quarta-feira, junho 03, 2020

A hora da retirada - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 03/06

Quando a guerra de mentira se tornou de verdade, a rapidez da mudança foi assustadora


Há 80 anos, em junho de 1940, completou-se uma retirada que é tratada como épica pelo Ocidente: Dunquerque. Esse lugar (entre a França e a Bélgica) apresenta um templo católico em meio às areias, de onde deriva o nome: igreja das dunas (dun-kerke).

O maior conflito da história humana teve começo, na Europa, em setembro de 1939. Derrotada a Polônia, as divisões alemãs não pareciam dispostas a bombardear seus inimigos ocidentais. Os meses finais de 1939 e iniciais de 1940 foram de tenebroso silêncio dos canhões a Oeste. O período foi batizado de Guerra de Mentira (em inglês, phoney war; em francês, drôle de guerre). A vida transcorria em Londres, Amsterdã, Bruxelas e Paris como se não existisse um perigo nazista.

Os franceses tinham adotado postura defensiva e confiavam de forma exagerada na sua imensa e custosa Linha Maginot, uma rede de casamatas e concreto, armamentos subterrâneos, depósitos de munições e até hospitais e transporte nas profundezas do solo para enfrentar a guerra que estava na memória dos velhos marechais de Paris: um conflito de trincheiras. Sim, em 1914, a Linha Maginot teria sido poderosa e intransponível. Mas, estávamos em 1940. O novo mundo era de aviões e de tanques decisivos. Os ingleses, protegidos pela sua poderosa marinha, deslocaram tropas para a França. O povo das ilhas não sofria uma invasão desde 1066 e isso pode ter aumentado a confiança de Londres. A confiança na tática defensiva foi exagerada.

Quando a guerra de mentira se tornou de verdade, a rapidez da mudança foi assustadora. A região acidentada e com vegetação densa nas fronteiras da França, Bélgica e Luxemburgo era considerada uma barreira natural. Como na Linha Maginot, o alto-comando francês cometeu o erro de supor que seria impossível para os tanques alemães (Panzer) atravessarem o Rio Mosa e as áreas ao redor. Curiosamente, a floresta antiga parece ter dado sorte duas vezes ao exército alemão: nas vitórias de 1940 e na contraofensiva combatendo o avanço aliado, em 1944.

A tática das divisões de tanques passou a incorporar uma mobilidade inédita e assustadora. Os veículos avançavam muitos quilômetros por dia e passaram com relativa facilidade pelas Ardenas. Bélgica, Holanda, Luxemburgo e a fronteira francesa foram atacadas em poucos dias a partir de dez de maio daquele ano (1940). Um pouco antes, o movimento de avanço já tinha atacado Dinamarca e Noruega. A guerra relâmpago alemã (Blitzkrieg) surpreendeu todos, Hitler inclusive. Líderes de tanques e oficiais tomaram decisões, aparentemente, sem um total controle de Berlim. As divisões francesas e inglesas foram sendo encurraladas em Dunquerque, uma praia aberta e sem defesas naturais. Um soldado francês e brilhante historiador, Marc Bloch, escreveu, depois, a obra A Estranha Derrota (Zahar). Churchill fez uma análise do episódio na sua obra Memórias da Segunda Guerra Mundial (HarperCollins). Os dois autores são excelentes, porém, ambos escreveram após Dunquerque. A distância cronológica ajuda na clareza. Os fatos do momento estão imersos em brumas e sem destino indicado.

Centenas de milhares de soldados apanhados em uma armadilha poderosa. Os ingleses tomaram uma decisão que se revelou sábia: enviar todos os barcos disponíveis (de militares a barcos de pesca e de turismo) para resgatar o máximo de homens do outro lado do Canal. O resultado foi extraordinário: o número de resgatados foi imensamente superior ao esperado. A força aérea alemã poderia ter causado o caos bombardeando a praia e os barcos. Os ataques foram relativamente leves. Por que a Luftwaffe evitou usar seu poderio? Há várias hipóteses, nenhuma inteiramente satisfatória. Outro dado curioso é que o general alemão (Gerd von Rundstedt) não compartilhava da ideia dos colegas oficiais de ataques relâmpago e preferia construir pontos seguros de retaguarda. Sua tática foi derrotada pelo alto-comando germânico. Ele seria promovido a Marechal de Campo logo em seguida. Premiou-se um militar que, se tivesse feito valer sua estratégia, teria impedido ou retardado o rápido avanço sobre Dunquerque.

Na hora em que a expansão nazista parecia irrefreável, despontou ainda mais a liderança de Winston Churchill. Sempre vale a pena ler seus livros e ver o filme O Destino de Uma Nação (Darkest Hour, 2017, direção Joe Wright). Gary Oldman ganhou Oscar pelo desempenho brilhante como primeiro-ministro britânico. Também é forte ver Dunquerque (Dunkirk, 2017, Christopher Nolan). Acompanhe bons filmes e lembre-se de que o objetivo dos roteiristas e do diretor não é preparar alunos para a prova do Enem. Obras cinematográficas são sobre história, jamais históricas em si. O filme mira na narrativa cativante e nos grandes prêmios e o júri de Oscar nunca foi dominado por historiadores. Se houvesse essa reviravolta, o cinema viraria uma boa fonte historiográfica e o público correria das salas. Dizendo de outra forma: todo filme é histórico, pois sempre mostra como um determinado momento construiu a memória do passado. Nenhum filme é “fiel” ao que ocorreu. Os cuidados de verossimilhança dos grandes estúdios servem para conferir maior apelo comercial ao produto. Discutir se um filme é baseado em fatos reais é puro preciosismo. O principal argumento é o mercado e a cabeça dos produtores. Cinema pode ser arte e sempre é parte de uma indústria cultural. É preciso manter a esperança e a lucidez.

Governar a cavalo - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 03/06

O problema é que um dia o animal tem de voltar para a estrebaria


Os estertores da ditadura militar produziram uma figura de pé de página na história do Brasil: o general Newton Cruz. Enquanto chefe do SNI sob o presidente Figueiredo, só as trevas o conheciam. Mas, em 1983, quando Figueiredo o promoveu a comandante militar do Planalto, seu estilo saiu à luz do dia.

Newton Cruz foi pioneiro em mandar repórteres calar a boca, partiu para estrangular um deles numa coletiva e, de rebenque e capacete, comandava a cavalo as operações antiprotesto em Brasília, chicoteando os carros e jogando o pobre animal contra as pessoas na calçada.

É um perigo quando autoridades se prestam a tais fanfarronices. O povo tende a identificá-los com sua montaria, vendo neles um único quadrúpede. Newton Cruz nunca se livrou dessa imagem, nem mesmo quando foi acusado de envolvimento em episódios turvos da ditadura, um deles a bomba no Riocentro, em 1981. Passou à posteridade aos relinchos.

Jair Bolsonaro saiu a cavalo pela Esplanada dos Ministérios neste domingo, saudando seus cada vez mais reduzidos apoiadores. Fez isso em mangas de camisa e com as fraldas para fora, como sói —afinal, é apenas um ex-tenente que foi promovido a capitão ao ser mandado embora do Exército. Nunca um suboficial lhe prestou continência. O homem a cavalo imagina-se uma potência, por ver os outros de cima para baixo. Bolsonaro, desmontado, ao rés do chão e acuado pela Justiça, já não está com essa potência toda.

E começa a tornar possível o que até há pouco parecia impensável: unir contra si as forças democráticas do Brasil, de várias cores políticas. Na ditadura foi assim —custou, mas chegou-se a um ponto em que ela já não interessava a ninguém, nem aos militares. A Bolsonaro só restará uma minoria falangista. Até o centrão, que ele pensou ter comprado, lhe dará uma banana.

O problema de governar a cavalo é que um dia ele tem de voltar para a estrebaria.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues

A casa sem a rua - ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 03/06

O nosso jamais politizado viés aristocrático é base de um enraizado fascismo de direita e de esquerda


A pandemia forçou o não “sair de casa” e o “isolamento social”. Do ponto de vista medicinal e epidêmico, não há o que discutir. Mas há muito o que dizer sobre o que isso significa, porque ficar sozinho é muito mais rotineiro em sociedades individualistas e relativamente igualitárias do que nos países onde a casa é um espaço que vai além da família fundada por um casal e fundada no amor romântico. Pois, entre nós, a casa contém pessoas enlaçadas por carne e sangue, congregando muitas gerações, além de uma heterogeneidade fundada na escravidão. Na senzala, conforme a incômoda demonstração-denúncia de Gilberto Freyre. Do escravismo, fomos mais ou menos para a criadagem e hoje o isolamento tortura as “donas de casa” mais ou menos feministas socialistas, porque ela suprime essas pós-escravas, chamadas de “empregas domésticas”, que fazem tudo para seus patrões, perpetuando gloriosa e inconscientemente o nosso jamais politizado viés aristocrático. Base de um enraizado fascismo de direita e de esquerda.

