colo”, disse Bolsonaro, numa frase que já se tornou padrão em um governo que não assume responsabilidade por nada.

Parece inútil explicar ao presidente, como já se fez diversas vezes, que em nenhum momento o Supremo atribuiu a Estados e municípios competência exclusiva para lidar com a pandemia. O STF, ao contrário, decidiu que União, Estados e municípios têm “competência concorrente” - isto é, todos os entes da Federação têm de agir para enfrentar a crise, em seus diversos aspectos, “preservada a atribuição de cada esfera de governo”.

O que Bolsonaro queria, na verdade, era ter poder para ordenar a Estados e municípios que ignorassem a pandemia e mantivessem a economia em funcionamento, atropelando não apenas as recomendações sanitárias, mas principalmente o princípio federativo gravado na Constituição. Como teve seu intento autoritário mais uma vez frustrado pelo Supremo, tratou de investir na versão fantasiosa segundo a qual é o Judiciário que o impede de tomar as medidas necessárias para o que o País “volte à normalidade”.

No devaneio ditatorial que os camisas pardas bolsonaristas acalentam, não há verdade senão aquela “revelada” por seu líder. Não à toa, já houve até um ministro de Bolsonaro que demandou a prisão de ministros do Supremo, já que estes ousaram contestar a “verdade” do chefe confrontando-a com a Constituição. Assim, na sua busca por um inimigo objetivo, que todo movimento totalitário requer, o bolsonarismo já encontrou o seu: é a própria Constituição, que reflete não a vontade de seu líder, mas o esforço coletivo de construção de um regime genuinamente democrático.