segunda-feira, maio 25, 2020

Pulsão de morte - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 25/05

O novo normal é um mundo em que paranoicos e hipocondríacos venceram

As pessoas gozam com a morte, e ficam excitadas quando autorizadas a odiar, a temer e a desconfiar



E quem disse que as pessoas leem e entendem tantos artigos que descrevem em detalhes as patologias que levam o paciente infectado pela Covid-19 a óbito? Não entendem, mas gozam morbidamente.

Imagine pessoas comuns ouvindo toda hora que tudo pode ser sintoma do novo coronavírus. Imagine a Organização Mundial da Saúde dizer que é mais seguro masturbação do que sexo com outra pessoa.

Imagine ainda as pessoas, na rua, atravessando para o outro lado com medo do pestilento que vem em sua direção. Imagine a proibição definitiva do beijo na boca como sendo algo semelhante a colocar a boca numa privada. A boca da morte ri por toda a parte.

Hoje ninguém está seguro. O novo normal (essa expressão idiota) é, seguramente, um mundo em que os paranoicos e os hipocondríacos venceram. Agora eles têm uma coleção de justificativas científicas para o seu gozo com a morte.
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé de 25 de maio de 2020 - Ricardo Cammarota

A ciência provou que a paranoia diante do mundo é a ação mais sustentável epidemiologicamente. Você acha que defendo a delinquência? Não. Há mais coisas entre o céu e a terra do que pensa a nossa vã estupidez polarizada.

Quando alguém se pergunta “por que o entregador de delivery não tem o mesmo direito de ficar em casa que nós da classe média para cima?”, saiba que você está diante de um mentiroso ou de um sádico. Esse cara que faz delivery trabalha porque precisa comer. Você pede comida remotamente? Pois então, ele é parte do seu aplicativo revolucionário. Se não fizer entregas, morre de fome. O gozo com a morte nos deixa cínicos.

Sigmund Freud (1856–1939) publicou seu “Além do Princípio do Prazer” em 1920. O conceito de pulsão de morte ali descrito é uma grande chave de leitura para a nossa época.

A morte está na ordem do dia como objeto de gozo. A pulsão de morte goza onde o ser é destruído, seja pela violência, seja pela paralisia. Quanto mais paralisado o mundo, mais gozo com a morte. O capital sorri enquanto se especializa numa sociedade mediada pela pulsão de morte. Todos com inseticidas à mão.

A política goza com a epidemia. A mídia goza com a epidemia. As ciências gozam com a epidemia. Os empresários gozam com a epidemia, pensando em como eliminar elos na cadeia produtiva sendo criativos! O incapaz de penetrar uma mulher goza com a epidemia, a mulher amarga com tudo goza com a epidemia. O deprimido finalmente tem razão para o seu estado de espírito.

O contrato social atual, como sempre ocorre em crises sanitárias graves na história, privilegia os vícios, a covardia, o abuso e os impulsos mórbidos. O contrato agora é permeado pela pulsão de morte como gozo social: Tânatos é a sua substância, e não Eros.

Os hipocondríacos ganharam a batalha pelo modus vivendi. O mundo será tão seguro quanto a morte é, eternamente fora de qualquer risco.

A profusão de textos e vídeos sobre métodos de segurança é impressionante. Suspeito que escorra uma baba pelo canto da boca de quem goza lendo-os e assistindo.

De agora em diante, toda pessoa perto de você é uma inimiga. Não só as pessoas, mas as maçãs também são inimigas. Tampouco ouse olhar uma criança, pois logo irá se descobrir que o coronavírus também é transmitido pelo olhar.

A fronteira entre a paranoia e o cuidado é o excesso de cuidado da paranoia. Freud já nos dizia que o superego, “órgão psíquico” da moral, se alimenta de pulsão de morte. A moral tortura.

Os tempos em que vivemos provam isso de forma evidente, com o casamento das normas sanitárias vigilantes com o medo. Talvez Freud, que atravessou a Primeira Guerra e a gripe espanhola, pandemia que matou uma das suas filhas, tenha percebido esse detalhe —e o gozo está no detalhe: as pessoas gozam com a morte.

Elas ficam especialmente excitadas quando autorizadas a odiar, a temer, a desconfiar, trair, a proibir. Fosse o vírus um exército de ocupação, o colaboracionismo seria total. Você duvida?

