sábado, junho 06, 2020

Mercado das ideias - EURÍPEDES ALCÂNTARA

O GLOBO - 06/06

Todo governante tentado pelo autoritarismo tem como primeiro impulso controlar a informação


Hugo Black foi o mais ferrenho defensor da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, a que veda ao Congresso fazer lei instituindo uma religião oficial ou que diminua a liberdade de expressão e de imprensa. Black entendia que os autores da emenda não deixaram espaço para outra interpretação do texto: “Nenhuma lei significa nenhuma lei”. Durante seus 34 anos como ministro da Suprema Corte, em Washington, Black sustentou que qualquer controle de opiniões e da imprensa teria de ser deixado ao “livre mercado das ideias”. Esse princípio foi violado algumas vezes, em épocas de guerra, com a edição temporária de leis infraconstitucionais visando a evitar a sedição e atos de espionagem. Mas a Corte Suprema rejeitou todas as tentativas de mudar o texto da Primeira Emenda.

Black estava certo. Mas estaria certo agora? Ele formou sua opinião em um tempo em que as ofensas e ataques sem base, as fake news, eram espalhadas por meio de panfletos e jornais artesanais impressos em gráficas clandestinas. Será que a força do “livre mercado das ideias” seria capaz hoje de controlar as poderosas correntes digitais de fatos distorcidos e opiniões incendiárias? Acho que sim, pois se couber ao Estado censurar as redes sociais, será um passo para se meter também no conteúdo produzido pelo jornalismo profissional.

Como espero demonstrar, a ideia de Hugo Black parece ser a única solução. É aterradora a ideia de deixar o controle da informação nas mãos de um organismo estatal. Seria um desastre permitir que um punhado de burocratas decida o que é ou não é fake news ou dar a palavra final sobre o que pode chegar aos olhos do público e o que deve ser escondido. Isso não é papel do Estado democrático.

Todo governante tentado pelo autoritarismo tem como primeiro impulso controlar a informação. Na extinta União Soviética a imprensa era monopólio estatal. Em Cuba e na Coreia do Norte é a mesma coisa. A China, com sua devoção biface ao comunismo e ao capitalismo, desenvolveu um sistema de controle total da informação, fazendo exceção às universidades, onde professores e alunos podem acessar livremente a internet — mesmo que, acredito, sob vigilância estatal.

A Grã-Bretanha talvez seja a única sociedade aberta que tentou colocar a corrente de informações sob a tutela do Estado. Isso ocorreu em 2011 depois da revelação de crimes de escuta clandestina cometidos por jornalistas do “News of the World”, que deixou de circular como resultado do escândalo. Os jornalistas foram punidos pelas leis existentes. O governo delegou ao juiz Brian Leveson a criação de uma comissão de cujo relatório final constava a recomendação de que jornais e sites noticiosos fossem colocados sob “supervisão do Parlamento”. A recomendação durou pouco. A alternativa para evitar submeter a informação ao Estado foi criar um “clube” com compromisso de qualidade e adesão voluntária. Caberia a um “Painel de Verificação”, sem ligação formal com o governo, “apenas” garantir que jornais e sites aderentes fossem “honestos, precisos e transparentes”.

O problema dos britânicos parecia resolvido até que alguém quis saber quem nomearia os membros do Painel de Verificação. Ora, o “Conselho do Painel de Verificação”. E quem escolheria os integrantes do Conselho? O “Comitê de Indicações”. Sim, mas quem indica os nomes para esse comitê? O “Comissário Real de Indicações.” E quem escolhe o comissário? A rainha Elizabeth II, soberana por direito divino. Entregar a Deus a responsabilidade pela qualidade do jornalismo do reino não pareceu uma ideia boa, e a questão permanece sem solução.

Por isso, acredito que a saída menos traumática seja mesmo deixar ao “livre mercado das ideias”, ou seja, aos próprios consumidores de informação, o poder de avaliar o que lhes chega aos olhos e ouvidos. Uma primeira experiência nesse sentido foi usada pela revista “Time” em suas transmissões ao vivo das manifestações de rua contra a violência policial nos Estados Unidos. Enquanto a câmera captava as cenas, os comentários subiam na tela. De vez em quando um comentário mais incisivo era congelado e apareciam três opções: 1) Abusivo; 2) Adequado; 3) Não sei. Passado alguns minutos, vinha, por exemplo, a informação: “A maioria dos usuários considerou esse comentário abusivo”. É um começo.

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