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Estamos confinados em casa e, mais que isso, a rua entrou casa adentro, pois o vírus é abusado e injusto nas suas escolhas. É uma burrice óbvia dizer que ele atinge os mais pobres, já que eles sempre foram oprimidos pela nossa superior presença de “brancos que se lavam” e de intelectuais politicamente supercorretos, cujas reuniões em prol da liberdade são regadas a bom vinho porque ninguém é de ferro.

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Para um antropologista das antigas como eu, “sair de casa” tem muitos sentidos. Chamo atenção para o fato de que sair da morada de modo utilitário como faz um americano ou burguês europeu ao fazer uma compra é muito diferente do brasileiro. Para nós, o “sair de casa” tem tudo a ver com a necessidade de se livrar do autoritarismo familiar. Ademais, muitos saem descumprindo o bom senso médico porque residem em cabanas miseráveis e sufocantes, as quais fazem com que as ruas, feiras e praças sejam inexprimivelmente atrativas.

Quando somos supercontrolados em casa, cujas hierarquias inconscientes (como mostrei no meu livro A Casa & Rua, publicado há três décadas) são as mais absolutas e o poder de um lacaniano pai jamais é posto em causa sem alto risco, o “ir para a rua” é um ato de liberdade. Pois é na rua e com os “meninos e meninas de rua” que podemos falar e trocar experiências proibidas em casa. Esse foi o meu caso.

Não que minha casa fosse ruim. Mas eu precisava, como todo ser humano não imbecil, de sair da família e da casa para poder comparar e discutir certos assuntos importantes, proibidos no lar. A sexualidade, por exemplo; a religião e, sobretudo, a dimensão básica do trabalho e da política, dois temas profundamente ligados, mas proibidos ou inibidos em casa. Por muitos motivos. O principal sendo o da profunda injustiça, havida como natural, de ter nascido numa casa na qual os negros eram subordinados e, na rua, eu aprendia que seria possível discutir um sistema mais justo e mais equitativo.

Como – eis o ponto! – discutir igualdade e justiça social, quando na casa se vive um regime de plena injustiça e brutal desigualdade? Um dado chocante: não saber o nome completo das nossas empregadas...

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Vejam o problema: se a rua nos tirava de casa, onde estávamos literalmente “trancados”, ela nos punha em contato com algo novo e até hoje problemático no Brasil. Refiro-me à impessoalidade e à eventualidade de encontros e contextos regidos por igualdade (como a fila, alvo de um outro livro, Fila & Democracia, escrito em colaboração com Alberto Junqueira), e escolhas.

Conforme escrevi muitas vezes, os laços amorosos e afetivos da casa (que ampliam o desequilíbrio de um presidente eleito com o dever de, no mínimo, discipliná-los) são o esqueleto das aristocracias nas quais as posições de poder eram ocupadas automaticamente por descendência. Os filhos do rei seriam reis! Esse era o tal “direito divino” que as revoluções liquidaram.

Ora, os princípios que governam os laços de família são o exato oposto dos elos que singularizam os relacionamentos da rua. Os do lar, por serem dados e não escolhidos, são hierarquizados e “aristocráticos” – mesclados de corporeidade e baseados em idade e gênero. Já os da rua, da praia, escola e da praça – os “de fora” – são impessoais e igualitários. Assentados em preferências e escolhas. São, reitero o que tenho escrito, individualizados e formam a base da tal democracia tão falada e tão pouco entendida nesse nosso obscuro Brasil.

Quando vivemos, portanto, a casa sem o seu cósmico contraponto, a rua; quando não chegamos ainda a perceber que casa e rua devem operar ajustando os seus princípios básicos, sofremos as escolhas e angústias de um igualitarismo existencial forçado. Haja, como diz uma querida amiga, pratos para lavar...

O triunfo dos incapazes - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

A MÃO VISIVEL


A valorização mais recente do dólar reflete a incapacidade do governo para superar as crises sanitária e econômica em função de sua manifesta preferência pelo conflito aberto e inútil com as demais forças políticas. A piora do risco-país nas últimas semanas reflete primordialmente a deterioração doméstica.

Hoje quero voltar a um assunto que explorei de raspão há pouco, a saber, os determinantes do comportamento recente da moeda, em particular os responsáveis pela forte depreciação observada desde o final do ano passado.

Para quem não se lembra, apresentei o seguinte gráfico, decompondo a variação da paridade real-dólar em quatro determinantes: (a) o risco-país, medido pelo CDS de 5 anos (o prêmio para se proteger de um calote brasileiro nesse horizonte temporal); (b) a força global do dólar, aferida pelo índice DXY; (c) preços de commodities, capturados pelo índice CRB; e (d) a diferença entra a taxa de juros no Brasil e nos EUA (no caso, a taxa para um ano).



Fonte: Autor

O gráfico sugere que a principal força impulsionando o dólar contra o real até agora no ano é a elevação do risco-país, que, de fato, se elevou de algo como 1% ao ano na média de fevereiro para perto de 2,5% ao ano em março e 3,1% ao ano em abril. Este valor é consistente com uma probabilidade de calote ao redor de 5%, supondo que seja possível receber 40 centavos para cada dólar de dívida soberana brasileira.

Boa parte deste movimento, é bem verdade, reflete a fuga global de ativos mais arriscados, cuja manifestação mais óbvia foi a elevação generalizada de prêmios de risco. O termômetro usado no caso dos países emergentes em geral é o EMBI (Emerging Markets Bond Index), calculado pelo JP Morgan, que subiu de 3,1% em fevereiro para 5,5% em abril (médias mensais), captando precisamente a relutância dos investidores internacionais em manter papéis de mercados emergentes em carteira, a menos que compensados por rendimento mais elevado.

Até cerca de um mês atrás era possível atribuir praticamente toda a elevação de risco-Brasil (logo, a valorização do dólar) ao movimento global. A diferença ente o EMBI brasileiro e o do conjunto de países emergentes (exceto o próprio Brasil, bem como a Argentina) pouco se moveu do final de fevereiro ao final de abril, conforme ilustrado pelo gráfico abaixo, oscilando ao redor de -0,9% ao ano (ou seja, o Brasil percebido como um pouco melhor do que a média).




Fonte: Autor (com dados do JP Morgan)


É visível, todavia, a piora relativa do país no período mais recente: hoje o EMBI Brasil é virtualmente idêntico à média dos emergentes, exceto Brasil e Argentina. Dito de outra forma, de um mês para cá a elevação do risco-país se deve principalmente a fatores nossos, não mais à redução do apetite global por ativos arriscados.

Aqui se inserem nossas incapacidades. Em primeiro lugar a questão sanitária, já que o Brasil é agora percebido como o principal foco da pandemia, devidamente condecorado com a proibição de desembarque nos EUA. Com tempo para se preparar e conhecendo exemplos de programas relativamente bem-sucedidos para lidar com a infecção, o país conseguiu perder todas as chances que teve para atacar o problema, talvez ainda à espera dos 40 milhões de testes prometidos pelo ministro Paulo Guedes, que devem se materializar apenas após a venda de R$ 1 trilhão de imóveis do governo.

Da mesma forma não ajudam os sinais da deterioração constante das contas públicas, nem tanto pelo forte aumento dos gastos que deve ocorrer em 2020 em resposta aos desafios da pandemia, mas sim por indicações de que não será possível retomar sequer a trajetória de contenção gradual do déficit que vigorou de 2017 a 2019. Pelo contrário, a ação descoordenada do governo no Congresso indica que, no melhor dos casos, precisaremos de 3 a 5 anos a mais para colocar a casa em ordem do que orginalmente esperado, e isso se chegarmos a tanto.

Por fim, mas certamente não menos importante, o aprofundamento e a perenização da crise política também contribuem para a piora da percepção de risco. O governo, quando não se autocanibaliza, compra brigas absolutamente gratuitas com os demais poderes, com governadores, com a imprensa e com outros países, sem esgotar, obviamente, a lista de conflitos.

As chances, portanto, de lidar a contento, seja com a crise sanitária, seja com a crise econômica, se reduzem a cada dia, não apenas pelo atrito com as forças políticas, mas principalmente porque o foco da administração não está na solução dos nossos problemas.

Se restava alguma dúvida a este respeito, a transcrição da inacreditável reunião de 22/abril deve tê-la eliminado. Em meio à epidemia e à queda sem precedentes da atividade econômica e do emprego, o presidente da República preocupa-se com suas “hemorroidas”, o ministro da Educação clama pela prisão de dos ministros do STF e o da Economia gaba-se de ter lido A Teoria Geral três vezes no original em inglês antes de partir para o doutorado.

Podemos, portanto, botar na conta do governo federal a pernada mais recente do dólar. Sem um adulto sequer na sala, o clima de 5ª série não permitirá a superação da crise.

Dívida pública em risco? - FÁBIO ALVES

ESTADÃO - 03/06

País está sendo forçado a ter uma expansão fiscal inédita para lidar com a pandemia



Com as propostas de tornar permanente gastos extras para combater o impacto da pandemia do coronavírus – como a extensão do pagamento do benefício emergencial de R$ 600 – e com a perspectiva de uma queda mais profunda do PIB neste ano, um assunto se tornou recorrente entre analistas e investidores nas últimas duas semanas: o financiamento da dívida pública brasileira.

