UOL 06/06
O Brasil ainda tem muito a desaprender com Jair Bolsonaro. O presidente não se limita a fazer tudo errado na crise do coronavírus. Ele se esmera no erro. Faz o pior o melhor que pode.
Depois de esvaziar a pasta da Saúde até reduzi-la à função de calculadora de cadáveres, Bolsonaro decidiu desmoralizar os cálculos. Quer "provar" que a única coisa que as estatísticas oficiais provam é que as estatísticas não provam nada. Em vez de tratar a doença, prefere retocar a radiografia.
A contabilidade da Saúde é feita sobre números enviados pelos estados. Sabe-se que há subnotificação, pois o índice de testagem é baixo. Mas o presidente passou a sustentar o contrário. Insinua em privado que governadores inflacionam dados para "politizar" o vírus, "arrancar dinheiro" da União e colocar cadáveres em 2022.
O desconforto de Bolsonaro com os números da pandemia é grande. Aumenta na proporção direta do crescimento da pilha de mortos. O incômodo foi potencializado pelo Jornal Nacional, uma vitrine que leva corpos, caixões e covas à sala dos brasileiros todas as noites, a partir de 20h30.
Quando Henrique Mandetta era ministro da Saúde, o acerto de contas do vírus era divulgado às 17h —com direito a entrevista coletiva. Sob Nelson Teich, a coisa foi deslizando para as 20h. Entrevistas, só de raro em raro. Na gestão interina do general Eduardo Pazuello, o horário passou a ser 22h. Sem explicações.
Na noite de quarta-feira, a pasta da Saúde atribuiu o atraso a questões técnicas. Na quinta, absteve-se de comentar. Nesta sexta, coube a Bolsonaro desvendar o mistério numa entrevista à CNN, na porta do Alvorada: "Acabou matéria do Jornal Nacional." Heimmm?!?!? "Ninguém tem que correr para atender a Globo."
William Bonner viu-se compelido a prometer: "Os espectadores da Globo podem ter certeza de uma coisa: serão informados sobre os números tão logo sejam anunciados, porque o jornalismo da Globo corre sempre para atender o seu público". O apresentador retornaria às 21h45 para anunciar: 1.005 mortes nas últimas 24 horas, totalizando 35.026 óbitos.
"Nós dissemos que você teria esses números assim que fossem anunciados. Estamos aqui cumprindo o que nós dissemos", disse Bonner. Horas depois, Renata Lo Prete esmiuçaria os dados e as manobras no Jornal da Globo.
Quer dizer: obcecado em prejudicar o Jornal Nacional, Bolsonaro esticou e enobreceu o horário nobre da TV Globo. Prepara-se agora para magnificar sua própria mediocridade, torturando estatísticas para que elas informem o que lhe parecer conveniente.
O Ministério da Saúde acaba de divulgar que 30.830 brasileiros entraram nos registros oficiais de casos de Covid-19. O país tem agora um total de 645.771 infectados. São 35.026 mortes por coronavírus. pic.twitter.com/wHZmJHXcY6-- Jornal Nacional (@jornalnacional) June 6, 2020
sábado, junho 06, 2020
Ueba! Brasileirão vira Antifão! - JOSÉ SIMÃO
FOLHA DE SP - 06/06
E os minions já estão gritando pros antifas: 'Vão pros Estados Unidos'
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E a jornalista Adriana Carranca: “O Brasil é o único país do mundo que está relaxando o isolamento que nunca fez!”. Brasileiro fez isolamento na calçada, fez isolamento fazendo campeonato de pipa em Padre Miguel. E apresentação da banda militar em Belém. E não sei por que o Covas liberou concessionária. Carro eu só compro com o Queiroz! Rarará!
E o Weintraub escreve racismo com cê-cedilha e chinês com xis: RAÇISMO e XINÊS! A Xina! Rarará! E o Trump mudou o nome da Casa Branca para Casa da Supremacia Branca! E atenção! “Torcidas antifascistas marcam ato contra Bolsonaro neste domingo em várias capitais!” O Brasileirão virou Antifão! E como não teremos campeonato de futebol esse ano, a torcida que derrubar Bolsonaro vira campeã! E se o Bolsonaro cair, pênalti pro Corinthians! E se o Palmeiras derrubar o Bolsonaro, ganha um mundial. Rarará.
E essas manifestações são efeito dominó das americanas. E os minions já estão gritando pros antifas: “Vão pros Estados Unidos”. Cuba e Venezuela estão defasados. Agora é “Vai pros Estados Unidos!”. Rarará!
Centrão não tem casos confirmados, tem cargos confirmados! E o centrão exige 300 toalhas brancas, dez caixas de champanhe, frigobar lotado e R$ 100 bilhões em notas de R$ 2! É o Rock in Rios de dinheiro. E o que me deixa mais atônito é saber que o Roberto Jefferson tá solto. O mensalão volta ao Planalto! E o chargista Sinovaldo revela o que o centrão gritou pro Bolsonaro: “Agora me passa as cuecas!”. Rarará! E tem tanto milico na Saúde que quando você espirra eles não gritam saúde, gritam Selva! ATCHIM! SELVA! ATCHIM! SENTIDO! Não me estou me sentindo bem: dez cloroquinas e 50 flexões! Rarará!
E quem acha que o Brasil é uma democracia racial, pergunta pra polícia! O primeiro a ser preso é um negro, o segundo, é um negro, e o terceiro, é um negro. E se couber no camburão, prende um branco! E jornalistas que acompanham as manifestações de Nova York deviam ganhar por quilômetro! Tem uma loira linda da GloboNews que já está sem fôlego: “Os manifestantes, arf, vão andar por mais 12 km, arf, em direção a Washigton Square, arf”. Rarará!
E os apoiadores do Weintraub carregando ele nos ombros com a bandeira do Brasil Império. Os apoiadores são monarquistas e ele é caçador de comunista. Sendo que o último comunista do Brasil já morreu, o Niemeyer! E agora o Maia tá todo dia na televisão. Fala parecendo boneco de táxi, só balança a cabeça! Tartaruguinha de táxi, só fica balançando a cabeça! Rarará.
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
José Simão
Jornalista, precursor do humor jornalístico.
E os minions já estão gritando pros antifas: 'Vão pros Estados Unidos'
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E a jornalista Adriana Carranca: “O Brasil é o único país do mundo que está relaxando o isolamento que nunca fez!”. Brasileiro fez isolamento na calçada, fez isolamento fazendo campeonato de pipa em Padre Miguel. E apresentação da banda militar em Belém. E não sei por que o Covas liberou concessionária. Carro eu só compro com o Queiroz! Rarará!
E o Weintraub escreve racismo com cê-cedilha e chinês com xis: RAÇISMO e XINÊS! A Xina! Rarará! E o Trump mudou o nome da Casa Branca para Casa da Supremacia Branca! E atenção! “Torcidas antifascistas marcam ato contra Bolsonaro neste domingo em várias capitais!” O Brasileirão virou Antifão! E como não teremos campeonato de futebol esse ano, a torcida que derrubar Bolsonaro vira campeã! E se o Bolsonaro cair, pênalti pro Corinthians! E se o Palmeiras derrubar o Bolsonaro, ganha um mundial. Rarará.
E essas manifestações são efeito dominó das americanas. E os minions já estão gritando pros antifas: “Vão pros Estados Unidos”. Cuba e Venezuela estão defasados. Agora é “Vai pros Estados Unidos!”. Rarará!
Centrão não tem casos confirmados, tem cargos confirmados! E o centrão exige 300 toalhas brancas, dez caixas de champanhe, frigobar lotado e R$ 100 bilhões em notas de R$ 2! É o Rock in Rios de dinheiro. E o que me deixa mais atônito é saber que o Roberto Jefferson tá solto. O mensalão volta ao Planalto! E o chargista Sinovaldo revela o que o centrão gritou pro Bolsonaro: “Agora me passa as cuecas!”. Rarará! E tem tanto milico na Saúde que quando você espirra eles não gritam saúde, gritam Selva! ATCHIM! SELVA! ATCHIM! SENTIDO! Não me estou me sentindo bem: dez cloroquinas e 50 flexões! Rarará!
E quem acha que o Brasil é uma democracia racial, pergunta pra polícia! O primeiro a ser preso é um negro, o segundo, é um negro, e o terceiro, é um negro. E se couber no camburão, prende um branco! E jornalistas que acompanham as manifestações de Nova York deviam ganhar por quilômetro! Tem uma loira linda da GloboNews que já está sem fôlego: “Os manifestantes, arf, vão andar por mais 12 km, arf, em direção a Washigton Square, arf”. Rarará!
E os apoiadores do Weintraub carregando ele nos ombros com a bandeira do Brasil Império. Os apoiadores são monarquistas e ele é caçador de comunista. Sendo que o último comunista do Brasil já morreu, o Niemeyer! E agora o Maia tá todo dia na televisão. Fala parecendo boneco de táxi, só balança a cabeça! Tartaruguinha de táxi, só fica balançando a cabeça! Rarará.
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
José Simão
Jornalista, precursor do humor jornalístico.
Alunos devem passar por decreto? - HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 06/06
Escolas terão de ser bem mais tolerantes e, no próximo ano, de redobrar esforços para recuperar quem ficou para trás
O que fazer com os alunos neste ano? Reprová-los se não atingirem os níveis mínimos de conhecimento esperados? Passar todo mundo por decreto?
A pandemia atingiu em cheio a educação. Da noite para o dia, as escolas tiveram de interromper as aulas presenciais e improvisar programas de ensino à distância. Alguns se deram melhor, e outros, pior. Estudantes mais velhos, mais motivados e mais ricos sofrem o menor impacto. Seu prejuízo talvez seja administrável. Já os mais novos, os não tão entusiasmados e os mais pobres amargam as piores consequências.
Fingir que nada aconteceu e manter os critérios de sempre para reprovações é o pior caminho. Aliás, a reprovação, mesmo em tempos normais, é um péssimo caminho. Há ampla evidência empírica de que ela causa mais prejuízos do que traz benefícios. Quem duvida deve consultar os trabalhos e revisões sistemáticas de autores como Shane Jimerson.
A alternativa, então, é a aprovação automática? Também não. Se as autoridades anunciarem hoje que todos os alunos vão passar de ano independentemente do que façam, aqueles que já não são muito fãs de estudar não farão mais nada até dezembro. Isso nem é pedagogia, é natureza humana. Mas os mesmos trabalhos que mostram que a repetência não funciona senão em raríssimas situações indicam que a promoção automática tampouco é a resposta. Ela apenas posterga problemas.
A dura verdade é que educar dá trabalho, exigindo que cada estudante seja acompanhado de perto e receba o apoio necessário para seguir com sua turma. Quanto antes as dificuldades forem identificadas, melhor o prognóstico.
O corolário disso é que, neste ano, escolas terão de ser bem mais tolerantes no seu nível de exigência e, no próximo, terão de redobrar seus esforços para recuperar os que ficaram para trás. Tudo isso num contexto de muita dificuldade econômica para as instituições privadas e demanda extra para as públicas.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
Escolas terão de ser bem mais tolerantes e, no próximo ano, de redobrar esforços para recuperar quem ficou para trás
O que fazer com os alunos neste ano? Reprová-los se não atingirem os níveis mínimos de conhecimento esperados? Passar todo mundo por decreto?
A pandemia atingiu em cheio a educação. Da noite para o dia, as escolas tiveram de interromper as aulas presenciais e improvisar programas de ensino à distância. Alguns se deram melhor, e outros, pior. Estudantes mais velhos, mais motivados e mais ricos sofrem o menor impacto. Seu prejuízo talvez seja administrável. Já os mais novos, os não tão entusiasmados e os mais pobres amargam as piores consequências.
Fingir que nada aconteceu e manter os critérios de sempre para reprovações é o pior caminho. Aliás, a reprovação, mesmo em tempos normais, é um péssimo caminho. Há ampla evidência empírica de que ela causa mais prejuízos do que traz benefícios. Quem duvida deve consultar os trabalhos e revisões sistemáticas de autores como Shane Jimerson.
A alternativa, então, é a aprovação automática? Também não. Se as autoridades anunciarem hoje que todos os alunos vão passar de ano independentemente do que façam, aqueles que já não são muito fãs de estudar não farão mais nada até dezembro. Isso nem é pedagogia, é natureza humana. Mas os mesmos trabalhos que mostram que a repetência não funciona senão em raríssimas situações indicam que a promoção automática tampouco é a resposta. Ela apenas posterga problemas.
A dura verdade é que educar dá trabalho, exigindo que cada estudante seja acompanhado de perto e receba o apoio necessário para seguir com sua turma. Quanto antes as dificuldades forem identificadas, melhor o prognóstico.
O corolário disso é que, neste ano, escolas terão de ser bem mais tolerantes no seu nível de exigência e, no próximo, terão de redobrar seus esforços para recuperar os que ficaram para trás. Tudo isso num contexto de muita dificuldade econômica para as instituições privadas e demanda extra para as públicas.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
Deem um copo de sangue a Bolsonaro; o canibal está com sede - REINALDO AZEVEDO
UOL 05/06
"Deem um copo de sangue a este canibal. Ele está com sede".
Essa foi a frase com que um adversário brindou Marat durante o curto período do Terror, quando os jocobinos comandaram o processo revolucionário. Não lembro o nome do sujeito. Devo ter lido no "Dicionário Crítico da Revolução Francesa", de François Furet, que recomendo vivamente.
Bolsonaro não é jacobino. É um porra-louca de extrema direita. Um irresponsável político.
Por essa razão, ele está torcendo para que protestos no domingo degenerem em pancadaria. E, ora vejam, está incitando as PMs nos Estados a reprimir os manifestantes. Mas não quaisquer manifestantes: apenas os que gritarem "Fora Bolsonaro".
Quem pedir fechamento do Congresso e do Supremo — criminoso, portanto! — deve ser tratado a pão de ló.
Não só isso. Ele também está querendo chamar a Força Nacional de Segurança para reprimir os manifestantes.
Além da sede de sangue, há a força da emulação.
Donald Trump, aquele que não cansa de lhe dar joelhada no queixo, está fazendo a mesma coisa nos EUA. Também ele cobra dos governadores que baixem o sarrafo em quem protesta. Também ele ameaça a população com a Guarda Nacional. Já levou como troco uma carta dos comandantes militares do país: servem à Constituição. E os cidadãos têm direito de se manifestar.
Sim, Bolsonaro está querendo um pretexto para largar o braço nos seus adversários.
Nem adianta fazer ironia com a sua concepção de democracia. Ele não é um democrata.
Renovo a recomendação para que os manifestantes fiquem atentos aos agentes provocadores. Qualquer um que escolher o caminho da violência estará fazendo o jogo da fascistada.
E muita atenção, também, ao comportamento dos policiais. Tudo tem de ser documentado.
O bolsonarismo está fazendo proselitismo junto às Polícias Militares, como se os PMs contassem com um presidente batuta e que zela por seus interesses.
Que as PMs cumpram a regra do jogo e não caiam na conversa de demagogos, não é? Até porque o congelamento de salários da categoria não é obra nem dos governadores nem dos adversários do presidente.
É obra de Bolsonaro.
"Deem um copo de sangue a este canibal. Ele está com sede".
Essa foi a frase com que um adversário brindou Marat durante o curto período do Terror, quando os jocobinos comandaram o processo revolucionário. Não lembro o nome do sujeito. Devo ter lido no "Dicionário Crítico da Revolução Francesa", de François Furet, que recomendo vivamente.
Bolsonaro não é jacobino. É um porra-louca de extrema direita. Um irresponsável político.