A pulsão de morte reina sozinha no novo normal, faz selfie, live, branded content, novos negócios. Como sempre, ela, a pulsão de morte, busca o repouso no inorgânico. Irônico que, apesar de tanto se falar em salvar vidas, seja justamente a morte que goza mais do que tudo nesse nosso novo normal.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Contra fake news, siga o dinheiro - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 25/05

No mundo de hoje, a desinformação tornou-se uma indústria muito bem financiada

A expressão “follow the money” (siga do dinheiro) foi popularizada pelo filme “Todos os Homens do Presidente” (1976), que conta a derrocada do presidente Richard Nixon e o papel do bom jornalismo para isso.

Seu significado é simples: várias formas de corrupção política podem ser desvendadas examinando as transferências financeiras entre as partes envolvidas. Com as fake news, é a mesma coisa.

Uma forma eficaz de combater campanhas organizadas para espalhar notícias falsas é seguir o dinheiro.

Especialmente porque no mundo de hoje a desinformação tornou-se uma indústria muito bem finsanciada. Há uma miríade de empresas, designers, programadores, gestores e financiadores envolvidos na disseminação de notícias falsas. Essa estrutura é cara. Compreendê-la ajuda a lidar com o problema.

Evidência de que essa estratégia funciona está no perfil do Twitter chamado Sleeping Giants, surgido nos EUA, e sua versão brasileira, o Sleeping Giants Brasil (@slpng_giants_pt).

Em quatro dias, a versão brasileira conseguiu resultados no combate a desinformação de fazer inveja ao Tribunal Superior Eleitoral, à CPI das Fake News e ao Congresso. A razão para esse sucesso não é de incapacidade dessas instituições, mas sim um ajuste de estratégia. O Sleeping Giants mapeou parte do dinheiro que alimenta a indústria das fake news.

Fez isso identificando marcas que —sem querer— estavam com anúncios sendo exibidos automaticamente em sites de desinformação via plataforma do Google. Tudo que o perfil fez foi alertar essas marcas do que estava acontecendo.

As marcas que se incomodaram imediatamente bloquearam os anúncios. Já as que não se incomodaram em ter anúncios ao lado de manchetes como “Cloroquina, a cura negada à sociedade” mantiveram suas propagandas (como é o caso do Banco do Brasil).

Em outras palavras, essa estratégia combate desinformação com mais informação (e não com menos). Cabe a cada marca decidir o que vai fazer com seu dinheiro.

O Sleeping Giants, no entanto, tem alcance limitado. Atua só com relação a uma pequena parte do dinheiro que financia fake news. Essa indústria envolve muitas vezes a prática sistemática de várias atividades criminosas, tais como falsidade ideológica, falsa identidade, fraude processual e, sobretudo, lavagem de dinheiro (na ocultação de recursos privados ou públicos usados para financiar esses crimes).

Age acobertando a compra de engajamentos artificiais, usa robôs e automação maliciosa para atacar pessoas ou minar o debate público e assim por diante. Quando descambam para a ilicitude, são verdadeiras organizações criminosas. O Sleeping Giants pouco pode fazer sobre isso.

Já instituições como o Judiciário e o Congresso podem fazer muito. De novo, combate-se fake news com mais informação, e não menos. Jogando luz e punindo quem pratica crimes para ocultar maliciosamente a autoria de campanhas massivas de desinformação, prejudicando a autonomia, o livre-arbítrio, o livre convencimento e a tomada de decisões de cada um.

Colocar a lei a serviço de aumentar a informação disponível e para revelar o que está sendo ilicitamente ocultado é um bom caminho para lidar com a questão.

READER

Já era Achar normal transporte público aglomerado e lotado

Já é Reduzir temporariamente a capacidade do transporte público

Já vem Volta dos scooters e bikes compartilhadas como modais de transporte urbano individual

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Não Foi o Vírus Que Parou o Mundo - STEPHEN KANITZ

BLOG DO KANITZ
05/2020


Perdoem-me por voltar ao assunto, mas é importante entender realmente o que fez o mundo parar.

Não foi o vírus.

Não foi um súbito “colapso da demanda”, nem “a falta de estímulos corretos”.