O temor é de que, com o crescente risco de explosão da trajetória da dívida pública e a menor perspectiva de aprovação de reformas estruturais necessárias, como a administrativa e a tributária, o Tesouro Nacional tenha dificuldades para conseguir rolar a sua dívida em meio a uma crise de confiança de investidores e num ambiente de taxas de juros em níveis historicamente baixos para remunerar os riscos adiante. Sem falar na escalada da crise política, que pode tornar mais difícil a recuperação da economia e também a adoção de um ajuste fiscal urgente a partir de 2021.

O Brasil, como outros países do mundo, está sendo forçado a ter uma expansão fiscal inédita para lidar com a pandemia. Muitos analistas estimam que o déficit primário do governo deva ultrapassar R$ 700 bilhões em 2020, o que, combinado com o pagamento de juros da dívida pública, resultaria num déficit nominal (ou necessidade total de financiamento do setor público) para além de 14%. Há projeções de que a dívida bruta passará de 75,8% do PIB ao fim de 2019 para mais de 100% do PIB neste ano.

Já o déficit nominal ficou em R$ 249 bilhões em 2019. Para 2020, a Instituição Fiscal Independente (IFI) estima um déficit primário de R$ 711,4 bilhões, com as necessidades de financiamento totais do governo superando R$ 1 trilhão. Mas o diretor executivo da IFI, Felipe Salto, alerta que a sua projeção de PIB deve ser revisada novamente para baixo, o que, combinada com a expectativa de novas despesas – com premissa sobre pagamentos adicionais do benefício emergencial –, deve resultar em déficit primário e, portanto, em necessidades de financiamento totais bem maiores.

Assim, vai aumentar muito o volume de dívida que o Tesouro terá de emitir para financiar esses gastos. Mas haverá demanda suficiente dos investidores para absorver tamanho aumento de emissão de títulos públicos? Nos últimos meses, tem ocorrido uma diversificação na alocação de recursos por parte dos investidores, com uma migração da renda fixa para a Bolsa e para ativos no exterior. A pergunta recorrente no mercado é: será que o Tesouro vai conseguir rolar a sua dívida com os juros em níveis tão baixos? Já estamos à beira do abismo?

De fato, tem havido um encurtamento no prazo médio da dívida pública pelo Tesouro, um termômetro de estresse. A parcela da dívida pública a vencer em 12 meses passou de 18,68% em dezembro de 2019 para 21,54% em abril deste ano. Espera-se também uma piora no perfil da dívida, com aumento da parcela atrelada à taxa Selic, o que dificulta sua gestão.

A situação poderá piorar se os investidores duvidarem da disposição do governo, passada a necessidade de aprovar despesas extras para combater a pandemia, em voltar aos trilhos da política fiscal em 2021, fazendo ajustes e mantendo intacto o teto de gastos, uma âncora da confiança no mercado.

Ou se o governo resolver aumentar muito mais a fatura com gastos extras neste ano e tornando permanente parte deles. Ou ainda se as autoridades federais, estaduais e municipais fracassarem em controlar a disseminação do coronavírus, exigindo a extensão de quarentenas ou a adoção de lockdown, o que afetará ainda mais a economia, reduzindo a arrecadação de tributos.

Por enquanto, o que tem sustentado a demanda por títulos públicos, permitindo a rolagem da dívida, é que a inflação brasileira está muito baixa, com a projeção de analistas apontando para 1,55% em 2020 e 3,10% em 2021. O problema é que, se a expectativa de inflação começar a subir rapidamente por um medo de uma bomba fiscal mais adiante, a remuneração (juros) terá de aumentar muito. E, mesmo assim, a demanda por títulos públicos poderá não estar garantida.

Um sinal inequívoco do governo e do Congresso de que haverá ajuste fiscal a partir de 2021 é a única saída para dissipar os temores com a rolagem da dívida pública.

COLUNISTA DO BROADCAST

O ano começa agora - HELIO BELTRÃO

FOLHA DE SP - 03/06

Até o fim de 2020, você deixará de ser servo do Estado e trabalhará para si


Durante os primeiros cinco meses do ano você trabalhou exclusivamente para pagar impostos e sustentar o Estado. De agora até o fim do ano, deixará de ser servo e trabalhará para si. Por isso comemoramos agora o Dia da Liberdade de Impostos, há 12 anos organizado em São Paulo pelo Instituto Mises Brasil e Movimento Endireita Brasil (mais recentemente, também pelo Instituto de Formação de Líderes).

Os organizadores conduzem campanha educativa, financiando os impostos devidos para que um posto na capital venda gasolina sem impostos ao público. Os impostos diretos correspondem a obscenos 62% do preço de bomba. Portanto, no dia da campanha, o preço é reduzido a R$ 1,52 por litro (contra R$ 4,00 normalmente).

Os remanescentes 38% do preço normal de bomba precisam remunerar o posto, a distribuidora, o refino, a exploração do poço em águas profundas e toda a estrutura administrativa e de vendas associada de toda a cadeia, inclusive da Petrobras. Adicionalmente precisam cobrir outros impostos indiretos e taxas não incluídos nos 62%, tais como IPTU dos imóveis, IPVA dos veículos utilizados na distribuição e outros.

Muitos acreditam que não pagam impostos porque não enviam um cheque para o Fisco. Ignoram os impostos embutidos em cada compra, do pãozinho à manicure de bairro, ao chope. Por sinal você poderia comprar três chopes para cada um desembolsado, não fossem os impostos.

Outros não se dão conta que seu salário é desavergonhadamente encolhido por deduções de impostos e contribuições retidas pelo empregador por conta e ordem do governo.

Impostos sempre existiram, mas até a era moderna o sentimento dos súditos era de rechaço veemente ao esbulho de sua propriedade. Os tributos eram temidos e sempre resistidos na medida do possível.

Há 4.400 anos, na cidade-estado de Lagash, na Mesopotâmia, Urukagina liderou um movimento contra o excesso de impostos. O primeiro registro da palavra "liberdade" ("amagi") ocorreu por conta de Urukagina e sua oposição aos tributos.

Já no século 16, em resposta aos monarcas absolutistas, a doutrina do tiranicídio ganhou espaço. Na obra "De Rege et Regis Institutione" (1599), o jesuíta e escolástico tardio espanhol Juan de Mariana defendeu o direito de se assassinar tiranos que aumentassem impostos sem o consentimento do povo. Mariana antecipou John Locke em sua ideia de consentimento dos governados.

Os Estados Unidos surgiram em uma revolução por conta de selos de cartórios, e Tiradentes foi esquartejado pelo governo por conta das objeções ao quinto dos infernos.

A despeito dos espertos truques para camuflar os impostos, é curiosa a mudança de mentalidade que ocorreu no século passado. Não se discute mais a moralidade do ato, e a taxação legitimada por decisão de 600 indivíduos em Brasília é bovinamente racionalizada pelos súditos.

Em essência, a taxação é moralmente equivalente ao roubo, pois envolve subtração da propriedade de terceiro sem seu consentimento. É ato imoral caso conduzido pelo cidadão, mas legitimado ao Estado.

Os governantes do século 18 ao menos eram mais sinceros quanto à natureza dos impostos. O ministro das finanças de Luís 16, Jean-Baptiste Colbert, disse que "a arte da tributação consiste em depenar o ganso de modo a obter o máximo de penas com o mínimo de grasnidos". Povo que não grasna merece ter o fígado servido em bandeja de prata aos seus senhores.

P.S.: Este ano deixamos de realizar o evento físico em respeito à saúde das pessoas.

Helio Beltrão
Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil

Reformas negligenciadas - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 03/06

Apesar do discurso eleitoral de reformas do Estado, a pauta foi esquecida pelo governo de Jair Bolsonaro


Na campanha de 2018, Jair Bolsonaro reconheceu abertamente sua ignorância sobre economia. A promessa era de que, se eleito, a condução da política econômica do seu governo estaria inteiramente nas mãos de Paulo Guedes, que realizaria um amplo programa de reformas do Estado e da economia. A campanha do então candidato do PSL não apresentou um mínimo programa de governo, com metas e propostas, mas o fato é que, para chegar ao Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro prometeu um governo reformista. Era um elemento importante para atrair o eleitor antipetista; afinal, ao longo dos 13 anos em que esteve no governo federal, o PT foi acintosamente omisso em dar continuidade às reformas estruturais iniciadas no governo de Fernando Henrique.

No entanto, apesar do discurso eleitoral reformista, a pauta das reformas foi esquecida pelo governo de Jair Bolsonaro. No segundo semestre de 2019, o Congresso aprovou a reforma da Previdência, mas depois disso não houve nenhum avanço significativo. No final do ano, a equipe econômica ainda apresentou o Plano Mais Brasil, com as PECs do pacto federativo, emergencial e dos fundos públicos. Esse ímpeto reformista se limitou à apresentação das propostas, aliás, de eficácia discutível.