Por essa razão, ele está torcendo para que protestos no domingo degenerem em pancadaria. E, ora vejam, está incitando as PMs nos Estados a reprimir os manifestantes. Mas não quaisquer manifestantes: apenas os que gritarem "Fora Bolsonaro".
Quem pedir fechamento do Congresso e do Supremo — criminoso, portanto! — deve ser tratado a pão de ló.
Não só isso. Ele também está querendo chamar a Força Nacional de Segurança para reprimir os manifestantes.
Além da sede de sangue, há a força da emulação.
Donald Trump, aquele que não cansa de lhe dar joelhada no queixo, está fazendo a mesma coisa nos EUA. Também ele cobra dos governadores que baixem o sarrafo em quem protesta. Também ele ameaça a população com a Guarda Nacional. Já levou como troco uma carta dos comandantes militares do país: servem à Constituição. E os cidadãos têm direito de se manifestar.
Sim, Bolsonaro está querendo um pretexto para largar o braço nos seus adversários.
Nem adianta fazer ironia com a sua concepção de democracia. Ele não é um democrata.
Renovo a recomendação para que os manifestantes fiquem atentos aos agentes provocadores. Qualquer um que escolher o caminho da violência estará fazendo o jogo da fascistada.
E muita atenção, também, ao comportamento dos policiais. Tudo tem de ser documentado.
O bolsonarismo está fazendo proselitismo junto às Polícias Militares, como se os PMs contassem com um presidente batuta e que zela por seus interesses.
Que as PMs cumpram a regra do jogo e não caiam na conversa de demagogos, não é? Até porque o congelamento de salários da categoria não é obra nem dos governadores nem dos adversários do presidente.
É obra de Bolsonaro.
Bolsonaro dá até a vigilância da Saúde ao centrão - JOSIAS DE SOUZA
UOL 05/06
Desde que Valdemar Costa Neto, dono do PL (Partido Liberal) passou pelo presídio da Papuda como condenado do mensalão, criou-se para os presidentes que negociam cargos com partidos um dilema hamletiano: barrar Valdemar ou barrar Valdemar?, eis a questão. Jair Bolsonaro optou pela única alternativa não disponível.
Capitão da "nova política", Bolsonaro recebeu as demandas do Valdemar, dialogou com Valdemar, barganhou com Valdemar... Eis que, de repente, Bolsonaro concordou em entregar para o Valdemar, em meio a cofres como o de uma diretoria do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e o do Banco do Nordeste, também a Secretaria de Vigilância em Saúde. Esse é o órgão mais importante do Ministério da Saúde no combate ao coronavírus. Até outro dia era chefiado por Wanderson de Oliveira, um técnico de mostruário em epidemiologia.
O nome apresentado pelo ex-presidiário e Valdemar é o de Arnaldo Correia Medeiros, formado em Ciências Farmacêuticas, com mestrado em Bioquímica e Imunologia, e doutorado em Ciências Biológicas. Portanto, também é um técnico. A diferença é que as habilidades técnicas de Wanderson estavam a serviço do Estado. As habilidades do doutor Arnaldo estarão submetidas aos interesses do partido comandado pelo ex-presidiário Valdemar.
Para entender o fenômeno é preciso atrasar o relógio até outubro de 2014. Nessa época, o então juiz Sergio Moro ouviu o primeiro delator da Lava Jato, Paulo Roberto Costa. Ele era diretor de Abastecimento da Petrobras. Entregou o esquema da roubalheira. No final do depoimento, Moro perguntou se o delator queria acrescentar algo. E Paulo Roberto disse ter trabalhado por 35 anos na Petrobras. Durante 27 anos, não teve problemas. Foi a partir de sua nomeação como diretor, por indicação do Partido Progressista, que ele começou a roubar. Os políticos "usam a oração de São Francisco, que é dando que se recebe", disse Paulinho, como Lula o chamava.
Desde que Valdemar Costa Neto, dono do PL (Partido Liberal) passou pelo presídio da Papuda como condenado do mensalão, criou-se para os presidentes que negociam cargos com partidos um dilema hamletiano: barrar Valdemar ou barrar Valdemar?, eis a questão. Jair Bolsonaro optou pela única alternativa não disponível.
Capitão da "nova política", Bolsonaro recebeu as demandas do Valdemar, dialogou com Valdemar, barganhou com Valdemar... Eis que, de repente, Bolsonaro concordou em entregar para o Valdemar, em meio a cofres como o de uma diretoria do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e o do Banco do Nordeste, também a Secretaria de Vigilância em Saúde. Esse é o órgão mais importante do Ministério da Saúde no combate ao coronavírus. Até outro dia era chefiado por Wanderson de Oliveira, um técnico de mostruário em epidemiologia.
O nome apresentado pelo ex-presidiário e Valdemar é o de Arnaldo Correia Medeiros, formado em Ciências Farmacêuticas, com mestrado em Bioquímica e Imunologia, e doutorado em Ciências Biológicas. Portanto, também é um técnico. A diferença é que as habilidades técnicas de Wanderson estavam a serviço do Estado. As habilidades do doutor Arnaldo estarão submetidas aos interesses do partido comandado pelo ex-presidiário Valdemar.
Para entender o fenômeno é preciso atrasar o relógio até outubro de 2014. Nessa época, o então juiz Sergio Moro ouviu o primeiro delator da Lava Jato, Paulo Roberto Costa. Ele era diretor de Abastecimento da Petrobras. Entregou o esquema da roubalheira. No final do depoimento, Moro perguntou se o delator queria acrescentar algo. E Paulo Roberto disse ter trabalhado por 35 anos na Petrobras. Durante 27 anos, não teve problemas. Foi a partir de sua nomeação como diretor, por indicação do Partido Progressista, que ele começou a roubar. Os políticos "usam a oração de São Francisco, que é dando que se recebe", disse Paulinho, como Lula o chamava.
Auxílio aos pobres, fazendo contas - MARCOS MENDES
FOLHA DE SP - 06/06
Para haver um amplo programa de transferência de renda, é preciso definir de onde virá o dinheiro
Circulam diversas propostas de ampliação da transferência de renda aos mais pobres. Porém o debate tem colocado o carro na frente dos bois. Cada um apresenta seu programa favorito e exalta os ganhos esperados com redução da pobreza e desigualdade. Na hora de dizer como pagar a conta, é comum que se proponham saídas que não param de pé.
Umas não têm viabilidade política, como acabar com o Benefício de Prestação Continuada, cuja alteração acaba de ser rejeitada pelo Congresso.
Outras prejudicam a recuperação da economia, como aumento excessivo de tributos.
Há sugestões sem viabilidade técnica, como IR sobre informais, impossível de cobrar. E há a tradicional superestimação de valores, por exemplo, esperar que imposto sobre lucros e dividendos arrecade R$ 30 bilhões ou R$ 40 bilhões.
Quando ainda faltam alguns cifrões para fechar a conta, recorre-se, também, ao argumento de que o consumo dos pobres faria a arrecadação decolar, cobrindo os custos.
Vejamos o custo anual aproximado de algumas possibilidades. Dobrar o Bolsa Família custaria R$ 66 bilhões. Dar R$ 400 para 30% das famílias brasileiras mais pobres, R$ 102 bilhões. Pagar R$ 400 para toda criança de 0 a 18 anos sairia por R$ 270 bilhões. Transformar o auxílio emergencial em permanente, R$ 504 bilhões. Uma renda mínima de R$ 300 para todos que não tenham outra renda ou benefício: R$ 528 bilhões.
A delicada situação das contas públicas exige realismo. Se a sociedade quer ter um amplo programa de transferência de renda, precisa definir, antes de tudo, de onde virá o dinheiro e com quanto podemos contar.
A escolha das fontes de recursos deve priorizar a extinção de programas sociais ineficientes e a redução da desigualdade, de modo que o custo deve ser suportado por pessoas de alta renda.
A lista de programas ineficientes é bem conhecida: abono salarial, salário-família, seguro-defeso e Farmácia Popular. Daí viriam R$ 27 bilhões. Não seria fácil extingui-los, pois cada um tem sua clientela. O abono, que representa 73% do total, exige aprovação de PEC.
O fim da desoneração da cesta básica renderia mais R$ 15 bilhões. Já muito se discutiu o nonsense de termos salmão e caviar na cesta básica e o fato de ser um benefício dado igualmente ao rico e ao pobre. Direcionar esse dinheiro só para os pobres seria mais eficiente.
A contribuição de pessoas de alta renda viria da extinção de descontos permitidos no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Ao contrário do senso comum, não é a classe média que paga esse imposto. Os 10% mais ricos são responsáveis por 90% da receita de IRPF.
Os que usam a declaração completa, que dá direito a abatimentos, somados a seus dependentes, representam apenas 13% da população brasileira. A extinção das deduções por dependentes e dos gastos com educação e saúde representaria R$ 28 bilhões.
Há, também, um desconto no IRPF para pessoas maiores de 65 anos e uma isenção total para a aposentadoria de quem tem ou teve doenças graves. Isso custa R$ 25 bilhões.
Esses dois benefícios ficam restritos a pessoas que estão entre os 29 milhões de brasileiros de maior renda, que declaram IRPF. Um pobre, com a mesma idade ou a mesma doença, nada recebe.
Um congelamento da folha de pagamentos, por um ano, sem posterior reajuste para recuperação do valor real dos salários, geraria mais R$ 14 bilhões.
Somando os valores acima, e acrescendo o que já é gasto com o Bolsa Família (R$ 33 bilhões), chegaríamos a R$ 142 bilhões ao ano. É pouco para programas ambiciosos. Não paga três meses de auxílio emergencial. Mas dá para fazer muita coisa.
Se a sociedade quer colocar tudo em transferência de renda, deve estar ciente de que não haverá de onde tirar para outros gastos importantes, como saúde e saneamento.
Para gastar mais que isso, só elevando imposto ou redobrando esforço para cortar outros gastos ou benefícios tributários. O essencial é não criar programas que não se possa pagar.
Marcos Mendes
Pesquisador associado do Insper, é autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'
Para haver um amplo programa de transferência de renda, é preciso definir de onde virá o dinheiro
Circulam diversas propostas de ampliação da transferência de renda aos mais pobres. Porém o debate tem colocado o carro na frente dos bois. Cada um apresenta seu programa favorito e exalta os ganhos esperados com redução da pobreza e desigualdade. Na hora de dizer como pagar a conta, é comum que se proponham saídas que não param de pé.
Umas não têm viabilidade política, como acabar com o Benefício de Prestação Continuada, cuja alteração acaba de ser rejeitada pelo Congresso.
Outras prejudicam a recuperação da economia, como aumento excessivo de tributos.
Há sugestões sem viabilidade técnica, como IR sobre informais, impossível de cobrar. E há a tradicional superestimação de valores, por exemplo, esperar que imposto sobre lucros e dividendos arrecade R$ 30 bilhões ou R$ 40 bilhões.
Quando ainda faltam alguns cifrões para fechar a conta, recorre-se, também, ao argumento de que o consumo dos pobres faria a arrecadação decolar, cobrindo os custos.
Vejamos o custo anual aproximado de algumas possibilidades. Dobrar o Bolsa Família custaria R$ 66 bilhões. Dar R$ 400 para 30% das famílias brasileiras mais pobres, R$ 102 bilhões. Pagar R$ 400 para toda criança de 0 a 18 anos sairia por R$ 270 bilhões. Transformar o auxílio emergencial em permanente, R$ 504 bilhões. Uma renda mínima de R$ 300 para todos que não tenham outra renda ou benefício: R$ 528 bilhões.
A delicada situação das contas públicas exige realismo. Se a sociedade quer ter um amplo programa de transferência de renda, precisa definir, antes de tudo, de onde virá o dinheiro e com quanto podemos contar.
A escolha das fontes de recursos deve priorizar a extinção de programas sociais ineficientes e a redução da desigualdade, de modo que o custo deve ser suportado por pessoas de alta renda.
A lista de programas ineficientes é bem conhecida: abono salarial, salário-família, seguro-defeso e Farmácia Popular. Daí viriam R$ 27 bilhões. Não seria fácil extingui-los, pois cada um tem sua clientela. O abono, que representa 73% do total, exige aprovação de PEC.
O fim da desoneração da cesta básica renderia mais R$ 15 bilhões. Já muito se discutiu o nonsense de termos salmão e caviar na cesta básica e o fato de ser um benefício dado igualmente ao rico e ao pobre. Direcionar esse dinheiro só para os pobres seria mais eficiente.
A contribuição de pessoas de alta renda viria da extinção de descontos permitidos no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Ao contrário do senso comum, não é a classe média que paga esse imposto. Os 10% mais ricos são responsáveis por 90% da receita de IRPF.
Os que usam a declaração completa, que dá direito a abatimentos, somados a seus dependentes, representam apenas 13% da população brasileira. A extinção das deduções por dependentes e dos gastos com educação e saúde representaria R$ 28 bilhões.
Há, também, um desconto no IRPF para pessoas maiores de 65 anos e uma isenção total para a aposentadoria de quem tem ou teve doenças graves. Isso custa R$ 25 bilhões.
Esses dois benefícios ficam restritos a pessoas que estão entre os 29 milhões de brasileiros de maior renda, que declaram IRPF. Um pobre, com a mesma idade ou a mesma doença, nada recebe.
Um congelamento da folha de pagamentos, por um ano, sem posterior reajuste para recuperação do valor real dos salários, geraria mais R$ 14 bilhões.
Somando os valores acima, e acrescendo o que já é gasto com o Bolsa Família (R$ 33 bilhões), chegaríamos a R$ 142 bilhões ao ano. É pouco para programas ambiciosos. Não paga três meses de auxílio emergencial. Mas dá para fazer muita coisa.
Se a sociedade quer colocar tudo em transferência de renda, deve estar ciente de que não haverá de onde tirar para outros gastos importantes, como saúde e saneamento.
Para gastar mais que isso, só elevando imposto ou redobrando esforço para cortar outros gastos ou benefícios tributários. O essencial é não criar programas que não se possa pagar.
Marcos Mendes
Pesquisador associado do Insper, é autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'
O problema é outro (e pior) - EUGÊNIO BUCCI
Folha de S. Paulo - 06/06
Tal vigilância prévia é incompatível com a natureza das redes
Na sanha legiferante de sapecar uma lei que opere o milagre de varrer as fake news das terras brasileiras, os (as) parlamentares podem agravar a doença da desinformação que já está inoculada na democracia. No furor legifobético, embarcam em ideias tóxicas como se fossem soluções mágicas. Na pressa legifuribunda, sucumbem à tentação de exigir das plataformas sociais, como o Facebook, que passem a exercer sobre os conteúdos de suas páginas um controle estrito, como se essas plataformas fossem veículos jornalísticos.
Querem que as empresas armazenem o RG e o CPF de cada usuário, além do endereço certinho, para entregar às autoridades quando elas requisitassem. Querem que as empresas saibam, entre os bilhões de postagens diárias, quais carregam discursos interessados ou maliciosos e quais são meramente informativos. Querem que elas tracem a linha divisória entre a verdade e a mentira. Simples assim. A legifrenia se acha mais poderosa que Deus e produz mais maldades que o diabo.
É lógico que esse negócio vai dar errado. Pedir às plataformas que filtrem textos, áudios e imagens não apenas é algo que não se pode pretender, como é algo que não se deve impor. No mais, é algo que não vai adiantar.
