domingo, junho 14, 2020

O segundo inverno do governo Bolsonaro - PEDRO MALAN

O Estado de S.Paulo - 14/06

O presidencialismo de confrontação vem encontrando resistência crescente na sociedade



“The life so short, the craft so long to learn” - Geoffrey Chaucer

“A vida tão curta, o ofício tão longo de aprender”, poderia ser essa a tradução para nossa língua do belo inglês medieval com que Chaucer traduziu o conhecido e um tanto insípido original em latim: “Ars longa, vita brevis”.

Em junho do ano passado escrevi neste espaço texto que tinha por título O primeiro inverno do governo Bolsonaro. O artigo tratava da importância de estimular debates políticos “vigorosos e eficazes” (Rorty) e notava que isso exigiria a superação da excessiva polarização vigente e um gradual deslocamento para o centro, de forma que pudessem restar atenuadas as posições extremadas que marcavam o precário debate nas redes sociais. O texto comentava ainda que esse sonho teria de ser construído ao longo dos meses e anos seguintes, porque era difícil imaginar que pudéssemos seguir com o grau de polarização, surpresas e incertezas que marcaram os primeiros seis meses do governo.

E, no entanto, as incertezas, dubiedades e contradições, em lugar de arrefecer, só fizeram acentuar-se desde então. A polarização acerba que aquele texto apontava terá sido a marca dos primeiros 18 meses do governo Bolsonaro, que serão alcançados ao fim deste mês e correspondem a 40% do tempo de que dispõe até as eleições de outubro de 2022.

Ainda este ano o Brasil elegerá nada menos que 5.570 prefeitos, e cerca de 57.800 vereadores. Essa disputa costuma dar-se em torno de agendas locais ou, no máximo, estaduais, à exceção de algumas grandes capitais. Caso queiramos tentar evitar, em outubro de 2022, uma reencenação da experiência de 2018, desde este ano de 2020 as coisas deveriam passar-se de forma diferente. Dois versos do famoso poema de Yeats The Second Coming (1939) vêm à mente: “The center does not hold/ things fall apart” (o centro não se sustenta, as coisas entram em colapso).

Há razões para acreditar que “as coisas” estão mudando, e podem continuar a mudar. O presidencialismo de confrontação permanente – com adversários que, embora legítimos, são vistos como inimigos a serem batidos, derrotados nas ruas, nas redes e, se necessário for, pelas armas – vem encontrando resistência. Resistência por parte dos outros Poderes, da mídia profissional e, crescentemente, por parte expressiva da sociedade. Daí a importância das eleições municipais deste ano. Seus resultados terão forçosamente influência nas eleições de 2022.

Aplicam-se ao Brasil de hoje as palavras com que Barack Obama, em discurso recente, se referiu a seu país: “Por mais trágicas que as últimas semanas tenham sido, (...) elas também foram dias de oportunidades incríveis para que as pessoas acordem para algumas questões – e (...) para que trabalhemos juntos para enfrentá-las”. Obama referia-se à pandemia de covid-19 e ao racismo, que chamou “praga e pecado original da sociedade americana”. Ao final de seu discurso, realçou a importância do voto; ao tratar da discussão na internet sobre votar versus protestar, sobre participação política versus desobediência civil, apontou a necessidade de “ressaltar qual é o problema, fazer as pessoas que estão no poder desconfortáveis, mas também (de) traduzir isso em leis”. Lá, como aqui, nos três níveis de governo.

Gradualmente, insisto, a sociedade brasileira vem se expressando mais. Em poucos meses, com as eleições municipais, haverá ocasião especialmente relevante para fazê-lo. Será fundamental que a expressão – de vontade, de opinião – resulte de cuidadosa avaliação: sobre quem os partidos indicaram, sobre como conduziram suas campanhas, sobre as eventuais novas faces que terão surgido e se mostrado dispostas a de fato contribuir para mudar para melhor a vida das pessoas no âmbito de suas respectivas cidades, sobre quantos, enfim, terão demonstrado real conhecimento dos desafios a enfrentar – e não se limitado a expressar platitudes, chavões batidos e promessas fadadas ao descumprimento.

Volto à epígrafe deste artigo. A parte inicial da expressão medieval de Chaucer pouco se aplica a países, que só muito raramente têm a vida “tão curta”. Mas a palavra craft, quando precedida do vocábulo state, significa ofício de estadistas – statecraft. Este será sempre, para países, um ofício “longo de aprender”.

Países que não têm praticantes desse ofício e não estimulam seu surgimento tendem a ficar para trás com relação aos que os têm e que o fazem. Estes produzem – por meio do funcionamento da democracia, pelo voto – lideranças (o plural é importante). Que se caracterizam por respeito aos fatos, capacidade de coordenação, predisposição ao diálogo franco com pessoas e partidos de visões diferentes, incluídos aí adversários políticos, que podem discordar, mas também concordar em matérias de interesse geral – e não devem ser vistos, todos, como inimigos.

Statecraft, está claro, é o que não temos hoje em nosso país e, a julgar por estes primeiros 18 meses, não teremos nos 60% do tempo que resta até as eleições de outubro de 2022. O presidente – e seus fiéis seguidores – julgam que esses 60% constituem pouco tempo. Muitos outros discordam, legítima e pacificamente. Como é natural em democracias.

Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC

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