Além disso, duas das principais reformas, a tributária e a administrativa, não foram sequer apresentadas ao Congresso, apesar das promessas da equipe econômica. No caso da reforma administrativa, o presidente Bolsonaro foi claro. Não faria nenhum movimento que pudesse causar-lhe dificuldades eleitorais, em exata imitação do jeito lulopetista de governar.

Outro exemplo de indiferença com as reformas foram as privatizações. Em vários momentos, a equipe econômica reafirmou o compromisso de levar adiante um audacioso plano de venda das empresas estatais. Haveria uma ampla e imediata privatização em nome da eficiência, do livre mercado e da diminuição do tamanho do Estado. Tal promessa não foi cumprida e não se viu nenhum indício de que Jair Bolsonaro esteja preocupado com o tema. Conforme se pôde constatar nas imagens da reunião ministerial do dia 22 de abril, o presidente da República está mais preocupado com quem vai mandar na Polícia Federal do Rio de Janeiro e com a distribuição de armas à população.

Assunto fundamental para a modernização da economia e o aumento da produtividade, a abertura comercial não só foi deixada de lado, mas é aviltada impunemente pela entourage do governo. De forma completamente estúpida, integrantes do primeiro escalão do governo e familiares de Jair Bolsonaro insistem em insultar a China, maior parceiro comercial do País.

A pandemia da covid-19 não é desculpa para negligenciar as reformas estruturais. Em primeiro lugar, muito antes de se ter no País o primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus, o presidente Bolsonaro já protelava a agenda reformista. Em segundo, a pandemia não foi óbice para que ele levasse adiante assuntos completamente estranhos à questão sanitária, como a mudança, sem nenhuma razão plausível, do diretor da Polícia Federal Maurício Valeixo. Se o governo pode cuidar de interesses familiares e de amigos, não há motivo para não se dedicar às reformas, que interessam a todos os brasileiros.

Além disso, a crise causada pela covid-19 reforça a necessidade e a urgência das reformas. Se antes da pandemia as reformas já eram necessárias para o desenvolvimento social e econômico do País, com os efeitos devastadores do novo coronavírus sobre produção, emprego, renda e consumo, elas se tornaram ainda mais decisivas.

Isso é especialmente grave em relação às contas públicas. Em função da pandemia, foi necessário realizar muitos gastos emergenciais. Era - e continua sendo - preciso salvar vidas, e o ajuste fiscal deixou de ser momentaneamente uma prioridade. Mas o maior desequilíbrio das contas públicas gerado pela pandemia reforça a necessidade de conter a pressão por novos gastos públicos permanentes - e isso só será possível com as reformas estruturais.

Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro participa, montado a cavalo, de manifestação contra o Supremo.

Comércio externo após a pandemia - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 03/06

Pandemia elevará a disputa no comércio internacional. Brasil pode ser afetado pela piora da imagem e os atritos com os chineses


A disputa por mercados será mais intensa no comércio externo após a pandemia, e o Brasil está mal posicionado nesse novo cenário. O país depende da China para manter as exportações de commodities, mas abriu várias frentes de atritos com os chineses. A instabilidade política aumentou a oscilação do dólar, o que dificulta a venda de manufaturados. A desastrosa gestão da crise na saúde afetou a imagem do país, isso pode prejudicar o comércio e certamente reduzirá a intenção de investimentos.

A forte queda da produção industrial em abril cria o ambiente para os pedidos de sempre da indústria. O erro a não cometer é elevar o protecionismo e os subsídios para o setor. Mas é exatamente isso que a indústria já está pedindo.

Até o momento, as exportações brasileiras de produtos industrializados despencaram 23,2% de janeiro a maio, mas a venda de produtos básicos cresceu 8,8% e garantiu o nosso saldo comercial. A OMC estima que o comércio mundial vai cair 32% este ano em volume, mas o Brasil, em maio, conseguiu aumentar as exportações em 2,8% em toneladas. Segundo a pesquisadora associada do Ibre/FGV Lia Valls, isso acontece pelos embarques principalmente de soja e de outros produtos agropecuários para a China.

— O Brasil está mais dependente da China. Em abril, os chineses foram 37% das nossas exportações. Se eles conseguirem implementar um programa grande de testagem (do coronavírus), podem ampliar obras em infraestrutura, o que nos ajuda também com o minério de ferro, além das commodities agrícolas. Não faz sentido brigar com eles — explicou Valls. Em maio, a exportação para a China chegou a 40%.

O presidente da AEB, José Augusto de Castro, diz que o setor industrial mundial vive uma crise intensa pela retração da demanda provocada pelo coronavírus. Isso significa que haverá produtos manufaturados sobrando nas principais economias, e o Brasil terá extrema dificuldade de abrir novos mercados. A alta do dólar, que bateu em R$ 5,90 e poderia aumentar a competitividade, se transformou, na verdade, em instabilidade. O câmbio já voltou para a casa de R$ 5,20.

— Enquanto não estabilizar o dólar, não adianta para o exportador. Além disso, vejo com muita preocupação o combate do Brasil à pandemia, porque afeta a nossa imagem e, em ambiente de maior competição, isso pode significar a perda de um mercado. Com a Argentina, há pouco diálogo entre os dois governos. É cada um por si. E eles são nossos principais compradores de produtos industriais — diz Castro.

O Ministério das Relações Exteriores vive em um universo paralelo. No setor empresarial, ninguém acredita que de lá sairão soluções que abram portas para os produtos brasileiros. Já na Secretaria de Comércio Exterior, saiu Marcos Troyjo, para o banco do Brics, e entrou Roberto Fendt, que foi secretário-executivo do Conselho Empresarial Brasil-China. Por um lado, ele pode melhorar a relação com os chineses, por outro, haverá troca de cadeiras em plena crise.

O consultor Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior, teme que esteja havendo antecipação de compra de produtos agropecuários brasileiros. Ele diz que em abril aumentou muito a compra de frango do Oriente Médio, por temor de que a pandemia provoque paralisação em fábricas, como aconteceu nos Estados Unidos. Ele também avalia que é um risco para o comércio externo se o Brasil ficar com a imagem de estar sendo displicente no combate à doença.

— Por enquanto, as commodities estão indo bem, mas há muitos países fazendo estoques de alimentos. Carne para o Oriente Médio disparou nos últimos dois meses, muito acima da média de consumo daquela região. Eles têm medo de que em algum momento o Brasil não consiga produzir — disse.

Em abril, mês em que a pandemia acelerou no Brasil, a participação dos manufaturados nas nossas exportações caiu para 22%, a mais baixa desde os anos 70. As exportações totais para Argentina despencaram 51% em maio e para os Estados Unidos recuaram 43%. Já para a China houve crescimento de 35%. Se o Brasil não conseguir entender as alterações no xadrez do comércio internacional, terá ainda mais dificuldade para retomar o crescimento.

O risco neste momento é recriar as velhas fórmulas de subsídio e proteção à indústria. Esse caminho a gente conhece. A conta fica alta para o contribuinte e para o consumidor.

Pessimismo paralisante da sociedade civil se rompeu - MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

O Estado de S. Paulo - 03/06


As ruas não são mais território exclusivo dos apoiadores do presidente. As manifestações do último domingo, puxadas por torcidas organizadas de futebol, a começar da Gaviões da Fiel, inauguraram uma nova fase na vida política nacional. Representam a ampliação da resistência ao bolsonarismo e do isolamento do presidente, que se vê cada vez mais enfurnado em Brasília.

As manifestações não tiveram densidade de massa. O isolamento social impediu. A batalha é desigual, porque os negacionistas não conhecem barreiras sanitárias e contam com o apoio simbólico do governo, recursos logísticos e mensagens do gabinete do ódio.

Paralelamente, passaram a circular manifestos endossados por centenas de milhares de cidadãos, intelectuais e artistas. Diferentes setores da sociedade civil somam sua voz à dos ministros do STF, os grandes jornais estampam diariamente sua indignação, surgem movimentos inéditos de aproximação entre partidos até há pouco separados por divergências complicadas. Tudo mostra que o diálogo e a reunião dos democratas parecem ter encontrado um desaguadouro promissor.

O quadro ainda é impreciso. Não há nele uma via de mão única. O bolsonarismo continua vivo. Bem ou mal, ocupa o poder federal, onde acamparam segmentos das Forças Armadas que lhe têm fornecido respaldo e batem continência para o capitão. O governo tem buscado erguer no Congresso Nacional uma base de sustentação, preocupado com sua sobrevivência. O apetite guloso do Centrão, com seus próceres desprovidos de maior dignidade ou respeito constitucional, alimenta o governo mas também o impede de funcionar.

Há muito combustível para a expansão do protesto cívico e o reagrupamento dos democratas.

Começou a se romper o pessimismo paralisante em que a sociedade civil se encontrava. O cerco ao autoritarismo avança. Não é um trabalho simples. Ele requer combatividade e paciência, metas claras e apoios, ligação entre a defesa da vida, a recuperação da economia e o reforço da democracia.