Da ótica da administração não se justifica todo esse desastre, só porque as empresas pararam de produzir por somente 45 dias.

Pensem bem.

Tampouco se justifica todos esses pacotes trilionários de estímulos, quando no fundo tiramos talvez 45 dias de férias, em 70% da economia.

Os bois estão engordando, e a soja está crescendo.

Afinal, muitas empresas param anualmente por 30 dias dando férias coletivas e nada acontece.

Eles devidamente preparam previamente estoques dos produtos que fabricam, e o setor atacadista supre o mercado nesse período.

O que realmente ocorreu é que colocaram o rei a nu, algo que venho alertando há anos.

Todo esse desastre foi deflagrado pela crônica falta de capital de giro próprio desde o capital de giro das famílias, até o capital de giro das empresas.

Cada família precisa acumular capital de giro próprio nos anos de vacas gordas, para enfrentar períodos sem entrada de recursos, por perda de emprego por exemplo.

No passado remoto estocávamos comida por sete anos, lembram-se?

Hoje, especialmente nas famílias onde a mulher também trabalha, algo recente, as chances de um ou outro perder o emprego dobra de probabilidade.

Ou seja, os 33% de americanos despedidos afetaram 55% das famílias. É muita gente.

O americano médio tem somente US$ 500 de liquidez imediata e só.

E essas mesmas famílias têm em média US$ 8.500 de dívidas só no cartão de crédito.

Ou seja, capital de giro negativo por família de US$ 8.000.

Isso num país onde a média tem mais de oito anos de “educação”.

Por isso as famílias imediatamente reduzem seu consumo, não por causa do vírus ou confinamento, mas por não terem reservas para uma emergência, como esta.

Param de comprar, atrasam pagamentos.

E aí entra uma espiral descendente, onde o setor varejista para de pagar o setor atacadista.

Isso porque também não possuem o capital de giro próprio suficiente para sobreviver nem mesmo 4 meses com vendas baixas.

O atacadista para de pagar o produtor, que também não tem o capital de giro próprio necessário para amortecer esse desequilíbrio.

O produtor por sua vez não paga o fabricante de peças.

Que para de pagar o setor de matéria prima, que para de pagar seus funcionários, e o ciclo se repete e piora.

Os vasos comunicantes embolam e param.

E posso lhes garantir que esses trilhões de “estímulos”, não chegarão onde precisam, muito menos para as empresas sem capital de giro, o cerne do problema.

Basta perceber que ninguém sabe qual a empresa que mais precisa de capital de giro próprio.

O FRED americano desde 1967 não calcula mais o CAPITAL DE GIRO das empresas americanas, nem percebeu que estava diante de um problema que estava piorando, e que por isso deveria ser acompanhado de perto.

Queda persistente que Melhores e Maiores também apontava desde 1964, e que sou o único que acompanha até hoje.

Lá como aqui, o Ministério da Economia está pilotando a economia às escuras, tanto quanto nossos Ministros da Saúde.

Tomam decisões equivocadas por não ter os dados certos para analisar o que ocorre na economia real.

O nível de capital de giro já estava estrategicamente muito baixo em 2019, aqui e nos Estados Unidos, colocando em risco a nossa Economia, algo que muitos que me seguem já sabem.

Não foi o vírus que gerou esse desastre econômico.

Foi a falta de capital de giro próprio suficiente para enfrentar essa crise, por parte das empresas e das famílias.

E o pior, no post mortem que será feito dessa crise por historiadores e economistas, tenho a absoluta certeza de que novamente não aprenderemos a lição.

Keynes sequer analisou a falta de capital giro próprio das empresas depois de três anos de recessão, sequer mencionou essa variável na sua Teoria do Emprego.

Por isso ninguém vai recomendar a partir de 2021 que famílias passem a pensar em termos de capital de giro necessário.

Nenhum livro de Economia vai propor que no futuro os governos tenham o capital de giro próprio necessário para enfrentar crises em vez de dívidas monstruosas.

Pegos de surpresa, economistas de governo vão manipular a contabilidade das nações, imprimindo e digitalizando moeda falsa a rodo.

Ao contrário daquilo que ensinamos em Administração Responsável das Nações.

“Nenhuma reserva pública pode terminar antes do término de uma recessão, senão a economia entrará em depressão.”