Expliquemos. Não se pode pretender uma coisa dessas porque tal grau de vigilância prévia é incompatível com a natureza das redes. É mais ou menos como se um delegado de polícia quisesse, durante uma final de campeonato de futebol, no meio de uma torcida inflamada de dezenas de milhares de fanáticos batendo bumbo e pulando nas arquibancadas, gravar imediatamente o que grita cada torcedor, em cada segundo. A não ser que vivamos num pesadelo distópico, é inviável.
Se fosse viável, uma coisa dessas não deveria ser exigida. Se fosse exigida, não deveria ser cumprida. A violação prévia da privacidade chegaria a um grau que nem o cybergoverno chinês ousou profanar. E, ainda por cima, não resolveria nosso problema de desinformação. No dia seguinte, os gabinetes ilegais do ódio —que fabricam e distribuem fake news caluniosas financiados por dinheiros escusos— migrariam para provedores fora do controle das jurisdições brasileiras. O contrabando das notícias fraudulentas ficaria pior. A cloaca do submundo da internet engoliria o que ainda não engoliu.
Se o Congresso quer proteger a nação contra mentiras industrializadas, deve criar programas públicos para fomentar, estimular e financiar a imprensa livre. Só mais informação pode vencer a desinformação. No mais, não custa avisar: em países autoritários, como Hungria e Filipinas, leis criadas a pretexto de combater fake news são agora usadas para intimidar jornalistas.
Atribuindo tamanho poder de controle aos conglomerados privados, que são monopolistas da internet no mercado global, os legisladores vão hipertrofiar o poder dos facebooks da vida (e da morte). Se fizerem isso, criarão o totalitarismo privatizado.
Deveriam fazer o oposto disso: quebrar o monopólio desses grandes conglomerados, como defende a senadora americana Elizabeth Warren. A indústria da desinformação é apenas um parasita clandestino dentro dos conglomerados que monopolizaram as comunicações digitais. Os conglomerados intocáveis são o pior problema. As fake news são o subproblema. Salvar a democracia exige de nós combater o parasita (o que se faz com informação de qualidade) e os conglomerados (com regulação). Só assim a verdade dos fatos triunfará sobre a mentira do preconceito.
Antes de correr com legifilias megalôs, pensemos melhor.
Eugênio Bucci, jornalista, professor da ECA-USP e autor de 'Existe Democracia sem Verdade Factual?' (ed. Estação das Letras e Cores)
Tal vigilância prévia é incompatível com a natureza das redes
Na sanha legiferante de sapecar uma lei que opere o milagre de varrer as fake news das terras brasileiras, os (as) parlamentares podem agravar a doença da desinformação que já está inoculada na democracia. No furor legifobético, embarcam em ideias tóxicas como se fossem soluções mágicas. Na pressa legifuribunda, sucumbem à tentação de exigir das plataformas sociais, como o Facebook, que passem a exercer sobre os conteúdos de suas páginas um controle estrito, como se essas plataformas fossem veículos jornalísticos.
Querem que as empresas armazenem o RG e o CPF de cada usuário, além do endereço certinho, para entregar às autoridades quando elas requisitassem. Querem que as empresas saibam, entre os bilhões de postagens diárias, quais carregam discursos interessados ou maliciosos e quais são meramente informativos. Querem que elas tracem a linha divisória entre a verdade e a mentira. Simples assim. A legifrenia se acha mais poderosa que Deus e produz mais maldades que o diabo.
É lógico que esse negócio vai dar errado. Pedir às plataformas que filtrem textos, áudios e imagens não apenas é algo que não se pode pretender, como é algo que não se deve impor. No mais, é algo que não vai adiantar.
Expliquemos. Não se pode pretender uma coisa dessas porque tal grau de vigilância prévia é incompatível com a natureza das redes. É mais ou menos como se um delegado de polícia quisesse, durante uma final de campeonato de futebol, no meio de uma torcida inflamada de dezenas de milhares de fanáticos batendo bumbo e pulando nas arquibancadas, gravar imediatamente o que grita cada torcedor, em cada segundo. A não ser que vivamos num pesadelo distópico, é inviável.
Se fosse viável, uma coisa dessas não deveria ser exigida. Se fosse exigida, não deveria ser cumprida. A violação prévia da privacidade chegaria a um grau que nem o cybergoverno chinês ousou profanar. E, ainda por cima, não resolveria nosso problema de desinformação. No dia seguinte, os gabinetes ilegais do ódio —que fabricam e distribuem fake news caluniosas financiados por dinheiros escusos— migrariam para provedores fora do controle das jurisdições brasileiras. O contrabando das notícias fraudulentas ficaria pior. A cloaca do submundo da internet engoliria o que ainda não engoliu.
Se o Congresso quer proteger a nação contra mentiras industrializadas, deve criar programas públicos para fomentar, estimular e financiar a imprensa livre. Só mais informação pode vencer a desinformação. No mais, não custa avisar: em países autoritários, como Hungria e Filipinas, leis criadas a pretexto de combater fake news são agora usadas para intimidar jornalistas.
Atribuindo tamanho poder de controle aos conglomerados privados, que são monopolistas da internet no mercado global, os legisladores vão hipertrofiar o poder dos facebooks da vida (e da morte). Se fizerem isso, criarão o totalitarismo privatizado.
Deveriam fazer o oposto disso: quebrar o monopólio desses grandes conglomerados, como defende a senadora americana Elizabeth Warren. A indústria da desinformação é apenas um parasita clandestino dentro dos conglomerados que monopolizaram as comunicações digitais. Os conglomerados intocáveis são o pior problema. As fake news são o subproblema. Salvar a democracia exige de nós combater o parasita (o que se faz com informação de qualidade) e os conglomerados (com regulação). Só assim a verdade dos fatos triunfará sobre a mentira do preconceito.
Antes de correr com legifilias megalôs, pensemos melhor.
Eugênio Bucci, jornalista, professor da ECA-USP e autor de 'Existe Democracia sem Verdade Factual?' (ed. Estação das Letras e Cores)
Só o ódio não é fake - SÉRGIO AUGUSTO
O Estado de S.Paulo - 06/06
Livro reconstitui a evolução da ideia fixa de que comunistas planejam dominar o Brasil
A editora Todavia acaba de entrar em alto estilo no mercado de livros eletrônicos, com uma coleção de ensaios meditados e produzidos durante a pandemia por intelectuais do calibre da economista Laura Carvalho e dos cientistas políticos Marcos Nobre e Conrado Hubner. São e-books com, em média, 100 páginas (ou telas), todos fulcrados no inacreditável governo Bolsonaro e à venda em plataformas como Amazon e Apple. O primeiro da série, Ponto-Final, de Nobre, está na rede desde o último dia 29.
No fim deste mês, a editora Caminhos lança Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas do Brasil, de João Cezar Castro Rocha, em formato tradicional. Castro Rocha é professor de literatura comparada da Unerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e um obstinado estudioso do iracundo obscurantismo bolsonarista desde quando todo mundo só tinha olhos para a Lava Jato e a agenda econômica do Posto Ipiranga.
Os dois livros, inteligentes, bem argumentados e sem ressaibo acadêmico, nos ajudam a compreender com consistência e sutileza o pesadelo que passamos a viver depois da eleição do mais ignorante, grosseiro e nefasto presidente da história da República. São duas análises complementares, sem ordem preferencial de leitura, embora por enquanto apenas Ponto-Final, por sorte o de maior amplitude, esteja disponível.
Hubner trata da guerra de Bolsonaro contra a democracia em suas várias instâncias, o que inclui, evidentemente, sua guerra contra a cultura. Ainda durante as eleições de 2018, Hubner rotulou o futuro presidente de “o candidato do colapso”, labéu paulatinamente justificado nos primeiros 14 meses de seu mandato. A pandemia pode apressar a derrocada.
O capitão não governa, só sabe hostilizar, ameaçar, agredir, cortar verbas, destruir. “Ele transformou a devastação em estilo de governo”, diz Hubner. Em seu governo, só o ódio não é fake. Cercado de ministros civis e militares de inauditas incompetência e sabujice, ele não preside, ele comanda uma guerra. Civil. Prometida reiteradas vezes. E é por isso que se empenha em armar a população, como se dela, armada, precisasse para se proteger dos 70% que não o apoiam. Mas as milícias precisam renovar seu arsenal, certo?
Por acreditar que “o xingamento despolitiza”, não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo e nos desobriga de pensar, Hubner é contra tratar Bolsonaro como burro e demente. Desobrigar de pensar é, a seu ver, um dos grandes objetivos do projeto autoritário do capitão. Para ele, a disputa política segue uma lógica belicista e a cultura de morte que a acompanha.
“É uma política de morte que considera conversa fiada a ideia de que a disputa política se faz sobre um terreno comum compartilhado e compartilhável”, acrescenta Hubner. Por inviabilizar a convivência democrática, só a necropolítica serve ao objetivo principal do presidente, que sempre foi destruir a democracia e, consequentemente, impor uma ditadura.
Ponto-Final, que não deveria ter esse hífen, é uma das expressões prediletas de Bolsonaro, principalmente ao lidar com a imprensa, expediente típico de quem exige ter a última palavra e impor o silêncio numa discussão. Coincidência ou não, ganhou esse nome a lei que em 1986 paralisou os processos contra agentes da ditadura militar argentina, mas acabou declarada inconstitucional em 2005, levando à prisão diversos de seus verdugos. Hubner alerta: “É uma expressão traiçoeira, volta-se sempre contra quem faz uso dela”.
Como é sabido e lamentado, não impusemos sequer um ponto e vírgula à ditadura de 64, o que por certo viabilizou a ascensão, para não falar da mera existência do bolsonarismo e seu culto ao torturador Ustra e dos zumbis da linha dura frotista que presentemente vagam pelo Planalto.
Em suas crônicas do Brasil intoxicado pela retórica do ódio, o prof. Castro Rocha passa pela blitzkrieg orientada em escala mundial por Steve Bannon, o Dr. Mabuse das fake news, para logo chegar à nossa jabuticaba digital, com seus influenciadores de aluguel e seu vasto exército de robôs, ora investigados pela PF e sitiados por uma CPMI.
No DNA do “gabinete do ódio” misturam-se a velha Doutrina de Segurança Nacional e suas paranoias sobre “inimigo interno”, o discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 64 fermentado no projeto Orvil (o anagramático Livro Secreto do Exército com que o general Leônidas Pires Gonçalves tentou em vão abafar e desautorizar os documentos e relatos irrefutáveis sobre as arbitrariedades, torturas e desaparecimentos de corpos na ditadura, denunciados no livro Brasil: Nunca Mais) e as alucinações pornofascistas daquele astrólogo da Virginia, o Svengali ideológico de várias Trilbis que (de)compõem o governo Bolsonaro.
O prof. Castro Rocha reconstitui, nas necessárias minúcias, a evolução dessa lavagem cerebral marcada pelo ressentimento e a ideia fixa de que comunistas planejam dominar e destruir o Brasil infiltrados nas universidades, na mídia, nas artes – em toda cultura, enfim. Essa ladainha expiatória, cediça e em descrédito desde a Guerra Fria, já lastreou um bocado de ditaduras de extrema direita, inclusive aqui, e continua sendo o cantochão dos bolsonaristas, com eco na cúpula do governo, que enquanto alardeia não pretender um golpe (ou autogolpe), esmera-se em instrumentalizar todas as instituições do Estado a seu favor.
A função precípua da guerra cultural bolsonarista poderia ser, mas não é, a imposição dos valores de sua grei, que inexistem ou são anulados por falas e atos de seu líder, cujo único desígnio, vale insistir, é a destruição sistemática das instituições. Para o professor, “chegou a hora de dizermos com todas as letras que é um governo de extrema direita, apenas interessado num projeto autoritário de poder cuja finalidade última é eliminar todo aquele que pense de forma diversa”.
Livro reconstitui a evolução da ideia fixa de que comunistas planejam dominar o Brasil
A editora Todavia acaba de entrar em alto estilo no mercado de livros eletrônicos, com uma coleção de ensaios meditados e produzidos durante a pandemia por intelectuais do calibre da economista Laura Carvalho e dos cientistas políticos Marcos Nobre e Conrado Hubner. São e-books com, em média, 100 páginas (ou telas), todos fulcrados no inacreditável governo Bolsonaro e à venda em plataformas como Amazon e Apple. O primeiro da série, Ponto-Final, de Nobre, está na rede desde o último dia 29.
No fim deste mês, a editora Caminhos lança Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas do Brasil, de João Cezar Castro Rocha, em formato tradicional. Castro Rocha é professor de literatura comparada da Unerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e um obstinado estudioso do iracundo obscurantismo bolsonarista desde quando todo mundo só tinha olhos para a Lava Jato e a agenda econômica do Posto Ipiranga.
Os dois livros, inteligentes, bem argumentados e sem ressaibo acadêmico, nos ajudam a compreender com consistência e sutileza o pesadelo que passamos a viver depois da eleição do mais ignorante, grosseiro e nefasto presidente da história da República. São duas análises complementares, sem ordem preferencial de leitura, embora por enquanto apenas Ponto-Final, por sorte o de maior amplitude, esteja disponível.
Hubner trata da guerra de Bolsonaro contra a democracia em suas várias instâncias, o que inclui, evidentemente, sua guerra contra a cultura. Ainda durante as eleições de 2018, Hubner rotulou o futuro presidente de “o candidato do colapso”, labéu paulatinamente justificado nos primeiros 14 meses de seu mandato. A pandemia pode apressar a derrocada.
O capitão não governa, só sabe hostilizar, ameaçar, agredir, cortar verbas, destruir. “Ele transformou a devastação em estilo de governo”, diz Hubner. Em seu governo, só o ódio não é fake. Cercado de ministros civis e militares de inauditas incompetência e sabujice, ele não preside, ele comanda uma guerra. Civil. Prometida reiteradas vezes. E é por isso que se empenha em armar a população, como se dela, armada, precisasse para se proteger dos 70% que não o apoiam. Mas as milícias precisam renovar seu arsenal, certo?
Por acreditar que “o xingamento despolitiza”, não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo e nos desobriga de pensar, Hubner é contra tratar Bolsonaro como burro e demente. Desobrigar de pensar é, a seu ver, um dos grandes objetivos do projeto autoritário do capitão. Para ele, a disputa política segue uma lógica belicista e a cultura de morte que a acompanha.
“É uma política de morte que considera conversa fiada a ideia de que a disputa política se faz sobre um terreno comum compartilhado e compartilhável”, acrescenta Hubner. Por inviabilizar a convivência democrática, só a necropolítica serve ao objetivo principal do presidente, que sempre foi destruir a democracia e, consequentemente, impor uma ditadura.
Ponto-Final, que não deveria ter esse hífen, é uma das expressões prediletas de Bolsonaro, principalmente ao lidar com a imprensa, expediente típico de quem exige ter a última palavra e impor o silêncio numa discussão. Coincidência ou não, ganhou esse nome a lei que em 1986 paralisou os processos contra agentes da ditadura militar argentina, mas acabou declarada inconstitucional em 2005, levando à prisão diversos de seus verdugos. Hubner alerta: “É uma expressão traiçoeira, volta-se sempre contra quem faz uso dela”.
Como é sabido e lamentado, não impusemos sequer um ponto e vírgula à ditadura de 64, o que por certo viabilizou a ascensão, para não falar da mera existência do bolsonarismo e seu culto ao torturador Ustra e dos zumbis da linha dura frotista que presentemente vagam pelo Planalto.
Em suas crônicas do Brasil intoxicado pela retórica do ódio, o prof. Castro Rocha passa pela blitzkrieg orientada em escala mundial por Steve Bannon, o Dr. Mabuse das fake news, para logo chegar à nossa jabuticaba digital, com seus influenciadores de aluguel e seu vasto exército de robôs, ora investigados pela PF e sitiados por uma CPMI.