*É professor titular de teoria política da Unesp

“Bolsonaro é instrumento dos militares” - CRISTIAN KLEIN

Valor Econômico - 03/06

Para professor da UFRJ, especialista em militarismo, Forças Armadas não representam mais parte moderna da sociedade para arrogarem papel moderador


RIO - Especialista na relação entre a caserna e a política brasileira, o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Eduardo Costa Pinto, anota na ponta do lápis os principais pontos da escalada do militarismo nos últimos anos e afirma ver com cada vez mais preocupação a possibilidade de tentativa de autogolpe pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Lembra que o guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, já proferia palestras em quartéis desde os anos 1990, reforçando um caldo ideológico que hoje mobiliza o discurso radical de generais e oficiais de diferentes patentes espalhados por toda a administração federal.

Em sua opinião, o avanço começou já na campanha presidencial, quando os militares encamparam a candidatura Bolsonaro de modo não pessoal, mas “bem institucionalizado”. Para o professor, a intervenção militar já existe na medida em que o governo é ocupado por quase 3 mil militares da ativa e da reserva, um contingente maior, aponta, do que na época do regime militar. “Bolsonaro, esse é o ponto, é instrumento dos militares. Os militares voltaram ao poder pela eleição”, diz. Para o especialista, hoje não haveria muito sentido em se falar em golpe pois os militares já estão no poder. “Mas o que tem acontecido, de forma muito perigosa, é que eles estão balançando as armas a todo momento para evitar que um pedido de impeachment prospere. Já vivemos uma democracia restrita”, afirma.

Para Costa Pinto, as instituições brasileiras continuam de pé, mas “estão em frangalhos” e não conseguem mais realizar seu papel de reduzir as incertezas. Por isso, o país vive no curto prazo “há quatro ou cinco anos”.

O professor concorda com a tese de que, no passado, durante a República Velha e o movimento tenentista, o militarismo no Brasil, como em outros países, até poderia ser explicado por terem sido as Forças Armadas uma “parte moderna” da sociedade que tomou para si o papel de vanguarda no processo de urbanização e de desenvolvimento. Mas que isso não se aplica ou se justifica mais:

“Não dá para dizer que é o moderno. É o contrário. Nunca foi tão atrasada a cabeça do militar hoje. É como se ainda vivessem na Guerra Fria”.

Segundo o especialista, a adesão a ideias do conservadorismo norte-americano dos anos 1980 tornou as Forças Armadas uma instituição aderente a teorias conspiratórias, como a do marxismo cultural, ou de vertente preconceituosa, como o racismo. “Isso está em todas as falas do [ex-comandante do Exército, general] Villas Bôas sobre o politicamente correto, por exemplo num vídeo dele de 2018”, afirma.

Costa Pinto afirma que, desde a saída do ex-ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo), em junho, não se pode mais falar da disputa entre duas alas para influenciar o presidente: uma militar e racional e outra ideológica, liderada pelos filhos Carlos e Eduardo Bolsonaro, sob inspiração do guru da família, que mora na Virgínia, nos Estados Unidos.

A demissão do general, argumenta, representou a vitória da ala olavista e do núcleo mais radical do governo. Isso, porém, não representou a derrota dos militares em si. Reforçou o que chama de herdeiros do general Sylvio Frota, líder da corrente linha-dura durante a ditadura militar.

É uma turma, diz o professor, que foi influenciada, depois da redemocratização, pelo general Sergio Augusto Avellar Coutinho, morto em 2011. Embora sem muito destaque à época, o pensador militar difundiu nas Forças Armadas, com ligeiras alterações, o corpo de ideias de extrema-direita associado hoje a Olavo de Carvalho, como a condenação ao politicamente correto.

“É o Avellar Coutinho quem traz a linguagem do Olavo para a linguagem militar”, afirma Costa Pinto, lembrando que o hoje guru do bolsonarismo já disseminava na caserna, há quase 30 anos, as ideias, não originais, mas tiradas do ultraconservadorismo americano, como o conceito de guerra de quarta geração, de William Lind.

Após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, Avellar Coutinho afirmava em palestras e livros que o comunismo não havia acabado. Teria apenas mudado de estratégia, buscando uma hegemonia cultural gramsciana no campo dos valores. Por meio de uma suposta guerra cultural, os comunistas estariam atacando não mais a propriedade privada mas subvertendo os valores da sociedade e da família tradicional, os tornando senso comum.

Com isso, os militares passaram a enxergar e a se preocupar mais com um alegado inimigo interno do que uma com uma hostilidade da geopolítica externa. Apesar disso, afirma o especialista, as Forças Armadas nunca quiseram, a partir do fim dos anos 1980, voltar ao poder, como na ditadura, em torno de um projeto claro. “Tanto que não estão preparados”, aponta. Mas a eleição de um ex-capitão à Presidência os trouxe novamente à cena. “Os quartéis se politizaram”, lamenta.

Para Costa Pinto, a interferência dos militares no ambiente político não tem nada a ver com a ocupação do espaço como uma instituição mediadora de conflitos entre Poderes, partidos ou mesmo de defesa de bandeiras. Na questão da corrupção, por exemplo, “na hora H”, diz, ficaram ao lado do presidente e não do lavajatismo e do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. “Não tem nada de poder moderador”, afirma.

O professor vê no retorno dos militares a busca pelo atendimento de interesses corporativos. Haveria um ressentimento por terem sido responsabilizados sozinhos pela ditadura, que também contou com apoio do setor civil, e pelo fim do tratamento especial à categoria após a redemocratização.

Com Bolsonaro, aponta, os militares tiveram ganhos mesmo em tempo de acentuada crise fiscal, e puderam voltar a dirigir seus interesses como reajustes salariais, aumento do orçamento para projetos das Forças Armadas e proteção contra a reforma da Previdência. As demandas corporativas, acrescenta, foram travestidas de interesse geral da nação, como a suposta defesa da moralidade pública e da bandeira anticorrupção, embora o próprio presidente tente se blindar de investigações que atingem o governo e sua família.

Para Costa Pinto, os militares prestaram seu apoio a Bolsonaro desde a campanha e a cúpula das Forças Armadas achou que poderia controlá-lo, entre eles Santos Cruz, general cuja carreira desfruta de “respeito enorme” mas que “foi enxotado” do governo.

O especialista afirma que o Alto Comando não compartilha do bolsonarismo raiz e se preocupa com a quebra de hierarquia. Observa que o comandante do Exército, Edson Pujol, está “completamente quieto” pois não confia no presidente, embora ideologicamente pense de forma semelhante aos demais oficiais da cúpula. “Bolsonaro e os militares são peças da mesma engrenagem”, afirma.

A atitude discreta de Pujol contrasta com a do antecessor no cargo, Villas Bôas, a quem Bolsonaro já atribuiu responsabilidade por ter chegado ao Planalto. O ativismo de Villas Bôas na cena política tornou-se desabrido já durante a pré-campanha presidencial. Em abril de 2018, o general postou uma mensagem pelo Twitter em que buscou intimidar, como ele mesmo reconheceu depois, ministros do Supremo que julgariam o habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Mesmo preso, Lula liderava a corrida ao Planalto com 31% das preferências, contra 15% de Bolsonaro. “Muitos acharam bonito aquele tuíte de véspera porque era contra um inimigo político, mas agora estão vendo o risco. Estamos caminhando para uma hecatombe gigantesca. Essas ameaças geram um profundo desequilíbrio no ‘checks and balances’ de uma democracia”, afirma o professor, para quem “se abriram muitas caixas de Pandora” nos últimos anos no Brasil, inclusive no Judiciário, com a operação Lava-Jato. “Foram vários ativismos, mas o dos militares tem as armas”, diz.

Segundo Costa Pinto, “eles, no momento, estariam blefando” mas a reação natural da sociedade civil é: “vamos pagar para ver?”. Por outro lado, o professor questiona se os militares também estariam dispostos a arcar com os pesados custos de uma intervenção, depois de terem trabalhado tanto nas últimas décadas na recuperação da imagem das Forças Armadas, desde o fim da ditadura. “Pode ter o impacto da Guerra das Malvinas para os militares na Argentina.

Podem sair muito piores do que foi em 1985, pois no regime de 1964 ainda se alega ter havido um projeto de país, desenvolvimentista, o que não acontece agora”, diz.

As notícias reais que preocupam o governo - FERNANDO EXMAN

Valor Econômico - 03/06

Bolsonaro faz raro gesto para evitar briga entre os polos


Dois eventos distintos esperados - e temidos - por autoridades do governo Jair Bolsonaro ocorreram nos últimos dias. Por ordem cronológica, e não necessariamente de preocupação: o avanço do inquérito das “fake news” e o início de manifestações populares contra o presidente da República. A cúpula do governo sabe de onde surgiram esses riscos, mas ainda não tem a menor ideia de quando eles irão cessar e aonde irão chegar.

O inquérito das “fake news” nasceu em meados de março do ano passado. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, abriu uma sessão plenária da Corte já anunciando sua decisão. Uma nova investigação englobaria, além da disseminação de notícias falsas, ameaças, calúnias, difamações e injúrias que atingissem a honra e a segurança dos integrantes da Corte e seus familiares.