“Todo país e toda família devem acumular reservas financeiras adequadas como forma de proteção.”

E as outras? - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 25/05

Como terão sido as reuniões anteriores de Bolsonaro com seu ministério?


Chocado, como todas as pessoas decentes, com o vídeo da reunião ministerial de Jair Bolsonaro no dia 22 de abril? Sim, mas só porque, graças à decisão do ministro Celso de Mello, do STF, ela foi tornada pública. Quem sabe não a teríamos encarado com naturalidade se já tivéssemos assistido às reuniões anteriores de Bolsonaro com seu ministério? Quem garante que não tenham sido o mesmo festival de perversidade, escatologia, baixeza, cinismo e inconstitucionalidade?

Não há motivo para acreditar que fossem diferentes. É o presidente da República quem dita o tom de seus encontros, públicos ou particulares. E, como observamos todo dia, Bolsonaro só se dirige às pessoas em seu estilo equino, de servente de estrebaria —daí sua intimidade com bosta, estrume e outros clássicos de seu vocabulário. Mas a importância de consultar essas reuniões, se elas tiverem sido gravadas, estará em penetrar nos repulsivos intestinos da história recente do Brasil.

Por elas saberíamos quem, quando e como se planejaram, discutiram e executaram os crimes e indignidades que Bolsonaro já praticou. A julgar pela reunião de 22/4, nada coube ao acaso —mesmo as suas medidas mais gratuitas e absurdas visavam a uma estratégia de corrosão das instituições e ocupação de espaço por sua quadrilha.

Pelas gravações ou atas dessas reuniões, saberíamos ainda que ministros ele humilhou diante dos colegas para que pusessem seus planos em ação —não será surpresa se até ministros militares já tiverem sido esbofeteados. E saberíamos também de quem, por convicção ou oportunismo, partiram as ideias em curso para devastar a educação, a saúde, o meio ambiente, a cultura e o respeito aos Poderes.

Os tribunais do futuro precisarão dessas informações para distinguir entre os criminosos e os cúmplices de seu governo—sem esquecer os omissos, escondidos atrás de seus cargos "técnicos" e orelhas murchas.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Todos os homens do presidente - BRUNO CARAZZA

Valor Econômico - 25/05

O vídeo da reunião ministerial expôs o governo como ele é


Richard Nixon certamente não imaginou que sua decisão de instalar microfones para gravar secretamente as conversas no Salão Oval da Casa Branca o deixaria marcado como o primeiro presidente americano a renunciar ao mandato. Entre fevereiro de 1971 e julho de 1973 foram mais de 3.500 horas de registros que envolveram assuntos de Estado, como a guerra do Vietnã, suas visitas à China e à União Soviética e, claro, o escândalo que causou sua ruína: o caso Watergate.

A existência do sistema de escuta no gabinete presidencial foi revelada por um assessor perante a comissão do Senado que investigava o envolvimento de Nixon na instalação de grampos telefônicos ilegais no escritório do partido Democrata nas eleições de 1972. A partir daí seguiu-se uma intensa batalha judicial, com o presidente se recusando a entregar as fitas. Na sua defesa, Nixon alegava razões de segurança nacional e recorria ao princípio da separação de Poderes para manter o sigilo sobre as gravações.

O ministro Celso de Mello recorreu ao caso United States v. Nixon para embasar sua decisão de tornar públicos os vídeos da reunião ministerial realizada no Palácio do Planalto em 22/04/2020. Por meio do seu famoso sistema de negritos, sublinhados e itálicos, o decano do STF deu ênfase ao posicionamento da Suprema Corte americana, que determinou que as fitas de Nixon fossem entregues, pois o chefe do Poder Executivo não tem o privilégio absoluto de estar acima da lei e ficar imune à produção de provas num processo criminal.

Nas últimas décadas capítulos importantes da história brasileira vêm sendo contados por conversas telefônicas, escutas ambientes e vídeos obtidos ilegalmente ou com a autorização da Justiça. De nebulosas transações durante o processo de privatização no governo FHC às articulações entre Dilma e Lula para nomeá-lo ministro e evitar sua prisão, passando pelas propostas indecentes feitas pelo empresário Joesley Batista a Michel Temer, as vísceras da República brasileira vêm sendo expostas rotineiramente em alto e bom som.