No DNA do “gabinete do ódio” misturam-se a velha Doutrina de Segurança Nacional e suas paranoias sobre “inimigo interno”, o discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 64 fermentado no projeto Orvil (o anagramático Livro Secreto do Exército com que o general Leônidas Pires Gonçalves tentou em vão abafar e desautorizar os documentos e relatos irrefutáveis sobre as arbitrariedades, torturas e desaparecimentos de corpos na ditadura, denunciados no livro Brasil: Nunca Mais) e as alucinações pornofascistas daquele astrólogo da Virginia, o Svengali ideológico de várias Trilbis que (de)compõem o governo Bolsonaro.
O prof. Castro Rocha reconstitui, nas necessárias minúcias, a evolução dessa lavagem cerebral marcada pelo ressentimento e a ideia fixa de que comunistas planejam dominar e destruir o Brasil infiltrados nas universidades, na mídia, nas artes – em toda cultura, enfim. Essa ladainha expiatória, cediça e em descrédito desde a Guerra Fria, já lastreou um bocado de ditaduras de extrema direita, inclusive aqui, e continua sendo o cantochão dos bolsonaristas, com eco na cúpula do governo, que enquanto alardeia não pretender um golpe (ou autogolpe), esmera-se em instrumentalizar todas as instituições do Estado a seu favor.
A função precípua da guerra cultural bolsonarista poderia ser, mas não é, a imposição dos valores de sua grei, que inexistem ou são anulados por falas e atos de seu líder, cujo único desígnio, vale insistir, é a destruição sistemática das instituições. Para o professor, “chegou a hora de dizermos com todas as letras que é um governo de extrema direita, apenas interessado num projeto autoritário de poder cuja finalidade última é eliminar todo aquele que pense de forma diversa”.
Mercado das ideias - EURÍPEDES ALCÂNTARA
O GLOBO - 06/06
Todo governante tentado pelo autoritarismo tem como primeiro impulso controlar a informação
Hugo Black foi o mais ferrenho defensor da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, a que veda ao Congresso fazer lei instituindo uma religião oficial ou que diminua a liberdade de expressão e de imprensa. Black entendia que os autores da emenda não deixaram espaço para outra interpretação do texto: “Nenhuma lei significa nenhuma lei”. Durante seus 34 anos como ministro da Suprema Corte, em Washington, Black sustentou que qualquer controle de opiniões e da imprensa teria de ser deixado ao “livre mercado das ideias”. Esse princípio foi violado algumas vezes, em épocas de guerra, com a edição temporária de leis infraconstitucionais visando a evitar a sedição e atos de espionagem. Mas a Corte Suprema rejeitou todas as tentativas de mudar o texto da Primeira Emenda.
Black estava certo. Mas estaria certo agora? Ele formou sua opinião em um tempo em que as ofensas e ataques sem base, as fake news, eram espalhadas por meio de panfletos e jornais artesanais impressos em gráficas clandestinas. Será que a força do “livre mercado das ideias” seria capaz hoje de controlar as poderosas correntes digitais de fatos distorcidos e opiniões incendiárias? Acho que sim, pois se couber ao Estado censurar as redes sociais, será um passo para se meter também no conteúdo produzido pelo jornalismo profissional.
Como espero demonstrar, a ideia de Hugo Black parece ser a única solução. É aterradora a ideia de deixar o controle da informação nas mãos de um organismo estatal. Seria um desastre permitir que um punhado de burocratas decida o que é ou não é fake news ou dar a palavra final sobre o que pode chegar aos olhos do público e o que deve ser escondido. Isso não é papel do Estado democrático.
Todo governante tentado pelo autoritarismo tem como primeiro impulso controlar a informação. Na extinta União Soviética a imprensa era monopólio estatal. Em Cuba e na Coreia do Norte é a mesma coisa. A China, com sua devoção biface ao comunismo e ao capitalismo, desenvolveu um sistema de controle total da informação, fazendo exceção às universidades, onde professores e alunos podem acessar livremente a internet — mesmo que, acredito, sob vigilância estatal.
A Grã-Bretanha talvez seja a única sociedade aberta que tentou colocar a corrente de informações sob a tutela do Estado. Isso ocorreu em 2011 depois da revelação de crimes de escuta clandestina cometidos por jornalistas do “News of the World”, que deixou de circular como resultado do escândalo. Os jornalistas foram punidos pelas leis existentes. O governo delegou ao juiz Brian Leveson a criação de uma comissão de cujo relatório final constava a recomendação de que jornais e sites noticiosos fossem colocados sob “supervisão do Parlamento”. A recomendação durou pouco. A alternativa para evitar submeter a informação ao Estado foi criar um “clube” com compromisso de qualidade e adesão voluntária. Caberia a um “Painel de Verificação”, sem ligação formal com o governo, “apenas” garantir que jornais e sites aderentes fossem “honestos, precisos e transparentes”.
O problema dos britânicos parecia resolvido até que alguém quis saber quem nomearia os membros do Painel de Verificação. Ora, o “Conselho do Painel de Verificação”. E quem escolheria os integrantes do Conselho? O “Comitê de Indicações”. Sim, mas quem indica os nomes para esse comitê? O “Comissário Real de Indicações.” E quem escolhe o comissário? A rainha Elizabeth II, soberana por direito divino. Entregar a Deus a responsabilidade pela qualidade do jornalismo do reino não pareceu uma ideia boa, e a questão permanece sem solução.
Por isso, acredito que a saída menos traumática seja mesmo deixar ao “livre mercado das ideias”, ou seja, aos próprios consumidores de informação, o poder de avaliar o que lhes chega aos olhos e ouvidos. Uma primeira experiência nesse sentido foi usada pela revista “Time” em suas transmissões ao vivo das manifestações de rua contra a violência policial nos Estados Unidos. Enquanto a câmera captava as cenas, os comentários subiam na tela. De vez em quando um comentário mais incisivo era congelado e apareciam três opções: 1) Abusivo; 2) Adequado; 3) Não sei. Passado alguns minutos, vinha, por exemplo, a informação: “A maioria dos usuários considerou esse comentário abusivo”. É um começo.
Todo governante tentado pelo autoritarismo tem como primeiro impulso controlar a informação
Hugo Black foi o mais ferrenho defensor da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, a que veda ao Congresso fazer lei instituindo uma religião oficial ou que diminua a liberdade de expressão e de imprensa. Black entendia que os autores da emenda não deixaram espaço para outra interpretação do texto: “Nenhuma lei significa nenhuma lei”. Durante seus 34 anos como ministro da Suprema Corte, em Washington, Black sustentou que qualquer controle de opiniões e da imprensa teria de ser deixado ao “livre mercado das ideias”. Esse princípio foi violado algumas vezes, em épocas de guerra, com a edição temporária de leis infraconstitucionais visando a evitar a sedição e atos de espionagem. Mas a Corte Suprema rejeitou todas as tentativas de mudar o texto da Primeira Emenda.
Black estava certo. Mas estaria certo agora? Ele formou sua opinião em um tempo em que as ofensas e ataques sem base, as fake news, eram espalhadas por meio de panfletos e jornais artesanais impressos em gráficas clandestinas. Será que a força do “livre mercado das ideias” seria capaz hoje de controlar as poderosas correntes digitais de fatos distorcidos e opiniões incendiárias? Acho que sim, pois se couber ao Estado censurar as redes sociais, será um passo para se meter também no conteúdo produzido pelo jornalismo profissional.
Como espero demonstrar, a ideia de Hugo Black parece ser a única solução. É aterradora a ideia de deixar o controle da informação nas mãos de um organismo estatal. Seria um desastre permitir que um punhado de burocratas decida o que é ou não é fake news ou dar a palavra final sobre o que pode chegar aos olhos do público e o que deve ser escondido. Isso não é papel do Estado democrático.
Todo governante tentado pelo autoritarismo tem como primeiro impulso controlar a informação. Na extinta União Soviética a imprensa era monopólio estatal. Em Cuba e na Coreia do Norte é a mesma coisa. A China, com sua devoção biface ao comunismo e ao capitalismo, desenvolveu um sistema de controle total da informação, fazendo exceção às universidades, onde professores e alunos podem acessar livremente a internet — mesmo que, acredito, sob vigilância estatal.
A Grã-Bretanha talvez seja a única sociedade aberta que tentou colocar a corrente de informações sob a tutela do Estado. Isso ocorreu em 2011 depois da revelação de crimes de escuta clandestina cometidos por jornalistas do “News of the World”, que deixou de circular como resultado do escândalo. Os jornalistas foram punidos pelas leis existentes. O governo delegou ao juiz Brian Leveson a criação de uma comissão de cujo relatório final constava a recomendação de que jornais e sites noticiosos fossem colocados sob “supervisão do Parlamento”. A recomendação durou pouco. A alternativa para evitar submeter a informação ao Estado foi criar um “clube” com compromisso de qualidade e adesão voluntária. Caberia a um “Painel de Verificação”, sem ligação formal com o governo, “apenas” garantir que jornais e sites aderentes fossem “honestos, precisos e transparentes”.
O problema dos britânicos parecia resolvido até que alguém quis saber quem nomearia os membros do Painel de Verificação. Ora, o “Conselho do Painel de Verificação”. E quem escolheria os integrantes do Conselho? O “Comitê de Indicações”. Sim, mas quem indica os nomes para esse comitê? O “Comissário Real de Indicações.” E quem escolhe o comissário? A rainha Elizabeth II, soberana por direito divino. Entregar a Deus a responsabilidade pela qualidade do jornalismo do reino não pareceu uma ideia boa, e a questão permanece sem solução.
Por isso, acredito que a saída menos traumática seja mesmo deixar ao “livre mercado das ideias”, ou seja, aos próprios consumidores de informação, o poder de avaliar o que lhes chega aos olhos e ouvidos. Uma primeira experiência nesse sentido foi usada pela revista “Time” em suas transmissões ao vivo das manifestações de rua contra a violência policial nos Estados Unidos. Enquanto a câmera captava as cenas, os comentários subiam na tela. De vez em quando um comentário mais incisivo era congelado e apareciam três opções: 1) Abusivo; 2) Adequado; 3) Não sei. Passado alguns minutos, vinha, por exemplo, a informação: “A maioria dos usuários considerou esse comentário abusivo”. É um começo.
Velha política - ADRIANA FERNANDES
O Estado de S. Paulo - 06/06
O futuro de Guedes está atrelado ao apoio do Centrão nas próximas votações
A queda relâmpago de Alexandre Borges Cabral, o indicado pelo Centrão para a presidência do Banco do Nordeste (BNB), mostrou falhas e atropelos no ritual de checagem dos nomes apresentados pelas lideranças dos novos aliados do presidente Jair Bolsonaro no Congresso. O “sistema de informação” do presidente não funcionou bem.
Não foi uma boa estreia para a “nova-velha” política de coalizão que Bolsonaro busca com o casamento com as lideranças do Centrão que, aliás, já deu resultados em votações importantes para o governo nas últimas semanas.
Cabral caiu menos de 24 horas após sua posse, no rastro da revelação pelo Estadão de que era alvo de uma apuração conduzida pelo Tribunal de Contas da União (TCU) sobre suspeitas de irregularidades em contratações feitas pela Casa da Moeda durante sua gestão à frente da estatal, em 2018. O prejuízo é estimado em R$ 2,2 bilhões.
A indicação acabou não passando pelas checagens que costumam ser feitas pela Secretaria de Governo do Palácio do Planalto, que podem vetar a indicação. Com isso, não houve o alerta interno das investigações em curso contra Cabral no TCU, o que gerou a decisão de sua exoneração.
A queda foi rápida; porém, nada tem a ver com algum tipo de resistência do ministro da Economia, Paulo Guedes, em ceder cargos do seu vasto ministério, com cinco bancos públicos e outras tantas estatais.
A porteira foi aberta com a presidência do BNB e vai continuar com novas indicações. O loteamento do Centrão avançará em cargos nas estatais e ministérios. Serão muitas indicações nas próximas semanas, já falam abertamente integrantes da área econômica.
É o preço a pagar não só para impedir o impeachment e garantir a governabilidade do presidente Bolsonaro. Trata-se de uma questão de sobrevivência de Guedes no cargo. O seu futuro e da sua equipe estão umbilicalmente atrelados ao apoio do Centrão, que por ora se mostra totalmente alinhado com a ala militar desenvolvimentista do governo.
Pontes de diálogo foram lançadas pelo ministro. A travessia passa pela oferta de cargos e mudanças de políticas. Detalhe: não se ouviu nenhuma reclamação pública de algum líder do Centrão sobre a saída do novo presidente do BNB. Também ninguém se apresentou como padrinho do presidente demitido. Silêncio total.
Com o País quebrado pelo estrago da covid-19, Guedes precisa de votações rápidas para “salvar” a sua política e agilizar a retomada da economia. Com o Centrão em oposição, perde a parada. O ministro já teve um aperitivo ruim na frustrada tentativa de aprovar os seus projetos depois da votação da reforma da Previdência. Nada andou e a retomada da economia entrou cambaleante em 2020 até ser ferida de morte pelo novo coronavírus.
O ministro tem pouco tempo para mostrar os resultados da sua política após a economia entrar numa fase de maior normalidade pós-covid. Os números crescentes de contaminação e mortes mostram que vai demorar mais. Seria impossível aprovar as medidas com uma base de apoio de vinte e poucos parlamentares e um punhado de simpatizantes.
A aprovação da reforma da Previdência foi suada, com uma negociação no varejão que custou caro. Para avançar nas novas pautas, o ministro terá de fazer concessões. Elas já começaram e podem passar, inclusive, pela flexibilização da regra do teto de gastos. É proibido se surpreender com a capacidade política de mudar as narrativas. O retorno da velha para a nova política é a prova desse pragmatismo.
A porteira das suas estatais é só a face mais visível do que está sendo negociado, como também foi o fim do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que tanto prejuízo trará no futuro para a fiscalização da Receita e arrecadação do governo.
Como Guedes comanda um superministério e detém muitos poderes, tem muito a oferecer. O mercado financeiro já viu que a área econômica pode ganhar mais com a nova aliança. A resposta tem sido uma melhora consistente dos indicadores. Não só pelo otimismo vindo de fora do País. Os investidores estão se antecipando aos efeitos positivos que essa aliança com o Centrão pode garantir nas votações. Sem medo do Centrão apelidado de gastador.
Guedes quer preservar BNDES, Caixa e Banco do Brasil do loteamento político. O tempo dirá se vai conseguir.
O futuro de Guedes está atrelado ao apoio do Centrão nas próximas votações
A queda relâmpago de Alexandre Borges Cabral, o indicado pelo Centrão para a presidência do Banco do Nordeste (BNB), mostrou falhas e atropelos no ritual de checagem dos nomes apresentados pelas lideranças dos novos aliados do presidente Jair Bolsonaro no Congresso. O “sistema de informação” do presidente não funcionou bem.
Não foi uma boa estreia para a “nova-velha” política de coalizão que Bolsonaro busca com o casamento com as lideranças do Centrão que, aliás, já deu resultados em votações importantes para o governo nas últimas semanas.
Cabral caiu menos de 24 horas após sua posse, no rastro da revelação pelo Estadão de que era alvo de uma apuração conduzida pelo Tribunal de Contas da União (TCU) sobre suspeitas de irregularidades em contratações feitas pela Casa da Moeda durante sua gestão à frente da estatal, em 2018. O prejuízo é estimado em R$ 2,2 bilhões.
