quarta-feira, junho 03, 2020

A casa sem a rua - ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 03/06

O nosso jamais politizado viés aristocrático é base de um enraizado fascismo de direita e de esquerda


A pandemia forçou o não “sair de casa” e o “isolamento social”. Do ponto de vista medicinal e epidêmico, não há o que discutir. Mas há muito o que dizer sobre o que isso significa, porque ficar sozinho é muito mais rotineiro em sociedades individualistas e relativamente igualitárias do que nos países onde a casa é um espaço que vai além da família fundada por um casal e fundada no amor romântico. Pois, entre nós, a casa contém pessoas enlaçadas por carne e sangue, congregando muitas gerações, além de uma heterogeneidade fundada na escravidão. Na senzala, conforme a incômoda demonstração-denúncia de Gilberto Freyre. Do escravismo, fomos mais ou menos para a criadagem e hoje o isolamento tortura as “donas de casa” mais ou menos feministas socialistas, porque ela suprime essas pós-escravas, chamadas de “empregas domésticas”, que fazem tudo para seus patrões, perpetuando gloriosa e inconscientemente o nosso jamais politizado viés aristocrático. Base de um enraizado fascismo de direita e de esquerda.

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Estamos confinados em casa e, mais que isso, a rua entrou casa adentro, pois o vírus é abusado e injusto nas suas escolhas. É uma burrice óbvia dizer que ele atinge os mais pobres, já que eles sempre foram oprimidos pela nossa superior presença de “brancos que se lavam” e de intelectuais politicamente supercorretos, cujas reuniões em prol da liberdade são regadas a bom vinho porque ninguém é de ferro.

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Para um antropologista das antigas como eu, “sair de casa” tem muitos sentidos. Chamo atenção para o fato de que sair da morada de modo utilitário como faz um americano ou burguês europeu ao fazer uma compra é muito diferente do brasileiro. Para nós, o “sair de casa” tem tudo a ver com a necessidade de se livrar do autoritarismo familiar. Ademais, muitos saem descumprindo o bom senso médico porque residem em cabanas miseráveis e sufocantes, as quais fazem com que as ruas, feiras e praças sejam inexprimivelmente atrativas.

Quando somos supercontrolados em casa, cujas hierarquias inconscientes (como mostrei no meu livro A Casa & Rua, publicado há três décadas) são as mais absolutas e o poder de um lacaniano pai jamais é posto em causa sem alto risco, o “ir para a rua” é um ato de liberdade. Pois é na rua e com os “meninos e meninas de rua” que podemos falar e trocar experiências proibidas em casa. Esse foi o meu caso.

Não que minha casa fosse ruim. Mas eu precisava, como todo ser humano não imbecil, de sair da família e da casa para poder comparar e discutir certos assuntos importantes, proibidos no lar. A sexualidade, por exemplo; a religião e, sobretudo, a dimensão básica do trabalho e da política, dois temas profundamente ligados, mas proibidos ou inibidos em casa. Por muitos motivos. O principal sendo o da profunda injustiça, havida como natural, de ter nascido numa casa na qual os negros eram subordinados e, na rua, eu aprendia que seria possível discutir um sistema mais justo e mais equitativo.

Como – eis o ponto! – discutir igualdade e justiça social, quando na casa se vive um regime de plena injustiça e brutal desigualdade? Um dado chocante: não saber o nome completo das nossas empregadas...

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Vejam o problema: se a rua nos tirava de casa, onde estávamos literalmente “trancados”, ela nos punha em contato com algo novo e até hoje problemático no Brasil. Refiro-me à impessoalidade e à eventualidade de encontros e contextos regidos por igualdade (como a fila, alvo de um outro livro, Fila & Democracia, escrito em colaboração com Alberto Junqueira), e escolhas.

Conforme escrevi muitas vezes, os laços amorosos e afetivos da casa (que ampliam o desequilíbrio de um presidente eleito com o dever de, no mínimo, discipliná-los) são o esqueleto das aristocracias nas quais as posições de poder eram ocupadas automaticamente por descendência. Os filhos do rei seriam reis! Esse era o tal “direito divino” que as revoluções liquidaram.

Ora, os princípios que governam os laços de família são o exato oposto dos elos que singularizam os relacionamentos da rua. Os do lar, por serem dados e não escolhidos, são hierarquizados e “aristocráticos” – mesclados de corporeidade e baseados em idade e gênero. Já os da rua, da praia, escola e da praça – os “de fora” – são impessoais e igualitários. Assentados em preferências e escolhas. São, reitero o que tenho escrito, individualizados e formam a base da tal democracia tão falada e tão pouco entendida nesse nosso obscuro Brasil.

Quando vivemos, portanto, a casa sem o seu cósmico contraponto, a rua; quando não chegamos ainda a perceber que casa e rua devem operar ajustando os seus princípios básicos, sofremos as escolhas e angústias de um igualitarismo existencial forçado. Haja, como diz uma querida amiga, pratos para lavar...

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