O motivo foi compreendido pelos demais Poderes, sobretudo no Parlamento. Afinal, o STF se tornava alvo de frequentes e virulentos ataques nas redes sociais e em páginas da internet. A forma, contudo, de pronto foi questionada.

O comum é que o Supremo Tribunal Federal abra inquérito quando provocado, mas desta vez a investigação não tem a participação do Ministério Público. Seus críticos também argumentam que se trata de uma iniciativa genérica em relação aos alvos e objetos de investigação. Em vez de sorteio, a relatoria foi entregue diretamente ao ministro Alexandre de Moraes. Outra prática pouco habitual. Tudo conduzido em silêncio.

No entanto, em Brasília dificilmente algo com tamanha importância é mantido sob total sigilo por muito tempo. Sabia-se, por exemplo, em alguns dos mais poderosos gabinetes do Congresso, que as investigações haviam alcançado aliados do presidente e teriam grande impacto político quando se tornassem públicas. Já se esperava que influenciadores digitais e empresários bolsonaristas estivessem entre os potenciais alvos de uma operação, quando a Polícia Federal fosse chamada a agir.

Pois foi o que aconteceu na semana passada. A ação policial ensejou uma das mais agressivas reações do presidente, segundo quem ordens “absurdas” não deveriam mais serem cumpridas.

A expectativa no governo é que o Supremo Tribunal Federal declare na semana que vem a legalidade do inquérito das “fake news”, a despeito de algumas críticas que o caso também possa enfrentar internamente na Corte. Acredita-se que a maioria dos ministros do STF queira dar uma resposta institucional aos ataques vindos da internet, de manifestações em frente à sede do tribunal e do próprio Palácio do Planalto.

O julgamento está marcado para o dia 10. Confirmado esse cenário, Moraes ganhará respaldo de seus pares. Em vez de se expor sozinho à ira bolsonarista, o ministro teria maior legitimidade para prosseguir nas investigações que tanto preocupam o governo. Principalmente porque o caso pode acabar interferindo nos processos que tramitam na Justiça Eleitoral sobre supostas irregularidades praticadas pela chapa vitoriosa na eleição presidencial de 2018. Outro fator que não deve ser desprezado é o fato de Alexandre de Moraes estar assumindo agora uma vaga como ministro titular do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Antes do julgamento previsto para ocorrer no plenário do STF, porém, as atenções das autoridades se voltarão para a Esplanada dos Ministérios e para as principais avenidas das grandes cidades brasileiras. Já há novas mobilizações contra o presidente sendo preparadas para domingo, inclusive na capital federal.

A primeira reação de Bolsonaro foi pedir que seus aliados deixassem de empreender novos atos no mesmo dia. Um raro momento de sensatez: não se pode descartar a possibilidade de a polarização que domina a política ganhar cada vez mais a forma de embate físico entre representantes dos dois polos.

Mas antes mesmo do surgimento de novos focos de movimentos de rua, o governo já temia que a pandemia provocasse um grande aumento da miséria e isso levasse a uma situação de caos social, com a ocorrência de saques e um aumento de crimes violentos.

Entre ministros e militares, sabe-se muito bem que uma fagulha qualquer pode servir de estopim e levar multidões incontroláveis às ruas. Outra característica é uma grande mobilização popular acabar em violência em determinado país e outras partes do globo serem atingidas por uma espécie de onda, na qual o movimento original é replicado, ganha força e demora a ser controlado.

É o risco observado agora. Desta vez, os Estados Unidos aparecem como epicentro da insatisfação popular. Um país governado pelo principal aliado de Bolsonaro e que têm servido de exemplo no Planalto para a condução da política externa e na resolução de algumas questões domésticas.

Aliados próximos do presidente já replicaram recentemente, por exemplo, o discurso de que seria desejável regular a atuação das redes sociais. Esses apoiadores dizem que as plataformas não estão tendo uma atuação neutra.

Não deve demorar para que o mesmo ocorra em relação às recentes declarações do presidente Donald Trump sobre a necessidade de envio de soldados americanos às ruas, caso governadores e prefeitos não coloquem um fim à violência nos protestos antirracistas que se espalharam pelo país. Nas redes sociais já há, aliás, pressão entre perfis bolsonaristas para que haja uma maior repressão a atos contrários ao presidente, sob o argumento de que governadores de oposição se beneficiariam com o crescimento desses movimentos.

Tornou-se comum entre eles, também, pedidos generalizados de intervenção das Forças Armadas na segurança pública.

Isso é o que menos interessa aos militares brasileiros. A última vez que eles precisaram garantir a lei e a ordem em um Estado conflagrado e com a polícia politizada foi em fevereiro. Ninguém sairá ganhando se os acontecimentos ocorridos no Ceará, onde a disputa política envolveu a polícia e provocou uma grave crise de insegurança, se repetirem em outros Estados.

Manifestações antibolsonaristas empurram Planalto ao diálogo - FABIO MURAKAWA

Valor Econômico - 03/06

Aconselhado por militares e aliados, presidente inicia conversas com o Supremo


BRASÍLIA - A perda do monopólio das ruas, com as manifestações antibolsonaristas do domingo, acendeu um alerta no Palácio do Planalto, empurrando o presidente da República a um diálogo com o Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de evitar uma crise institucional cujas consequências são imprevisíveis.

Aconselhado por ministros militares e alguns de seus aliados mais próximos, Jair Bolsonaro decidiu baixar o tom belicoso com que vinha se referindo a decisões da Corte e desestimular manifestações como as que vêm ocorrendo invariavelmente nos fins de semana com a sua participação.

Segundo fontes do governo, já há conversas informais com o STF visando arrefecer os ânimos e encontrar uma solução.

Nos últimos dias, e nesse contexto, o presidente conversou por telefone com os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Também têm atuado como conselheiros e interlocutores de Bolsonaro os ministros Walter Souza Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).
A participação de Bolsonaro, ontem, na posse de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ainda que por videoconferência, foi um gesto do presidente em favor do diálogo com o Judiciário.

Bolsonaro e seus aliados, porém, também esperam sinalizações do STF. O que mais irrita o presidente e seu entorno são decisões monocráticas como a do próprio Moraes, que no fim de abril barrou a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal.

O Planalto acredita que decisões graves como essa, embora tenham amparo legal, devem ser sempre chanceladas em plenário.

Essa sugestão foi dada pelo ministro do STF Marco Aurélio Mello, no início de maio, quando a polêmica sobre Ramagem estremeceu as relações entre STF e Planalto.

“O presidente tem falado com alguns ministros, dentro da independência entre os Poderes, para que haja uma pacificação”, diz uma fonte próxima a Bolsonaro. “Essas decisões monocráticas, quando se referirem a alguma coisa menor, não têm problema. Mas é muito ruim apenas um ministro barrar uma nomeação como a do diretor-geral da PF.”

Um militar que despacha no Planalto disse que as manifestações opositoras, como as vistas em São Paulo, no Rio e em outras cidades brasileiras no fim de semana, não são um problema em si. Mas refletem o acirramento da tensão entre os Poderes.

“Nós [governo] temos percebido que a coisa é mais ampla [do que manifestações de oposição]. Trata-se de não gerar crises institucionais. É preciso encontrar uma solução nesse nível”, disse. “É preciso haver sinalizações do STF, do governo e do Congresso para não chegarmos a situações extremadas. As ruas são reflexo disso aí.”

Grupos antibolsonaristas, que se classificam como pró-democracia ou antifascistas, já marcaram novos atos para domingo. Bolsonaro, porém, estimulou seus seguidores a não irem às ruas no fim de semana.

“Deixa eles sozinhos no domingo”, disse Bolsonaro a fãs anteontem no Palácio da Alvorada. “Eu não coordeno nada, não sou dono de grupo. Não participo de nada. Só vou prestigiar vocês, que estão me apoiando, fazem um movimento limpo, decente, pela democracia, pela lei e pela ordem. Eu apenas compareço.”

‘Não consigo respirar’ - VERA MAGALHÃES

O Estado de S.Paulo - 03/06

Protestos agregam convulsão social a uma crise sem paralelo


A reação ao assassinato, pela polícia de Minneapolis, do ex-segurança George Floyd, em 25 de maio, foi o estopim para a eclosão de manifestações que se espalharam primeiro pelos Estados Unidos, mas que começam a ganhar o mundo, contra o racismo e o fascismo.

Não é a primeira vez que o mundo assiste a movimentos de rua combinados, que vão ganhando corpo e agregando insatisfações sociais e políticas antes latentes. Aconteceu em 1968. Mais recentemente, ocorreu em 2013, no Brasil e também em diversos países. No ano passado, protestos varreram diversos países da América Latina.

E agora? O que o movimento racial dos Estados Unidos e os ainda localizados, mas inquietantes, confrontos no Brasil entre bolsonaristas e oposicionistas têm de inédito? O óbvio: são movimentos que, para além do chavão “começaram pacíficos, mas descambaram para a violência”, ocorrem em meio à maior pandemia em mais de um século. E isso não é um detalhe desprezível.