A indicação acabou não passando pelas checagens que costumam ser feitas pela Secretaria de Governo do Palácio do Planalto, que podem vetar a indicação. Com isso, não houve o alerta interno das investigações em curso contra Cabral no TCU, o que gerou a decisão de sua exoneração.
A queda foi rápida; porém, nada tem a ver com algum tipo de resistência do ministro da Economia, Paulo Guedes, em ceder cargos do seu vasto ministério, com cinco bancos públicos e outras tantas estatais.
A porteira foi aberta com a presidência do BNB e vai continuar com novas indicações. O loteamento do Centrão avançará em cargos nas estatais e ministérios. Serão muitas indicações nas próximas semanas, já falam abertamente integrantes da área econômica.
É o preço a pagar não só para impedir o impeachment e garantir a governabilidade do presidente Bolsonaro. Trata-se de uma questão de sobrevivência de Guedes no cargo. O seu futuro e da sua equipe estão umbilicalmente atrelados ao apoio do Centrão, que por ora se mostra totalmente alinhado com a ala militar desenvolvimentista do governo.
Pontes de diálogo foram lançadas pelo ministro. A travessia passa pela oferta de cargos e mudanças de políticas. Detalhe: não se ouviu nenhuma reclamação pública de algum líder do Centrão sobre a saída do novo presidente do BNB. Também ninguém se apresentou como padrinho do presidente demitido. Silêncio total.
Com o País quebrado pelo estrago da covid-19, Guedes precisa de votações rápidas para “salvar” a sua política e agilizar a retomada da economia. Com o Centrão em oposição, perde a parada. O ministro já teve um aperitivo ruim na frustrada tentativa de aprovar os seus projetos depois da votação da reforma da Previdência. Nada andou e a retomada da economia entrou cambaleante em 2020 até ser ferida de morte pelo novo coronavírus.
O ministro tem pouco tempo para mostrar os resultados da sua política após a economia entrar numa fase de maior normalidade pós-covid. Os números crescentes de contaminação e mortes mostram que vai demorar mais. Seria impossível aprovar as medidas com uma base de apoio de vinte e poucos parlamentares e um punhado de simpatizantes.
A aprovação da reforma da Previdência foi suada, com uma negociação no varejão que custou caro. Para avançar nas novas pautas, o ministro terá de fazer concessões. Elas já começaram e podem passar, inclusive, pela flexibilização da regra do teto de gastos. É proibido se surpreender com a capacidade política de mudar as narrativas. O retorno da velha para a nova política é a prova desse pragmatismo.
A porteira das suas estatais é só a face mais visível do que está sendo negociado, como também foi o fim do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que tanto prejuízo trará no futuro para a fiscalização da Receita e arrecadação do governo.
Como Guedes comanda um superministério e detém muitos poderes, tem muito a oferecer. O mercado financeiro já viu que a área econômica pode ganhar mais com a nova aliança. A resposta tem sido uma melhora consistente dos indicadores. Não só pelo otimismo vindo de fora do País. Os investidores estão se antecipando aos efeitos positivos que essa aliança com o Centrão pode garantir nas votações. Sem medo do Centrão apelidado de gastador.
Guedes quer preservar BNDES, Caixa e Banco do Brasil do loteamento político. O tempo dirá se vai conseguir.
Na praia com o tubarão - JOÃO GABRIEL DE LIMA
O Estado de S.Paulo - 06/06
O mundo do conhecimento, tal qual no enredo de ‘Tubarão’, ganhou prestígio na pandemia
Soa a música tenebrosa de duas notas: mi-fá. Mi-fá. Mi-fá-mi-fá. Mi-fá-mi-fá-mi-fá-mi-fá... O sol ilumina as águas, e elas se tingem de sangue.
Quer uma dica de filme para a quarentena? Tubarão, velho clássico de Steven Spielberg (tem no Netflix). Toda vez que o tema de John Williams toca, o espectador se arrepia. É o prefixo do oceano vermelho. O tubarão não aparece, mas os personagens sentem sua presença na carne. Ou melhor, seus dentes.
Na maior parte do filme, o peixe é um inimigo invisível. Como o novo coronavírus.
O paralelo entre a ficção de ontem e a realidade de hoje se justifica. Principalmente quando se revê (tem no YouTube) uma das cenas mais famosas do filme: o diálogo entre Larry Vaughn, prefeito da cidadezinha de Amity, e o cientista Matt Hopper. O mundo da política e o mundo do conhecimento. Não é bem um diálogo – é briga mesmo.
Depois dos primeiros ataques do tubarão, Hopper sugere ao prefeito que feche as praias, para evitar novas vítimas: “Só há dois jeitos de combater o tubarão. Matá-lo ou cortar seu suprimento de alimentos, as pessoas”. Vaughn, em seu paletó com âncoras estilizadas, teme pela fuga dos turistas em plena temporada de verão.
Um outdoor mostra uma banhista pegando jacaré nas praias ensolaradas de Amity. Um gaiato desenhou um grito de pavor em seus lábios, e uma nadadeira de tubarão atrás dela. Vaughn manda prender o autor da intervenção por depredar patrimônio público.
A interação – nem sempre pacífica – entre os mundos da política e do conhecimento ficou evidente em tempos de pandemia. E o mundo do conhecimento, tal qual no enredo de Tubarão, ganhou prestígio.
Um estudo do Shorenstein Center da Universidade Harvard mostrou que a confiança dos americanos em cientistas é maior do que em autoridades federais ou na mídia.
Outra pesquisa, feita no Brasil com usuários de redes sociais pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, apontou um índice alto de compartilhamento de mensagens científicas.
Um terceiro levantamento, feito pela consultoria Idea Big Data, mostrou que o interesse dos brasileiros em ouvir opiniões de especialistas aumentou em 76% em tempos de covid-19.
A conversa entre política e conhecimento não se limita aos momentos em que um vírus espalha mortes pelo planeta. Ela já vem de muito tempo, com o uso crescente de bancos de dados no desenho de políticas públicas. Isso não significa que a política seja uma atividade meramente técnica.
Em tese, os políticos tomam suas decisões baseados na vontade dos cidadãos – para isso são eleitos. Não é possível, no entanto, ignorar os fatos na hora de tomar tais decisões. Quem vai fazer um ajuste fiscal precisa saber o tamanho da dívida.
Quem quer combater a pobreza tem de saber o número de cidadãos vulneráveis e onde eles estão. São as tais “evidências”, palavra da moda na tribo dos acadêmicos.
Esta coluna que começa hoje versará principalmente sobre isso: soluções práticas para problemas concretos, e o debate – baseado em evidências – em torno de tais problemas. Sempre tendo em mente que, nas democracias, tais soluções passam pela política. A boa política.
Em Tubarão, o prefeito Vaughn acaba sozinho e sem votos, tragado pelo oceano vermelho da política. Será este o destino dos governantes que ignoram as evidências em suas decisões?
Mi-fá. Mi-fá. Mi-fá-mi-fá. Mi-fá-mi-fá-mi-fá-mi-fá...
O mundo do conhecimento, tal qual no enredo de ‘Tubarão’, ganhou prestígio na pandemia
Soa a música tenebrosa de duas notas: mi-fá. Mi-fá. Mi-fá-mi-fá. Mi-fá-mi-fá-mi-fá-mi-fá... O sol ilumina as águas, e elas se tingem de sangue.
Quer uma dica de filme para a quarentena? Tubarão, velho clássico de Steven Spielberg (tem no Netflix). Toda vez que o tema de John Williams toca, o espectador se arrepia. É o prefixo do oceano vermelho. O tubarão não aparece, mas os personagens sentem sua presença na carne. Ou melhor, seus dentes.
Na maior parte do filme, o peixe é um inimigo invisível. Como o novo coronavírus.
O paralelo entre a ficção de ontem e a realidade de hoje se justifica. Principalmente quando se revê (tem no YouTube) uma das cenas mais famosas do filme: o diálogo entre Larry Vaughn, prefeito da cidadezinha de Amity, e o cientista Matt Hopper. O mundo da política e o mundo do conhecimento. Não é bem um diálogo – é briga mesmo.
Depois dos primeiros ataques do tubarão, Hopper sugere ao prefeito que feche as praias, para evitar novas vítimas: “Só há dois jeitos de combater o tubarão. Matá-lo ou cortar seu suprimento de alimentos, as pessoas”. Vaughn, em seu paletó com âncoras estilizadas, teme pela fuga dos turistas em plena temporada de verão.
Um outdoor mostra uma banhista pegando jacaré nas praias ensolaradas de Amity. Um gaiato desenhou um grito de pavor em seus lábios, e uma nadadeira de tubarão atrás dela. Vaughn manda prender o autor da intervenção por depredar patrimônio público.
A interação – nem sempre pacífica – entre os mundos da política e do conhecimento ficou evidente em tempos de pandemia. E o mundo do conhecimento, tal qual no enredo de Tubarão, ganhou prestígio.
Um estudo do Shorenstein Center da Universidade Harvard mostrou que a confiança dos americanos em cientistas é maior do que em autoridades federais ou na mídia.
Outra pesquisa, feita no Brasil com usuários de redes sociais pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, apontou um índice alto de compartilhamento de mensagens científicas.
Um terceiro levantamento, feito pela consultoria Idea Big Data, mostrou que o interesse dos brasileiros em ouvir opiniões de especialistas aumentou em 76% em tempos de covid-19.
A conversa entre política e conhecimento não se limita aos momentos em que um vírus espalha mortes pelo planeta. Ela já vem de muito tempo, com o uso crescente de bancos de dados no desenho de políticas públicas. Isso não significa que a política seja uma atividade meramente técnica.
Em tese, os políticos tomam suas decisões baseados na vontade dos cidadãos – para isso são eleitos. Não é possível, no entanto, ignorar os fatos na hora de tomar tais decisões. Quem vai fazer um ajuste fiscal precisa saber o tamanho da dívida.
Quem quer combater a pobreza tem de saber o número de cidadãos vulneráveis e onde eles estão. São as tais “evidências”, palavra da moda na tribo dos acadêmicos.
Esta coluna que começa hoje versará principalmente sobre isso: soluções práticas para problemas concretos, e o debate – baseado em evidências – em torno de tais problemas. Sempre tendo em mente que, nas democracias, tais soluções passam pela política. A boa política.
Em Tubarão, o prefeito Vaughn acaba sozinho e sem votos, tragado pelo oceano vermelho da política. Será este o destino dos governantes que ignoram as evidências em suas decisões?
Mi-fá. Mi-fá. Mi-fá-mi-fá. Mi-fá-mi-fá-mi-fá-mi-fá...
‘Vou chamar o Pires’ - ASCÂNIO SELEME
O Globo - 06/06
Não é a primeira vez que acontece de um presidente acuado ameaçar a nação com a convocação das Forças Armadas
Não é a primeira vez que acontece de um presidente acuado ameaçar a nação com a convocação das Forças Armadas. Jair Bolsonaro é mestre em citar os militares como salvadores da pátria sempre que se encontra em situação difícil, causada normalmente por ele mesmo em razão de declarações estapafúrdias ou gestos politicamente equivocados. O último general-presidente da ditadura iniciada em 1964, João Figueiredo, repetiu inúmeras vezes a frase “Olha que eu vou chamar o Pires”, sempre que um fato o incomodava. O Pires de Figueiredo era o carrancudo Walter Pires, ministro do Exército.
A frase de Figueiredo queria significar uma volta ao passado, à linha-dura. Embora Figueiredo tenha sido o último presidente do regime, a ditadura vivia seus estertores. O presidente tinha ainda poderes excepcionais, como o decreto-lei, uma espécie de Medida Provisória de sinal trocado. O decreto passava a valer no ato da sua publicação e só perdia a validade se o Congresso o derrubasse. A MP cai se o Congresso não a apreciar. Mas o famigerado Ato Institucional número 5 havia sido revogado. E aos poucos o país voltava à normalidade com a Anistia de 1979, a volta dos exilados e a libertação de todos os presos políticos
Nos últimos anos do governo Figueiredo, fora os extraordinários problemas econômicos, o Brasil só queria eleger o próximo presidente e desenhar uma nova Constituição para substituir a Carta escrita pelos militares. O primeiro objetivo foi enterrado com a derrota da emenda Dante de Oliveira, que restabelecia a eleição direta, mas o substituto do último ditador seria o civil Tancredo Neves, adversário da ditadura. E a nova Constituição democrática, que o deputado Ulysses Guimarães batizou de “Constituição Cidadã”, era só uma questão de tempo.
Apesar da ameaça comum de chamar um militar para resolver um problema civil, param por aí as semelhanças entre o governo do general e o do capitão. Bolsonaro é um presidente eleito legitimamente pelo voto popular, enquanto Figueiredo foi escolhido solitariamente pelo seu antecessor, o general Ernesto Geisel, e ungido por um colégio eleitoral formatado para atender as ordens do Palácio do Planalto. Mas isso não torna o primeiro melhor do que o segundo.
A composição dos ministérios dos dois presidente é um bom exemplo da diferença entre eles. Com mais ministros do que hoje, Figueiredo tinha sete militares na Esplanada contra 11 de Bolsonaro. Dos sete ministros fardados de Figueiredo, três ocupavam cargos que eram privativos de oficiais generais, os Ministérios de Exército, Marinha e Aeronáutica (hoje departamentos subordinados ao Ministério da Defesa). O que isso significa? Não muito, mas pelo menos pode-se dizer que o general confiava mais nos civis do que o capitão.
Figueiredo era mal educado e frequentemente falava barbaridades, mas não se pode comparar suas grosserias com as de Bolsonaro. Nunca se ouviu o general mandar um jornalista calar a boca. Também se desconhece reunião ministerial com tantos impropérios quanto aquela famosa do dia 22 de abril. Figueiredo era mais tolerante, talvez porque não tivesse os poderes extraordinários e antidemocráticos de que usufruíram seus antecessores. Bolsonaro é mais intolerante, talvez porque queria ter aqueles poderes para si.
Bolsonaro olha para o seu futuro querendo enxergar o passado. Figueiredo sabia que não tinha futuro.
Mourão precipitado
O vice-presidente Hamilton Mourão anda se precipitando.
Por duas vezes nos últimos 30 dias publicou artigos, digamos, politicamente inconvenientes. Inconvenientes para ele. Mesmo que eventualmente demonstrem um estado de espírito ou um alinhamento ideológico com Bolsonaro, podem ser tratados como equívoco. O texto que publicou quarta-feira no Estadão, carregado nos tons, pinta seu autor com o verde e o amarelo que de uns tempos para cá passaram a ser as cores da intolerância e do golpismo. O artigo de nada serve para Mourão, que é o substituto imediato do presidente. O texto, que não tranquilizou a maioria, serviu somente para atiçar os ânimos já exaltados dos extremistas de direita. Mourão não é do ramo e não sabe fazer política. Bastão pode, general?
Ninguém sabe onde o vice-presidente viu barras de ferro e armas brancas nas manifestações pela democracia de domingo passado, como ele menciona no artigo. O que se viu, isso sim, foi uma manifestante fantasiada com a bandeira dos EUA, da turma que defende o fechamento do Supremo e do Congresso, carregando um bastão de basebol. Bastão pode, general?
Silvinho de farda
O encarregado de distribuir cargos e verbas para os aliados do centrão, o general Luiz Eduardo Ramos, escreveu aos seus colegas de farda para explicar como está cumprindo a missão que um dia coube ao Silvinho da Land Rover. Disse que nenhuma indicação passa por ele se não for “republicana, legal e ética”. Acrescentou que todas são submetidas a “intensa pesquisa da vida pregressa do indicado, sob aspectos morais, jurídicos e político-ideológicos”. A carta do general foi escrita antes da nomeação de Alexandre Borges Cabral para a presidência do Banco do Nordeste. Indicado pelo megaenrolado Valdemar Costa Neto, Borges caiu no dia seguinte, quando o TCU lembrou que investiga o sumiço de R$ 2,2 bilhões da Casa da Moeda durante sua gestão. Aparentemente, este só foi aprovado por Ramos no quesito político-ideológico.
Apoio zero
A coisa vai mal mesmo para o ministro da Educação. Abraham Weintraub está sendo rejeitado pelo centrão. Até pelo centrão. E não é mais pela amarração de cargos, que estes ele já entregou. Mas sim porque a turma do “É dando que se recebe” acha que a companhia do maluco atrapalha os negócios. Além dos abobados que fazem qualquer coisa que o líder mandar, como carregar o ministro nos ombros, Weintraub só tem o apoio dos três zeros de Bolsonaro e de outro aloprado, o terraplanista Olavo de Carvalho.
No justice, no peace
O ex-presidente americano Jimmy Carter conclamou americanos poderosos e privilegiados a sair das suas áreas de conforto para combater o racismo. Ele afirmou que “o silêncio pode ser tão mortal quanto a violência”.
As manifestações dos últimos 12 dias, que seguem pelo menos até terça, quando George Floyd será epultado, representam um enorme grito contra a violência. No pacífico Brasil, 59 negros são assassinados a cada dia.
BYE, BYE, LULA
O ex-presidente Lula da Silva surpreendeu até mesmo os aliados mais chegados ao se recusar a assinar os manifestos em favor da democracia lançados no fim de semana passado. Lembrou o velho PT que, em 1985, proibiu seus deputados de votarem em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral que pôs fim à ditadura; e, em 1988, votou contra a Constituição recém-aprovada.
MAGRELAS ELÉTRICAS
As bicicletas disponíveis para alugar em muitas cidades brasileiras vão ganhar a companhia de magrelas elétricas. Servirão para locomoção profissional depois da pandemia de coronavírus. Hoje, as bicicletas são alugadas principalmente para lazer. Imagina-se que no futuro próximo serão locadas para as pessoas irem ao trabalho, por exemplo. As elétricas permitirão que se chegue seco ao seu destino, sem suar. Muitos entregadores das empresas iFood e Rappi já usam bicicletas alugadas para fazer suas entregas. Com as elétricas, suas performances vão melhorar.
Não é a primeira vez que acontece de um presidente acuado ameaçar a nação com a convocação das Forças Armadas
Não é a primeira vez que acontece de um presidente acuado ameaçar a nação com a convocação das Forças Armadas. Jair Bolsonaro é mestre em citar os militares como salvadores da pátria sempre que se encontra em situação difícil, causada normalmente por ele mesmo em razão de declarações estapafúrdias ou gestos politicamente equivocados. O último general-presidente da ditadura iniciada em 1964, João Figueiredo, repetiu inúmeras vezes a frase “Olha que eu vou chamar o Pires”, sempre que um fato o incomodava. O Pires de Figueiredo era o carrancudo Walter Pires, ministro do Exército.
A frase de Figueiredo queria significar uma volta ao passado, à linha-dura. Embora Figueiredo tenha sido o último presidente do regime, a ditadura vivia seus estertores. O presidente tinha ainda poderes excepcionais, como o decreto-lei, uma espécie de Medida Provisória de sinal trocado. O decreto passava a valer no ato da sua publicação e só perdia a validade se o Congresso o derrubasse. A MP cai se o Congresso não a apreciar. Mas o famigerado Ato Institucional número 5 havia sido revogado. E aos poucos o país voltava à normalidade com a Anistia de 1979, a volta dos exilados e a libertação de todos os presos políticos
Nos últimos anos do governo Figueiredo, fora os extraordinários problemas econômicos, o Brasil só queria eleger o próximo presidente e desenhar uma nova Constituição para substituir a Carta escrita pelos militares. O primeiro objetivo foi enterrado com a derrota da emenda Dante de Oliveira, que restabelecia a eleição direta, mas o substituto do último ditador seria o civil Tancredo Neves, adversário da ditadura. E a nova Constituição democrática, que o deputado Ulysses Guimarães batizou de “Constituição Cidadã”, era só uma questão de tempo.
Apesar da ameaça comum de chamar um militar para resolver um problema civil, param por aí as semelhanças entre o governo do general e o do capitão. Bolsonaro é um presidente eleito legitimamente pelo voto popular, enquanto Figueiredo foi escolhido solitariamente pelo seu antecessor, o general Ernesto Geisel, e ungido por um colégio eleitoral formatado para atender as ordens do Palácio do Planalto. Mas isso não torna o primeiro melhor do que o segundo.
A composição dos ministérios dos dois presidente é um bom exemplo da diferença entre eles. Com mais ministros do que hoje, Figueiredo tinha sete militares na Esplanada contra 11 de Bolsonaro. Dos sete ministros fardados de Figueiredo, três ocupavam cargos que eram privativos de oficiais generais, os Ministérios de Exército, Marinha e Aeronáutica (hoje departamentos subordinados ao Ministério da Defesa). O que isso significa? Não muito, mas pelo menos pode-se dizer que o general confiava mais nos civis do que o capitão.
Figueiredo era mal educado e frequentemente falava barbaridades, mas não se pode comparar suas grosserias com as de Bolsonaro. Nunca se ouviu o general mandar um jornalista calar a boca. Também se desconhece reunião ministerial com tantos impropérios quanto aquela famosa do dia 22 de abril. Figueiredo era mais tolerante, talvez porque não tivesse os poderes extraordinários e antidemocráticos de que usufruíram seus antecessores. Bolsonaro é mais intolerante, talvez porque queria ter aqueles poderes para si.
Bolsonaro olha para o seu futuro querendo enxergar o passado. Figueiredo sabia que não tinha futuro.
Mourão precipitado
O vice-presidente Hamilton Mourão anda se precipitando.
Por duas vezes nos últimos 30 dias publicou artigos, digamos, politicamente inconvenientes. Inconvenientes para ele. Mesmo que eventualmente demonstrem um estado de espírito ou um alinhamento ideológico com Bolsonaro, podem ser tratados como equívoco. O texto que publicou quarta-feira no Estadão, carregado nos tons, pinta seu autor com o verde e o amarelo que de uns tempos para cá passaram a ser as cores da intolerância e do golpismo. O artigo de nada serve para Mourão, que é o substituto imediato do presidente. O texto, que não tranquilizou a maioria, serviu somente para atiçar os ânimos já exaltados dos extremistas de direita. Mourão não é do ramo e não sabe fazer política. Bastão pode, general?
Ninguém sabe onde o vice-presidente viu barras de ferro e armas brancas nas manifestações pela democracia de domingo passado, como ele menciona no artigo. O que se viu, isso sim, foi uma manifestante fantasiada com a bandeira dos EUA, da turma que defende o fechamento do Supremo e do Congresso, carregando um bastão de basebol. Bastão pode, general?
Silvinho de farda
O encarregado de distribuir cargos e verbas para os aliados do centrão, o general Luiz Eduardo Ramos, escreveu aos seus colegas de farda para explicar como está cumprindo a missão que um dia coube ao Silvinho da Land Rover. Disse que nenhuma indicação passa por ele se não for “republicana, legal e ética”. Acrescentou que todas são submetidas a “intensa pesquisa da vida pregressa do indicado, sob aspectos morais, jurídicos e político-ideológicos”. A carta do general foi escrita antes da nomeação de Alexandre Borges Cabral para a presidência do Banco do Nordeste. Indicado pelo megaenrolado Valdemar Costa Neto, Borges caiu no dia seguinte, quando o TCU lembrou que investiga o sumiço de R$ 2,2 bilhões da Casa da Moeda durante sua gestão. Aparentemente, este só foi aprovado por Ramos no quesito político-ideológico.
Apoio zero
A coisa vai mal mesmo para o ministro da Educação. Abraham Weintraub está sendo rejeitado pelo centrão. Até pelo centrão. E não é mais pela amarração de cargos, que estes ele já entregou. Mas sim porque a turma do “É dando que se recebe” acha que a companhia do maluco atrapalha os negócios. Além dos abobados que fazem qualquer coisa que o líder mandar, como carregar o ministro nos ombros, Weintraub só tem o apoio dos três zeros de Bolsonaro e de outro aloprado, o terraplanista Olavo de Carvalho.
No justice, no peace
O ex-presidente americano Jimmy Carter conclamou americanos poderosos e privilegiados a sair das suas áreas de conforto para combater o racismo. Ele afirmou que “o silêncio pode ser tão mortal quanto a violência”.
As manifestações dos últimos 12 dias, que seguem pelo menos até terça, quando George Floyd será epultado, representam um enorme grito contra a violência. No pacífico Brasil, 59 negros são assassinados a cada dia.
BYE, BYE, LULA
O ex-presidente Lula da Silva surpreendeu até mesmo os aliados mais chegados ao se recusar a assinar os manifestos em favor da democracia lançados no fim de semana passado. Lembrou o velho PT que, em 1985, proibiu seus deputados de votarem em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral que pôs fim à ditadura; e, em 1988, votou contra a Constituição recém-aprovada.
MAGRELAS ELÉTRICAS
As bicicletas disponíveis para alugar em muitas cidades brasileiras vão ganhar a companhia de magrelas elétricas. Servirão para locomoção profissional depois da pandemia de coronavírus. Hoje, as bicicletas são alugadas principalmente para lazer. Imagina-se que no futuro próximo serão locadas para as pessoas irem ao trabalho, por exemplo. As elétricas permitirão que se chegue seco ao seu destino, sem suar. Muitos entregadores das empresas iFood e Rappi já usam bicicletas alugadas para fazer suas entregas. Com as elétricas, suas performances vão melhorar.
Paz, amor e cargos - JULIANNA SOFIA
FOLHA DE SP - 06/06
Ministério da Saúde se divide entre fisiologismo político e burocracia militarizada
Jair Bolsonaro entregou mais um anel ao centrão na bufonaria que promove com cargos públicos para tentar blindar seu mandato. Nomeou para a Secretaria de Vigilância do Ministério da Saúde —área nevrálgica no combate à pandemia— um afilhado político dos partidos com os quais negocia verbas e postos-chave em troca de apoio.
Mais de uma dúzia de posições foram franqueadas pelo Palácio do Planalto a essas legendas desde que as fagulhas do impeachment passaram a chispar mais alto. Outras secretarias da própria Saúde são objeto da cobiça, e a presidência da Funasa foi parar nas mão do PSD.
(Aliás, sob a interinidade do general Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde passa por uma extravagante mutação e adquire feições híbridas entre o fisiologismo político e a burocracia militarizada. Já são ao menos 26 fardados no órgão.)
Na barganha desmedida, o Banco do Nordeste ganhou novo presidente na terça-feira (2) para perdê-lo na quarta. Passou despercebida pelos arapongas da Abin uma investigação do TCU sobre malfeitos do nomeado. Com a divulgação do caso, o Planalto determinou a demissão. Há um mês, no entanto, deu de ombros ao saber que, dias após a nomeação do novo diretor-geral do Dnocs, o deputado que o apadrinhou foi alvo de operação policial.
Embora custe pontos à popularidade cadente de Bolsonaro —segundo o Datafolha, 67% dos eleitores avaliam que o presidente age mal ao negociar com o centrão—, os préstimos do bloco têm sido satisfatórios. Há seis meses dormita no Conselho de Ética o caso em que o deputado Eduardo Bolsonaro cogitou a volta do AI-5. Os novos capangas de Bolsonaro frearam tentativas de ampliar benefícios a trabalhadores afetados por cortes de salários, o que afetaria as contas públicas.
O centrão paz, amor e cargos também desistiu da disputa de R$ 25 bilhões do orçamento impositivo. Em fevereiro, Augusto Heleno (GSI) xingou parlamentares e acusou-os de chantagem na briga pelos recursos.
Ministério da Saúde se divide entre fisiologismo político e burocracia militarizada
Jair Bolsonaro entregou mais um anel ao centrão na bufonaria que promove com cargos públicos para tentar blindar seu mandato. Nomeou para a Secretaria de Vigilância do Ministério da Saúde —área nevrálgica no combate à pandemia— um afilhado político dos partidos com os quais negocia verbas e postos-chave em troca de apoio.
Mais de uma dúzia de posições foram franqueadas pelo Palácio do Planalto a essas legendas desde que as fagulhas do impeachment passaram a chispar mais alto. Outras secretarias da própria Saúde são objeto da cobiça, e a presidência da Funasa foi parar nas mão do PSD.
(Aliás, sob a interinidade do general Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde passa por uma extravagante mutação e adquire feições híbridas entre o fisiologismo político e a burocracia militarizada. Já são ao menos 26 fardados no órgão.)
Na barganha desmedida, o Banco do Nordeste ganhou novo presidente na terça-feira (2) para perdê-lo na quarta. Passou despercebida pelos arapongas da Abin uma investigação do TCU sobre malfeitos do nomeado. Com a divulgação do caso, o Planalto determinou a demissão. Há um mês, no entanto, deu de ombros ao saber que, dias após a nomeação do novo diretor-geral do Dnocs, o deputado que o apadrinhou foi alvo de operação policial.
Embora custe pontos à popularidade cadente de Bolsonaro —segundo o Datafolha, 67% dos eleitores avaliam que o presidente age mal ao negociar com o centrão—, os préstimos do bloco têm sido satisfatórios. Há seis meses dormita no Conselho de Ética o caso em que o deputado Eduardo Bolsonaro cogitou a volta do AI-5. Os novos capangas de Bolsonaro frearam tentativas de ampliar benefícios a trabalhadores afetados por cortes de salários, o que afetaria as contas públicas.
O centrão paz, amor e cargos também desistiu da disputa de R$ 25 bilhões do orçamento impositivo. Em fevereiro, Augusto Heleno (GSI) xingou parlamentares e acusou-os de chantagem na briga pelos recursos.
Os tropeços de Bolsonaro - MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 06/06
A compostura do presidente Bolsonaro não é nem de uma pessoa normal, quanto mais a de um presidente da República. Não falar sobre a nossa tragédia sanitária no dia em que chegamos a um morto por minuto, mesmo ao inaugurar um hospital de campanha construído para enfrentar a pandemia, é sinal de desumanidade incomparável. Tropeçou física e metaforicamente nos seus próprios erros.
O que ele não entende é que seu desapego às consequências da pandemia tira-lhe mais apoios do que a insistência em reabrir a economia, supostamente preocupado com os que precisam trabalhar para ganhar a vida. Mas o risco de aumento do número daqueles que perdem a vida por estarem na rua trabalhando na informalidade é muito maior do que a alegada possibilidade de morrerem de fome.
O absurdo é que o governo não esteja totalmente mobilizado para essa tragédia nacional. E não temos nem ministro da Saúde. O próprio presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, espelho para Bolsonaro, criticou a maneira como o Brasil está enfrentando a pandemia da Covid-19, dando como exemplo do que não deve ser feito a Suécia, elogiada por Bolsonaro, e o nosso país.
Trump fez uma conta aterradora. Disse que se os Estados Unidos tivessem agido como o Brasil, milhões de americanos teriam já morrido. Isso num país em que mais de cem mil pessoas já morreram, mais do que em todas as guerras em que os Estados Unidos se meteram depois da Segunda Guerra Mundial.
Esse número macabro também nos assombra. Caminhamos para ter mais mortes do que na Guerra do Paraguai ou na Gripe Espanhola. E estamos disputando uma corrida insana para superarmos os Estados Unidos em número de mortos.