No momento em que a França, por exemplo, começa a ensaiar uma reabertura para o turismo e outras atividades econômicas, Paris se viu com as ruas apinhadas de pessoas protestando também contra a violência policial contra negros.

Os Estados Unidos e o Brasil nem chegaram ainda a sair da quarentena, que tanto lá quanto cá se dá de forma irregular, desordenada e tumultuada por presidentes ciclotímicos e desinteressados no combate efetivo ao coronavírus.

Não são os únicos traços em comum das novas jornadas de junho, cuja dimensão ainda somos incapazes de prever. Se em 2013 os motivos iniciais podiam parecer frívolos, agora já se parte de questões que, para dar significado universal à frase repetida por Floyd para o policial branco que o asfixiou, impedem a sociedade de respirar.

Racismo, surgimento de um neofascismo que incorpora elementos de supremacia racial e autoritarismo político, tudo turbinado pelas redes sociais, um mundo assolado por mortes e devastação econômica e um futuro que ninguém ousa desenhar são componentes capazes de fazer a revolta social escalar a níveis nem ensaiados há sete anos, ou mais recentemente.

A Terra está em transe. Governantes desprovidos de empatia social e compreensão de seu dever, como Jair Bolsonaro e Donald Trump, encaram momentos cruciais como esses da história da humanidade como oportunidades vulgares para fotos, seja desengonçado em cima de um cavalo, como o nosso, ou portando uma Bíblia com a qual não tem nenhuma intimidade, como no do “amigo” artificialmente tingido.

O de cá copia o de lá, a ponto de receber de bom grado, com reverência tacanha, carregamentos rejeitados de cloroquina do primo ab(e)astado que se cansou antes de insistir num tratamento ineficaz.

A força das imagens de pessoas indo às ruas contrariando o necessário distanciamento social mostra o quanto governos são estéreis para conduzir nações nessa crise inédita. É uma pandemia, como já houve outras até mais letais, mas ela chega num mundo hiperpovoado, marcado por diferenças sociais, econômicas e culturais brutais e incapaz de uma governança solidária, algo que garantiu o caminho em outros momentos-chave da História, como os pós-guerras mundiais.

A Terra pode ser uma visão emocionante quando observada, em toda a sua circunferência, pelas lentes de um foguete que busca o infinito, como nós, quarentenados de todo o mundo, vimos no último fim de semana no lançamento do Falcon 9.

Mas, assolada pela peste, pela iniquidade e pela mediocridade de alguns dos seus principais líderes, é um planeta inóspito para os humanos de 2020, que não hesitam em encarar até o vírus e o risco de morte para ir às ruas e poder gritar: “Não consigo respirar”.

O espantalho de capitais - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 03/06

Presidente assusta o investidor, provoca alta do dólar e prejudica a economia


Susto nos mercados, fuga de capitais e dólar em alta têm prejudicado os emergentes em todo o mundo, mas o Brasil foi “o país que mais sofreu com a desvalorização cambial”, disse o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, em depoimento no Congresso. Em disparada, a moeda americana tem pressionado os custos empresariais, corroído os lucros e inflado a dívida externa de muitas companhias. Mas por que este país tem sofrido mais que outros? A resposta é dada por economistas estrangeiros, investidores de fora e grandes órgãos da imprensa internacional: o principal espantalho do capital externo mora no Palácio da Alvorada e seu nome é Jair Messias Bolsonaro.

A insegurança criada pelo presidente - na política, na saúde e na economia - tem afetado os fluxos de capitais e provocado forte instabilidade cambial. O problema agravou-se quando a ação presidencial dificultou o combate ao coronavírus e o País perdeu dois ministros da Saúde em menos de um mês. Mas antes disso o real já se depreciava. A alta do dólar foi importante fator de redução dos lucros, segundo estudo sobre 183 empresas com ações negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo, a B3.

A análise, realizada pela Economática e divulgada pelo Estado, mostra companhias com bom desempenho operacional e grande redução de lucro por causa dos custos financeiros. Esses custos, inflados principalmente pelo câmbio, podaram R$ 39 bilhões dos ganhos e derrubaram o resultado líquido. O impacto da pandemia, sensível na última quinzena de março, afetou limitadamente os números do trimestre.

O dólar subiu cerca de 30% em relação ao real nos primeiros três meses. A alta acumulada até a primeira quinzena de maio chegou a 45%, impondo perdas maiores a muitas empresas. Houve algum recuo, depois disso, mas nos últimos dias a valorização acumulada se manteve na vizinhança de 30%, confirmando o destaque do Brasil entre as economias afetadas pela depreciação cambial. Entre fevereiro e maio investidores internacionais sacaram US$ 11,8 bilhões da bolsa brasileira. Entre fevereiro e abril US$ 18,7 bilhões foram retirados do mercado de títulos, segundo o Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), com sede em Washington. Esse instituto, mantido por cerca de 500 dos maiores bancos de todo o mundo, acompanha, entre outros assuntos, a movimentação de capitais.

Parte do dinheiro retirado no primeiro trimestre já voltou aos emergentes, mas o Brasil continuou perdendo recursos. A singularidade brasileira ficou mais evidenciada em novo estudo publicado pelo IIF. De modo geral, a saída de capitais, neste ano, foi muito parecida com a observada na crise internacional de 2008-2009, mas, no caso do Brasil, a perda foi quase o dobro, como taxa, da ocorrida naquele período. Segundo o economista-chefe do IIF, Robin Brooks, os investidores foram afugentados pelas condições políticas do País e também por detalhes da política monetária, como a autorização para a compra de títulos do governo pelo BC.

A insegurança e as tensões criadas pelo presidente Bolsonaro já foram citadas em pesquisas conduzidas no mercado brasileiro, em declarações de dirigentes de bancos nacionais e em comentários de grandes investidores estrangeiros. Não há invencionice, portanto, nas notícias e comentários publicados pela imprensa estrangeira. O presidente Bolsonaro, assinalou o Financial Times em edição recente, está no centro de uma crise política e, além disso, continua ignorando a seriedade do surto de coronavírus, apesar de mais de 500 mil casos de infecção e de cerca de 30 mil mortes confirmadas. A saída de dois ministros da Saúde e do ministro da Justiça, acrescentou o jornal, desagradou aos investidores. Ao mencionar a maior saída de capitais a partir de março, o jornal londrino citou as dúvidas - já existentes - dos investidores quanto às promessas de disciplina fiscal de Bolsonaro. O risco Bolsonaro passou a ter mais peso que a confiança no ministro da Economia, Paulo Guedes. O presidente ofuscou o Posto Ipiranga.

De Mussolini@edu para Jair@gov - ELIO GASPARI

O Globo/Folha de S. Paulo - 03/06

Os meus milicianos emporcalharam o fascismo. Poucos morreram no campo de batalha



Capitão Bolsonaro,

O senhor usou uma frase que eu repeti em 1932: “É melhor viver um dia como leão que cem anos como cordeiro”. O Donald Trump também a usou. Escrevo-lhe para retificar essa fanfarronada, uma das muitas que soltei pela vida. Eu morri como um gatinho.

Na tarde de 27 de abril de 1945 os russos estavam perto de Berlim, e eu fugia pelo Norte da Itália num comboio alemão, vestindo o capote de um cabo da Wehrmacht, escondido dentro de um capacete. Fomos interceptados por uma patrulha de combatentes italianos e fui reconhecido no fundo do veículo. Aprisionado, levaram-me para uma casa, onde passei a noite. Pela manhã, deram-me algum salame e pão. O Partido Comunista destacou uma patrulha para me matar e à tarde chegou o “Coronel Valerio”. Fui metralhado diante do portão.

Fiquei cerca de 24 horas com meus captores e são muitas as versões do que aconteceu nesse período, mas nenhuma delas registra momentos de bravura. Não sei se há coragem no suicídio, pois nunca pensei em me matar. Hitler matou-se dois dias depois. Um dia encontrei aqui o Getúlio Vargas e ele me explicou que, matando-se, dobrou seus inimigos. É verdade, mas eu, como Napoleão Bonaparte, não tinha essa carta. Havia enfiado a Itália numa guerra e ela estava perdida.

O que os italianos fizeram com meu cadáver, pendurando-me de cabeça para baixo num posto de gasolina, foi apenas uma prova da volubilidade daquele povo. Uma gente que me adorava, ainda que a recíproca não fosse verdadeira.

Escrevo-lhe porque tenho um especial carinho pelo Brasil. Em 1910, quando os Bolsonaro já viviam no interior de São Paulo há algum tempo, eu fui convidado para dirigir um jornal socialista na cidade. Não aceitei, porque minha mulher engravidou. Antes tivesse ido. O primeiro posto diplomático do meu genro foi o Rio de Janeiro. O senhor deve ter ouvido falar no Galeazzo Ciano, ele financiava os integralistas. Minha filha Edda esteve no Brasil em 1939 e ficou hospedada na mansão da família Prado. Depois da guerra uma das minhas netas viveu aí.