Em vez de preocupar-se com a realidade atual, Bolsonaro tenta armar uma realidade futura que ele não sabe nem mesmo se poderá desfrutar. Refiro-me à sua obsessão pela reeleição em 2022, que ele acredita estar pavimentando com a retomada da economia, como se por si só ela representasse bons ventos adiante.
Esquece-se de que o número crescente de mortes pela Covid-19 será um árduo fardo para carregar nas costas até as eleições, se é que seu mandato durará até lá. A questão do impeachment hoje parece mais de quando, e não de se, como se refere à ruptura democrática seu filho 03.
O que os Bolsonaro querem é preparar o ambiente para que, caso amanhã as manifestações contra o governo sejam muito grandes, possam reprimi-las com a Força Nacional, que nunca foi chamada para reprimir, ou ao menos velar pela segurança das marchas a favor de Bolsonaro, carregadas de cartazes incitando o ódio e o fechamento do Congresso e do Supremo, excessos da liberdade de expressão que não estão protegidas pela lei.
Finge estar preocupado com o embate entre prós e contras ele, mas xingar os contrários de terroristas e vândalos é tentativa de criar ambiente que permita acionar a Força Nacional e dizer que está sendo atacado. É uma atitude política óbvia. Tomara que domingo seja tudo calmo.
Algumas lideranças que estão se manifestando publicamente contra o governo sugerem evitar manifestações neste momento, e esse apelo — sensato — deve diminuir o número de pessoas nas ruas. Pessoalmente, prefiro que não houvesse nada por enquanto, e que as manifestações começassem quando voltarmos à normalidade, com o Congresso funcionando.
Mas outros acham que não se pode deixar Bolsonaro avançar, e é preciso ir logo para a rua. Há especulações de que o que Bolsonaro quer mesmo é encontrar um atalho no seu caminho para a reeleição para ganhar poderes num estado de sítio provocado por distúrbios nas ruas.
A mesma tática foi tentada pela ex-presidente Dilma Rousseff, que chegou a consultar os ministros militares sobre a decretação de um estado de sítio antes da votação do impechament que acabou tirando-a do governo. Os ministros deixaram claro que não apoiariam tal decisão, e o golpe teve que ser abortado.
Esperemos que esses mesmos militares que continuam a liderar as Forças Armadas, uns ainda na ativa, outros na reserva mas em postos importantes dentro do governo Bolsonaro, sejam coerentes com atitudes do passado e reajam à tentativa de controlar os protestos oposicionistas através de golpes de força.
Elegia para um país à deriva - BOLÍVAR LAMOUNIER
ESTADÃO - 06/06
Triste como se comporta um presidente, que deveria contribuir para desarmar os espíritos
Em janeiro de 2019 Jair Messias Bolsonaro subiu a rampa do Palácio Planalto convencido de que seus eleitores lhe haviam outorgado um mandato para fazer o que bem entendesse. É um fato comum no sistema presidencialista de governo.
O eleito tende a pensar que dezenas de milhões de eleitores compareceram às urnas com um único pensamento. Sabiam exatamente os objetivos que o candidato de sua preferência deveria perseguir, e por que deveriam fazê-lo. Uma parte deles por certo se lembrava de que, na democracia, o poder é exercido dentro de limites estipulados na Constituição e nas leis, e também pela existência do “outro”, ou seja, dos adversários, que foram derrotados, mas não deixaram de existir.
Embora típico do sistema presidencialista, no caso de Bolsonaro o sentimento de onipotência a que acima me referi apresenta riscos adicionais de suma importância.
Primeiro, ele vê aquela enorme massa de votos como a voz do “povo” - de todos os brasileiros - e a escolha dele entre os diversos candidatos como um reconhecimento dos méritos que supostamente possui. Ora, ninguém ignora que a maior parte de sua votação se deveu à rejeição generalizada ao PT e ao desastroso legado dos governos petistas; e, complementarmente, ao péssimo desempenho dos partidos de centro, que não conseguiram se unir em torno de uma candidatura e de símbolos apropriados ao tenso momento sob o qual o Brasil tem vivido já há vários anos.
Uma pequena parcela do eleitorado intuiu que o candidato pretendia fazer reformas. Designado com antecedência, Paulo Guedes sinalizava uma orientação liberal na economia, e ele mesmo, Bolsonaro, falava em acabar com a “velha política”, expressão tão vaga como o “contra tudo o que aí está” dos primórdios do PT. A cereja do bolo - quero dizer, a parte mais esdrúxula do imaginário mandato bolsonarista - ficou a cargo do sábio da Virgínia. Seria o combate a um moinho de vento por ele denominado “marxismo cultural”.
Mas os riscos embutidos na visão política de Bolsonaro vão muito além dos que acima tentei alinhavar. Mais grave, ao que tudo indica, é o fato de tal visão existir muito mais no campo da psicologia que no do raciocínio.
Parco em letras, Bolsonaro parece travar uma luta diária contra os limites que o sistema político lhe impõe e seu fígado, que o estimula a derrubá-los. Desconhece por completo o significado e o alcance da expressão “liturgia do cargo”. Não compreende que, uma vez investido na suprema magistratura do País, ele não mais se pertence.
Sua propensão a demonstrar “franqueza” tem muito de infantil. Como chefe de Estado, ele deve se comportar com moderação e comedimento, abstendo-se de recorrer a termos inadequados à posição que ocupa e de insultar integrantes dos outros Poderes e jornalistas.
Esse perfil assaz telegráfico que estou tentando traçar indica que o presidente tem uma indisfarçável inclinação autoritária, ditatorial, mas isso ainda é dizer pouco. Não por acaso, o último rumor que nos devia atormentar - a iminência de alguma aventura golpista - passou a frequentar diariamente as páginas dos jornais.
Do fígado, que ele a duras penas tenta controlar, vez por outra emergem traços francamente paranoicos, notadamente a percepção de que decisões ou pronunciamentos contrários a seus desejos são indícios de alguma conspiração. Vale dizer, da perfídia de inimigos empenhados em apeá-lo do poder.
A controvérsia sobre o artigo 142 da Constituição, que supostamente confere às Forças Armadas a faculdade de intervir como um poder moderador na eventualidade de conflito entre os Poderes, deu à conjuntura o toque pitoresco que talvez lhe faltasse. O que se pode sensatamente afirmar, especialmente em relação ao Exército, é que sua excessiva presença no governo empresta uma aura de veracidade a essa tolice, com grave prejuízo para sua imagem institucional.
Salta aos olhos que a chegada da covid-19 - bem como a atribuição, pelo Supremo Tribunal Federal, da responsabilidade primária pelo combate à epidemia aos Estados e municípios - elevou os riscos precedentemente mencionados à enésima potência. Ignorando e contrariando - exatamente como fez Donald Trump, nos Estados Unidos - o diagnóstico elaborado pelos serviços de inteligência, Bolsonaro retardou o sentimento de urgência que se impunha. E levou-o a solapar tais esforços, descumprindo deliberada e ostensivamente as recomendações adotadas não só no Brasil, mas em quase todo o mundo.
É triste ver comportar-se dessa forma um presidente que deveria contribuir para o desarmamento dos espíritos e para a eficácia do atendimento aos doentes. Um homem corajoso, ex-atleta, não se deixaria intimidar por uma “gripezinha”.
Uma palavra de preocupação ou compaixão pelas famílias enlutadas não parece compatível com tal perfil. Pena não ter ele até agora demonstrado sua coragem, passando um dia num hospital e colaborando, quem sabe, em tarefas que não requerem conhecimentos específicos de saúde.
SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
Triste como se comporta um presidente, que deveria contribuir para desarmar os espíritos
Em janeiro de 2019 Jair Messias Bolsonaro subiu a rampa do Palácio Planalto convencido de que seus eleitores lhe haviam outorgado um mandato para fazer o que bem entendesse. É um fato comum no sistema presidencialista de governo.
O eleito tende a pensar que dezenas de milhões de eleitores compareceram às urnas com um único pensamento. Sabiam exatamente os objetivos que o candidato de sua preferência deveria perseguir, e por que deveriam fazê-lo. Uma parte deles por certo se lembrava de que, na democracia, o poder é exercido dentro de limites estipulados na Constituição e nas leis, e também pela existência do “outro”, ou seja, dos adversários, que foram derrotados, mas não deixaram de existir.
Embora típico do sistema presidencialista, no caso de Bolsonaro o sentimento de onipotência a que acima me referi apresenta riscos adicionais de suma importância.
Primeiro, ele vê aquela enorme massa de votos como a voz do “povo” - de todos os brasileiros - e a escolha dele entre os diversos candidatos como um reconhecimento dos méritos que supostamente possui. Ora, ninguém ignora que a maior parte de sua votação se deveu à rejeição generalizada ao PT e ao desastroso legado dos governos petistas; e, complementarmente, ao péssimo desempenho dos partidos de centro, que não conseguiram se unir em torno de uma candidatura e de símbolos apropriados ao tenso momento sob o qual o Brasil tem vivido já há vários anos.
Uma pequena parcela do eleitorado intuiu que o candidato pretendia fazer reformas. Designado com antecedência, Paulo Guedes sinalizava uma orientação liberal na economia, e ele mesmo, Bolsonaro, falava em acabar com a “velha política”, expressão tão vaga como o “contra tudo o que aí está” dos primórdios do PT. A cereja do bolo - quero dizer, a parte mais esdrúxula do imaginário mandato bolsonarista - ficou a cargo do sábio da Virgínia. Seria o combate a um moinho de vento por ele denominado “marxismo cultural”.
Mas os riscos embutidos na visão política de Bolsonaro vão muito além dos que acima tentei alinhavar. Mais grave, ao que tudo indica, é o fato de tal visão existir muito mais no campo da psicologia que no do raciocínio.
Parco em letras, Bolsonaro parece travar uma luta diária contra os limites que o sistema político lhe impõe e seu fígado, que o estimula a derrubá-los. Desconhece por completo o significado e o alcance da expressão “liturgia do cargo”. Não compreende que, uma vez investido na suprema magistratura do País, ele não mais se pertence.
Sua propensão a demonstrar “franqueza” tem muito de infantil. Como chefe de Estado, ele deve se comportar com moderação e comedimento, abstendo-se de recorrer a termos inadequados à posição que ocupa e de insultar integrantes dos outros Poderes e jornalistas.
Esse perfil assaz telegráfico que estou tentando traçar indica que o presidente tem uma indisfarçável inclinação autoritária, ditatorial, mas isso ainda é dizer pouco. Não por acaso, o último rumor que nos devia atormentar - a iminência de alguma aventura golpista - passou a frequentar diariamente as páginas dos jornais.
Do fígado, que ele a duras penas tenta controlar, vez por outra emergem traços francamente paranoicos, notadamente a percepção de que decisões ou pronunciamentos contrários a seus desejos são indícios de alguma conspiração. Vale dizer, da perfídia de inimigos empenhados em apeá-lo do poder.
A controvérsia sobre o artigo 142 da Constituição, que supostamente confere às Forças Armadas a faculdade de intervir como um poder moderador na eventualidade de conflito entre os Poderes, deu à conjuntura o toque pitoresco que talvez lhe faltasse. O que se pode sensatamente afirmar, especialmente em relação ao Exército, é que sua excessiva presença no governo empresta uma aura de veracidade a essa tolice, com grave prejuízo para sua imagem institucional.
Salta aos olhos que a chegada da covid-19 - bem como a atribuição, pelo Supremo Tribunal Federal, da responsabilidade primária pelo combate à epidemia aos Estados e municípios - elevou os riscos precedentemente mencionados à enésima potência. Ignorando e contrariando - exatamente como fez Donald Trump, nos Estados Unidos - o diagnóstico elaborado pelos serviços de inteligência, Bolsonaro retardou o sentimento de urgência que se impunha. E levou-o a solapar tais esforços, descumprindo deliberada e ostensivamente as recomendações adotadas não só no Brasil, mas em quase todo o mundo.
É triste ver comportar-se dessa forma um presidente que deveria contribuir para o desarmamento dos espíritos e para a eficácia do atendimento aos doentes. Um homem corajoso, ex-atleta, não se deixaria intimidar por uma “gripezinha”.
Uma palavra de preocupação ou compaixão pelas famílias enlutadas não parece compatível com tal perfil. Pena não ter ele até agora demonstrado sua coragem, passando um dia num hospital e colaborando, quem sabe, em tarefas que não requerem conhecimentos específicos de saúde.
SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
O engodo e o embuste na vida pública - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 06/06
Além de desqualificar opositores no plano moral, uma prática fascista, Bolsonaro acusa os que protestam contra ele de ser inimigos da liberdade
Na vida política, as mentiras costumam ser mais plausíveis do que a realidade, uma vez que o mentiroso tem a vantagem de saber de antemão o que a plateia deseja. Ele prepara sua história para consumo público, de modo a torná-la crível. Com isso, a verdade tende a desaparecer da vida pública, corroendo a estabilidade democrática. Esta é a conclusão de um dos ensaios mais discutidos no final da década de 1960, sobre o uso da mentira na política.
De autoria da filósofa alemã Hannah Arendt e incluído no seu livro Crises da República, o ensaio discute o embuste e a falsidade deliberada como meios que determinados políticos utilizam para alcançar fins imorais e torpes. Também analisa as estratégias de vazamento de informações e a construção de narrativas que permitam interpretação deturpada dos fatos antes mesmo de eles acontecerem. “A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas. A capacidade de mentir e a capacidade de agir devem sua existência à mesma fonte: imaginação”, diz Arendt.
Escritas há cinco décadas, essas palavras são de uma atualidade preocupante quando relidas à luz do que disse o presidente Jair Bolsonaro na quinta e na sexta-feira passadas, sobre os atos convocados por diferentes órgãos da sociedade civil para protestar contra as manifestações semanais de bolsonaristas em favor de uma ditadura militar por ele chefiada. Nas lives de que participou e nos discursos que fez nesses dois dias, Bolsonaro comportou-se como se o ensaio de Hannah Arendt tivesse sido escrito com base em suas falas.
Procurando associar à violência os atos de protesto contra seu governo, o presidente deixou claro que os atos de domingo não serão travados entre adversários políticos, mas entre inimigos – entre “o pessoal de verde e amarelo, que é patriota”, e “idiotas, marginais, viciados e terroristas”. Segundo Bolsonaro, “este pessoal tem costumes que não condizem com a maioria da sociedade brasileira”. Além de desqualificar opositores no plano moral, que é uma conhecida prática fascista, Bolsonaro os acusou de serem inimigos da liberdade. “Mais importante que a sua vida é a sua liberdade. Esse pessoal não tem nada para oferecer para você. Se você pegar cem desse aí (sic), a maioria é estudante. Se você pegar e aplicar a prova do Enem neles, ninguém tira nota 5. São idiotas que não servem para nada”, afirmou.
Como se não bastasse, o presidente ainda pediu aos pais que impeçam os filhos de participar dos atos contrários ao seu governo. “Quem for possível exercer o controle em cima dos filhos (sic), exerça para não deixar o filho participar. Alguns vão dizer que eu estou cerceando a liberdade. Isso não é liberdade de expressão, o cara vai para o quebra-quebra. E vai ter muito garoto desse usado como massa de manobra, idiota útil”, disse Bolsonaro, procurando desde logo responsabilizar seus opositores por qualquer ato violento.
Horas depois, anunciou que em breve concederá autorização para importação, sem imposto, de armas de uso individual. Na ocasião, afirmou que “a boa medida (sic) vai ajudar todo o pessoal do artigo 142 da nossa Constituição”, referindo-se talvez aos membros das Forças Armadas. Além de definir as atividades militares, esse artigo se limita a classificar as Forças Armadas como “instituições que, sob a autoridade suprema do presidente da República, destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem”. Mas, numa interpretação tortuosa e absurda desse texto, Bolsonaro acredita que este lhe confere a prerrogativa de convocá-las quando bem entender e para o que bem quiser. Mesmo advertido para o erro que comete, insiste em repeti-lo.
Em seu ensaio sobre a mentira na política, Hannah Arendt lembra que o engodo e o embuste costumam ser eficientes apenas quando o mentiroso tem ideia clara da verdade do que tenta esconder. Bolsonaro sabe o que quer. Mas em momento algum consegue esconder seus anseios ignominiosos.
Além de desqualificar opositores no plano moral, uma prática fascista, Bolsonaro acusa os que protestam contra ele de ser inimigos da liberdade
Na vida política, as mentiras costumam ser mais plausíveis do que a realidade, uma vez que o mentiroso tem a vantagem de saber de antemão o que a plateia deseja. Ele prepara sua história para consumo público, de modo a torná-la crível. Com isso, a verdade tende a desaparecer da vida pública, corroendo a estabilidade democrática. Esta é a conclusão de um dos ensaios mais discutidos no final da década de 1960, sobre o uso da mentira na política.
De autoria da filósofa alemã Hannah Arendt e incluído no seu livro Crises da República, o ensaio discute o embuste e a falsidade deliberada como meios que determinados políticos utilizam para alcançar fins imorais e torpes. Também analisa as estratégias de vazamento de informações e a construção de narrativas que permitam interpretação deturpada dos fatos antes mesmo de eles acontecerem. “A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas. A capacidade de mentir e a capacidade de agir devem sua existência à mesma fonte: imaginação”, diz Arendt.
Escritas há cinco décadas, essas palavras são de uma atualidade preocupante quando relidas à luz do que disse o presidente Jair Bolsonaro na quinta e na sexta-feira passadas, sobre os atos convocados por diferentes órgãos da sociedade civil para protestar contra as manifestações semanais de bolsonaristas em favor de uma ditadura militar por ele chefiada. Nas lives de que participou e nos discursos que fez nesses dois dias, Bolsonaro comportou-se como se o ensaio de Hannah Arendt tivesse sido escrito com base em suas falas.
Procurando associar à violência os atos de protesto contra seu governo, o presidente deixou claro que os atos de domingo não serão travados entre adversários políticos, mas entre inimigos – entre “o pessoal de verde e amarelo, que é patriota”, e “idiotas, marginais, viciados e terroristas”. Segundo Bolsonaro, “este pessoal tem costumes que não condizem com a maioria da sociedade brasileira”. Além de desqualificar opositores no plano moral, que é uma conhecida prática fascista, Bolsonaro os acusou de serem inimigos da liberdade. “Mais importante que a sua vida é a sua liberdade. Esse pessoal não tem nada para oferecer para você. Se você pegar cem desse aí (sic), a maioria é estudante. Se você pegar e aplicar a prova do Enem neles, ninguém tira nota 5. São idiotas que não servem para nada”, afirmou.
Como se não bastasse, o presidente ainda pediu aos pais que impeçam os filhos de participar dos atos contrários ao seu governo. “Quem for possível exercer o controle em cima dos filhos (sic), exerça para não deixar o filho participar. Alguns vão dizer que eu estou cerceando a liberdade. Isso não é liberdade de expressão, o cara vai para o quebra-quebra. E vai ter muito garoto desse usado como massa de manobra, idiota útil”, disse Bolsonaro, procurando desde logo responsabilizar seus opositores por qualquer ato violento.
Horas depois, anunciou que em breve concederá autorização para importação, sem imposto, de armas de uso individual. Na ocasião, afirmou que “a boa medida (sic) vai ajudar todo o pessoal do artigo 142 da nossa Constituição”, referindo-se talvez aos membros das Forças Armadas. Além de definir as atividades militares, esse artigo se limita a classificar as Forças Armadas como “instituições que, sob a autoridade suprema do presidente da República, destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem”. Mas, numa interpretação tortuosa e absurda desse texto, Bolsonaro acredita que este lhe confere a prerrogativa de convocá-las quando bem entender e para o que bem quiser. Mesmo advertido para o erro que comete, insiste em repeti-lo.
Em seu ensaio sobre a mentira na política, Hannah Arendt lembra que o engodo e o embuste costumam ser eficientes apenas quando o mentiroso tem ideia clara da verdade do que tenta esconder. Bolsonaro sabe o que quer. Mas em momento algum consegue esconder seus anseios ignominiosos.
Nau sem rumo - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 06/06
País bate marca de 1 morte/minuto por Covid-19, sem ministro e com dado atrasado
Uma morte a cada minuto —eis o saldo trágico de brasileiros tombados pela Covid-19 na quinta-feira (4). Completados cem dias desde o primeiro diagnóstico da doença, o país anotou 1.473 vidas perdidas em 24 horas e cruzou a marca das 34 mil, a maior parte delas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pará e Pernambuco.
Ultrapassou ainda a quantidade de mortes contabilizadas na Itália, figurando hoje somente atrás de Reino Unido (40 mil) e EUA (107 mil) nesse ranking lúgubre.
Já os casos confirmados passam de 600 mil, soma inferior apenas à registrada nos Estados Unidos. Tais número, por horripilantes que sejam, revelam apenas parte da realidade. A subnotificação grassa no país, alimentada pela escassez de testes e por estratégias equivocadas de identificação dos enfermos.
Ao contrário do que ocorre em outras nações recordistas, no Brasil a curva de contágios ainda se encontra ascendente, alertam especialistas, e não atingimos ainda o pico de casos diários.
Enquanto a economia continua se agravando, acentuam-se pressões sobre prefeitos e governadores para o afrouxamento das medidas de quarentena, principal instrumento de controle à mão até que haja vacinas e remédios eficazes.
Tal movimento, como se sabe, tem seu principal vetor no Palácio do Planalto. Desde o início da epidemia, Jair Bolsonaro demonstrou não estar à altura do desafio, minimizando de forma inconsequente a doença, incentivando e promovendo aglomerações, propagando desinformação como cálculo e tratando com indiferença as perdas de milhares de famílias.
Sua obsessão irracional por soluções mágicas, sem qualquer respaldo na ciência, e o esforço diuturno em sabotar as políticas do próprio Ministério da Saúde, ceifaram em poucas semanas dois ministros, deixando interinamente no cargo um general sem experiência prévia na área —mas obediente aos ditames presidenciais.
Incapaz de controlar a epidemia, o governo agora também atravanca a divulgação do morticínio. Na sexta (5), pelo terceiro dia consecutivo, a pasta só liberou o boletim diário a partir das 22h —coincidência ou não, após o horário de conclusão das primeiras edições dos jornais impressos e da transmissão dos principais noticiários de TV.
A demora mal explicada pela checagem de números acentuou-se com a progressão da epidemia e as mudanças no comando do ministério. Veio acompanhada do fim das entrevistas diárias e do sumiço do chefe provisório da pasta.
Trata-se, numa interpretação benevolente, de rematada incompetência. Se é estratégia infame, não conseguirá esconder uma condução cada vez mais ruinosa da crise.
País bate marca de 1 morte/minuto por Covid-19, sem ministro e com dado atrasado
Uma morte a cada minuto —eis o saldo trágico de brasileiros tombados pela Covid-19 na quinta-feira (4). Completados cem dias desde o primeiro diagnóstico da doença, o país anotou 1.473 vidas perdidas em 24 horas e cruzou a marca das 34 mil, a maior parte delas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pará e Pernambuco.
Ultrapassou ainda a quantidade de mortes contabilizadas na Itália, figurando hoje somente atrás de Reino Unido (40 mil) e EUA (107 mil) nesse ranking lúgubre.
Já os casos confirmados passam de 600 mil, soma inferior apenas à registrada nos Estados Unidos. Tais número, por horripilantes que sejam, revelam apenas parte da realidade. A subnotificação grassa no país, alimentada pela escassez de testes e por estratégias equivocadas de identificação dos enfermos.
Ao contrário do que ocorre em outras nações recordistas, no Brasil a curva de contágios ainda se encontra ascendente, alertam especialistas, e não atingimos ainda o pico de casos diários.
Enquanto a economia continua se agravando, acentuam-se pressões sobre prefeitos e governadores para o afrouxamento das medidas de quarentena, principal instrumento de controle à mão até que haja vacinas e remédios eficazes.
Tal movimento, como se sabe, tem seu principal vetor no Palácio do Planalto. Desde o início da epidemia, Jair Bolsonaro demonstrou não estar à altura do desafio, minimizando de forma inconsequente a doença, incentivando e promovendo aglomerações, propagando desinformação como cálculo e tratando com indiferença as perdas de milhares de famílias.
Sua obsessão irracional por soluções mágicas, sem qualquer respaldo na ciência, e o esforço diuturno em sabotar as políticas do próprio Ministério da Saúde, ceifaram em poucas semanas dois ministros, deixando interinamente no cargo um general sem experiência prévia na área —mas obediente aos ditames presidenciais.
Incapaz de controlar a epidemia, o governo agora também atravanca a divulgação do morticínio. Na sexta (5), pelo terceiro dia consecutivo, a pasta só liberou o boletim diário a partir das 22h —coincidência ou não, após o horário de conclusão das primeiras edições dos jornais impressos e da transmissão dos principais noticiários de TV.
A demora mal explicada pela checagem de números acentuou-se com a progressão da epidemia e as mudanças no comando do ministério. Veio acompanhada do fim das entrevistas diárias e do sumiço do chefe provisório da pasta.
Trata-se, numa interpretação benevolente, de rematada incompetência. Se é estratégia infame, não conseguirá esconder uma condução cada vez mais ruinosa da crise.
Supremo deve firmar seu peso constitucional - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 06/06
Julgamento do inquérito sobre as fake news serve para a Corte alertar Bolsonaro sobre seus limites
Não se deve tirar a importância de acenos de trégua de Bolsonaro para o Supremo. Um motivo para o presidente abaixar o tom é que tramitam no Judiciário assuntos de seu interesse. Um deles, o inquérito das fake news, aberto no STF, é conduzido por Alexandre de Moraes, e terá seu destino julgado na quarta-feira, em um processo instaurado a pedido do partido Rede, que questiona a forma como as investigações foram abertas: por decisão do próprio presidente da Corte, sem ouvir o Ministério Público, tendo designado Alexandre de Moraes, sem sorteio, para presidi-las.
Toffoli se valeu do regimento interno do Supremo para tomar essas decisões, a fim de averiguar ataques à Corte e ameaças aos ministros em redes sociais, meio em que o bolsonarismo radical trafega. A situação esdrúxula de uma Corte investigar, denunciar e julgar levou o Rede a recorrer contra o inquérito por “vícios” na sua abertura, também contestada pelo MP. Mas a crise institucional cresceu, e no avanço de Bolsonaro contra a Constituição foi ficando claro que a usina de fake news e a provável adesão de empresários a este projeto de “ruptura”, como diz o deputado Eduardo, o “03”, poderiam sinalizar a existência de uma organização criminosa: blogueiros, disparadores de notícias falsas contra pessoas e instituições, manifestações periódicas pela volta da ditadura, todo um complexo financiado por gente que tem dinheiro. Seja como for, os primeiros mandados de busca e apreensão expedidos por Moraes irritaram o Planalto. Visaram a blogueiros e deputados bolsonaristas, e a empresários próximos ao presidente (Luciano Hang, um deles). E o novo aliado do presidente, Roberto Jefferson (PTB), ex-mensaleiro e ex-presidiário.
O inquérito se transformou na ação mais efetiva até agora de defesa do estado democrático de direito. Aras, que inicialmente dissera que o inquérito era legal, pediu, depois daquelas diligências despachadas por Moraes, que o julgamento da ação do Rede fosse marcado, e que as investigações fosem suspensas até lá. Recuou, mas na quarta-feira deverá propor regramentos ao inquérito e a entrada do MP no processo. O procurador-geral pediria ainda que eventuais denunciados com foro privilegiado — parlamentares, por exemplo —, sejam separados dos demais, que seriam processados na primeira instância. A manobra repetiria a de Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça do PT, advogado no mensalão, que tentou desmembrá-lo, para dificultar a configuração de todo o esquema como “organização criminosa”.
Este julgamento, em que se espera a sacramentação do inquérito, vai ser uma oportunidade para o plenário do STF dar uma demonstração de unidade, não apenas em desagravo a Moraes, mas para firmar a determinação constitucional de que a Corte é a instância máxima para decidir sobre qualquer conflito, mesmo que envolva pessoas poderosas, políticos, altos funcionários públicos e até parentes do presidente, que teriam sido identificados em algumas das investigações.
Julgamento do inquérito sobre as fake news serve para a Corte alertar Bolsonaro sobre seus limites
Não se deve tirar a importância de acenos de trégua de Bolsonaro para o Supremo. Um motivo para o presidente abaixar o tom é que tramitam no Judiciário assuntos de seu interesse. Um deles, o inquérito das fake news, aberto no STF, é conduzido por Alexandre de Moraes, e terá seu destino julgado na quarta-feira, em um processo instaurado a pedido do partido Rede, que questiona a forma como as investigações foram abertas: por decisão do próprio presidente da Corte, sem ouvir o Ministério Público, tendo designado Alexandre de Moraes, sem sorteio, para presidi-las.
Toffoli se valeu do regimento interno do Supremo para tomar essas decisões, a fim de averiguar ataques à Corte e ameaças aos ministros em redes sociais, meio em que o bolsonarismo radical trafega. A situação esdrúxula de uma Corte investigar, denunciar e julgar levou o Rede a recorrer contra o inquérito por “vícios” na sua abertura, também contestada pelo MP. Mas a crise institucional cresceu, e no avanço de Bolsonaro contra a Constituição foi ficando claro que a usina de fake news e a provável adesão de empresários a este projeto de “ruptura”, como diz o deputado Eduardo, o “03”, poderiam sinalizar a existência de uma organização criminosa: blogueiros, disparadores de notícias falsas contra pessoas e instituições, manifestações periódicas pela volta da ditadura, todo um complexo financiado por gente que tem dinheiro. Seja como for, os primeiros mandados de busca e apreensão expedidos por Moraes irritaram o Planalto. Visaram a blogueiros e deputados bolsonaristas, e a empresários próximos ao presidente (Luciano Hang, um deles). E o novo aliado do presidente, Roberto Jefferson (PTB), ex-mensaleiro e ex-presidiário.
O inquérito se transformou na ação mais efetiva até agora de defesa do estado democrático de direito. Aras, que inicialmente dissera que o inquérito era legal, pediu, depois daquelas diligências despachadas por Moraes, que o julgamento da ação do Rede fosse marcado, e que as investigações fosem suspensas até lá. Recuou, mas na quarta-feira deverá propor regramentos ao inquérito e a entrada do MP no processo. O procurador-geral pediria ainda que eventuais denunciados com foro privilegiado — parlamentares, por exemplo —, sejam separados dos demais, que seriam processados na primeira instância. A manobra repetiria a de Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça do PT, advogado no mensalão, que tentou desmembrá-lo, para dificultar a configuração de todo o esquema como “organização criminosa”.
Este julgamento, em que se espera a sacramentação do inquérito, vai ser uma oportunidade para o plenário do STF dar uma demonstração de unidade, não apenas em desagravo a Moraes, mas para firmar a determinação constitucional de que a Corte é a instância máxima para decidir sobre qualquer conflito, mesmo que envolva pessoas poderosas, políticos, altos funcionários públicos e até parentes do presidente, que teriam sido identificados em algumas das investigações.