Eu cheguei ao poder nos braços do povo, com os punhos da minha milícia. Eram chamados de “squadristi”. O Hitler copiou esse modelo e depois liquidou-o, criando coisa pior. Eles aterrorizavam os adversários políticos, espancavam esquerdistas e empastelavam jornais. O chefe dessa milícia era Roberto Farinacci. Ladrão, colecionava denúncias contra minha família. (Minha filha teve 95 apartamentos em Roma, mas essa é outra história.) Farinacci passava-se por ideólogo, mas era apenas um bajulador de plutocratas. Por coincidência, foi fuzilado no mesmo dia que eu. Dizem que deixou o equivalente a dez milhões de euros. Em 1943 me contaram que guardava 80 quilos de ouro em casa. O poder subiu-lhe à cabeça, e acabou metendo-se com uma marquesa de dois nomes e três sobrenomes.

Farinacci não morreu como um leão, porque se deixou capturar. Também não morreu como um gatinho, pois encarou o pelotão de fuzilamento e gritou “Viva a Itália”.

Os meus milicianos emporcalharam o fascismo. Poucos morreram no campo de batalha. Alguns aninharam-se com a elite, mas a maioria meteu-se com boquinhas. Daí a maledicência segundo a qual todos os políticos comem, mas os fascistas comiam com as mãos.

Despeço-me, sugerindo que me esqueça.

Benito Mussolini.

Antes do primeiro tiro - ROSÂNGELA BITTAR

O Estado de S.Paulo - 03/06

Bolsonaro abandonou a maioria para liderar a minoria numa guerra de interesse pessoal



Garroteado pelo vírus mortal, que ignora, e pela economia degradada, mal da conta de um só ministro, Jair Bolsonaro, que nunca assumiu a presidência de todos os brasileiros, agora desertou de vez.

Abandonou a maioria para liderar a minoria numa guerra de motivação e interesse pessoal. Fechados com ele estão 26% dos brasileiros, muitos dos quais identificados em pesquisas: Forças Armadas, que reforçam as iniciativas transgressoras do comandante em chefe; Polícias Militares; gabinete do ódio, organização que já se ramificou por seis ou sete Estados; boa parte dos aposentados; empresários financiadores da rede de fake news; milícias digitais e seus robôs; fanáticos perigosos e armados confessos; filhos e amigos.

Não surpreende a existência, na sociedade brasileira, deste elevado número de praticantes do jogo de conflito permanente. Analistas afirmam que sempre foi deste tamanho o espectro da direita à extrema direita, espaço entremeado pelos adeptos do nazismo, do fascismo e do culto às armas de fogo como instrumento da disputa política.

O governo criou sua própria teoria da liberdade de expressão para justificar o modelo de operação e os crimes identificados na ação de grupos leais a Bolsonaro. Adélio Bispo estaria também exercendo seu direito à liberdade de expressão?

Na maioria de 70% deixados para trás na deserção do presidente, agora por eles rejeitado, destaca-se a presença das mulheres e, neste segmento, as pacifistas donas de casa; os estudantes; os funcionários públicos civis; os cientistas e professores; os que ganham até dois mínimos; o trabalhador informal; o Poder Legislativo; o Poder Judiciário; os signatários da série de manifestos em defesa da ameaçada democracia.

Pouco importa a Bolsonaro que, com seu governo de minoria, será difícil reeleger-se em 2022. Sinal, quem sabe, de que seu plano não preveja, à frente, uma eleição, e sim uma cerimônia de sagração.

Entre os interesses dos guerrilheiros liderados por Bolsonaro e os da maioria dos brasileiros, dos quais desistiu antes mesmo de apresentar um programa de governo para todos (educação, saúde, segurança, emprego, é uma incógnita o que gostaria de fazer o presidente), não há conciliação possível.

No momento, a maioria está com todas as suas forças mobilizadas para sobreviver à pandemia e consolar os que perderam sua família para a doença. Este é o assunto mais grave e importante em qualquer sociedade do mundo. Enquanto fica claro, a cada vez que se manifesta, que o presidente acha que ganhou o poder para tratar da própria vida e a de seus filhos.

Há quem avalie 26% um apoio suficiente para evitar o impeachment, principalmente se, na linha de frente, no momento certo, estiverem os partidos do Centrão. Os fatos discordam: dias antes de sofrer impeachment, o ex-presidente Fernando Collor recebeu, em pesquisa, o apoio de 20% dos brasileiros, e a ex-presidente Dilma Rousseff registrava a seu lado 30% do eleitorado.

É preciso reconhecer, porém, que por falta de amadurecimento das condições propícias não se chegou ao momento do impeachment, como também não há cenário político que permita o golpe.

Jair Bolsonaro ainda tem a chance, assim, de assumir o governo, começando por aceitar o conselho do ministro Gilmar Mendes: criar um exército de enfrentamento da pandemia, com a presença da União, Estados e municípios, como o País fez na crise do apagão. Correr com esta providência antes que sua ordem de armar a população produza o primeiro tiro.

Tereza Cristina. A ministra Tereza Cristina (Agricultura) foi removida da frigideira de Jair Bolsonaro. O que a salvou foi a forte impressão que causou ao presidente com a articulação rápida do anúncio de apoio das poderosas CNA, CNC, CNI e outras entidades ao ministro Ricardo Salles.

Má interpretação - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 03/05

A definição de que a ação das FA dependeria da iniciativa de qualquer dos Poderes foi o pomo da discórdia


A interpretação bolsonarista de que as Forças Armadas têm a função de intervir como Poder Moderador diante de um conflito entre o Executivo e os demais Poderes da República, Legislativo e Judiciário, de acordo com o artigo 142 da Constituição, não tem base jurídica, como ressaltou o parecer da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgado ontem.

Significaria “que qualquer conflito entre os Poderes estaria submetido à autoridade suprema do Presidente da República, pois mediado pelas Forças Armadas, que desempenham suas atividades sob seu comando. E essa interpretação, ao estabelecer hierarquia entre os Poderes, traria importantes e graves riscos para o princípio da supremacia constitucional”.

Essa má interpretação constitucional foi exatamente o que os constituintes de 1988 quiseram evitar, e tiveram muito trabalho para superar os obstáculos colocados no caminho da definição do papel das Forças Armadas.

Os militares, tendo à frente o ministro do Exército Leonidas Pires Gonçalves, pressionaram muito para que os termos da Constituição de 1946, repetidos na de 1967, permanecessem: “Art. 177: Destinam-se as FA a defender a pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”.

Os constituintes viam nessa Redacao, embora tradicional, a aceitação de que caberia às Forças Armadas a decisão de quando agir. Queriam que essa possibilidade implícita de intervenção das Forças Armadas fosse descartada, propondo o que acabou prevalecendo sobre a destinação das Forças Armadas: “Art. 142: (...) (FA destinam-se) à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

A definição de que a ação das Forças Armadas dependeria da iniciativa de qualquer dos Poderes foi o pomo de discórdia, e houve várias negociações em torno do artigo 142. O então presidente José Sarney lembra-se de que demorou muito tempo para se chegar ao texto final, que não agradou totalmente aos militares.

Segundo Sarney, o então deputado federal Bernardo Cabral, relator da Constituinte, havia prometido aos militares manter o texto de 1967, mas não pôde cumprir o compromisso, o que gerou uma crise política.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que na ocasião era senador, relata que teve que ir a reunião tensa no Palácio do Planalto junto com o senador José Richa, para tentar superar o impasse.

O presidente José Sarney estava preocupado com o ministro do Exército Leônidas Pires, irritado com o não cumprimento do acordo, e coube a Richa apaziguar os ânimos. Mas os militares não aceitaram as modificações e, é Sarney quem conta, convocaram Bernardo Cabral para uma reunião no gabinete de Leônidas no Quartel-General do Exército, no Forte Apache em Brasília.

Os ministros da Marinha e da Aeronáutica também estavam presentes. Mesmo com o texto da nova Constituição já praticamente na gráfica, eles insistiam em manter a definição da Constituição de 1967, do regime militar. O então deputado Nelson Jobim, que teve papel importante na redação final da Constituição, diz que a questão básica era que os militares queriam ser eles os definidores de quando poderiam atuar “em defesa da lei e da ordem”. Bernardo Cabral garante que em nenhum momento foi pressionado pelo General Leônidas Pires Gonçalves.

Essa interpretação é a que hoje defende o jurista Ives Gandra Martins , que considera que uma das funções das Forças Armadas seria atuar como Poder Moderador sempre que um Poder sentir-se atropelado por outro, uma intervenção pontual e específica.

O documento divulgado ontem pela OAB destaca que “compreender que as Forças Armadas, inseridas inequivocamente na estrutura do Poder Executivo sob o comando do Presidente da República, poderiam intervir nos Poderes Legislativo e Judiciário para a preservação das competências constitucionais estaria em evidente incompatibilidade com o art. 2o, da Constituição Federal, que dispõe sobre a separação dos poderes. Afinal, com isso, estabelecer-se-ia uma hierarquia implícita entre o Poder Executivo e os demais Poderes quando da existência de conflitos referentes a suas esferas de atribuições”.