Na sexta-feira passada o Brasil parou para assistir ao vídeo da reunião de Bolsonaro. A contar pela repercussão nas redes sociais, o resultado foi plenamente favorável ao presidente. A íntegra da gravação não revelou muito mais do que já circulava na imprensa a respeito da suposta interferência do chefe do Poder Executivo em investigações conduzidas pela Polícia Federal. Sem “bala de prata”, os apoiadores de Bolsonaro cantaram vitória contra o antigo aliado Sergio Moro e todos que torciam pelo aparecimento de evidências robustas contra seu clã.

Todavia, em meio às dezenas de palavrões proferidas na reunião, o vídeo apresentou ao público um rico panorama do funcionamento interno da cúpula governamental. Pudemos observar de camarote que há um racha na equipe ministerial em relação às medidas necessárias para reativar a economia após a crise da covid-19: Paulo Guedes criticou de sonhador e político o plano Pró-Brasil, elaborado por Braga Netto (Casa Civil) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), comparando-o à agenda de Dilma e Lula. Em outro momento, a ministra Damares Alves chamou a atenção para os riscos de lavagem de dinheiro e classificou como “pacto com o diabo” a proposta de Marcelo Álvaro Antônio (Turismo) de atrair para o país empreendimentos que integrem hotéis e cassinos.

A gravação ainda revela Abraham Weintraub admitindo sua militância política no exercício do cargo e defendendo “botar esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”. Mais adiante, Paulo Guedes fez coro ao ministro da Educação, deixando clara sua visão sobre a articulação institucional do governo: “enquanto eles estiverem no trilho conosco, no caminho fazendo as reformas que nós prometemos, nós tamo junto. Na hora que o cara soltou a mão e passou pro lado de lá, a gente deixa o cara ir sozinho e vai procurar outra conversa, em outro lugar”.

A decisão do ministro Celso de Mello de liberar o acesso à reunião ministerial consistiu, para muitos, numa desnecessária intervenção do Poder Judiciário, expondo ao público discussões internas travadas entre o presidente e seus principais auxiliares em torno de medidas governamentais em estudo ou suas percepções sobre a situação política do país.

Em 1974, logo após a renúncia de Richard Nixon, o Congresso americano determinou que suas fitas secretas fossem colocadas em custódia, de forma a evitar a sua destruição. Posteriormente, em 1978, foi aprovado o Presidential Records Act, uma lei que estabeleceu que todas as gravações em áudio e vídeo realizadas pela autoridade máxima dos EUA fossem consideradas de propriedade pública, sendo colocadas à disposição de qualquer interessado ao final do mandato.

Não há dúvidas de que é de interesse geral da sociedade conhecer a posição do ministro da Economia sobre a privatização do Banco do Brasil ou a defesa do ministro do Meio Ambiente de aproveitar o momento de comoção causado pela epidemia de coronavírus para aprovar “de baciada” a desregulamentação das normas ambientais.

Numa reunião em que ministros e presidentes de bancos estatais criticaram duramente o controle externo realizado pelo Tribunal de Contas da União - sob o silêncio constrangedor do chefe da CGU - fica cada vez mais clara a importância de se submeter ao escrutínio da sociedade não apenas os documentos internos ou a agenda pública das autoridades, mas também o que elas discutem sob portas fechadas e longe dos holofotes da imprensa. Esse tipo de informação é fundamental, inclusive, para apurar se houve dolo ou erro grosseiro dos agentes públicos em suas decisões (vide MP nº 966/2020).

Assim como o Watergate aumentou a transparência no governo americano, o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro deveria estimular a adoção de uma legislação mais abrangente de gravação e divulgação futura das reuniões governamentais. Afinal, é muito melhor conhecer a história do país de forma institucionalizada do que por meio de grampos, vazamentos à imprensa ou decisões judiciais esporádicas.

Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.

Humilhação histórica das Forças Armadas. O enigma: "liberdade = hemorroida" - REINALDO AZEVEDO

UOL - 25/05



O momento em que Bolsonaro diz por que quer armar todos os brasileiros. Nada tem a ver com autodefesa. Pensa em guerra civil. E fez essa revelação entre dois generais. Humilhação inéditaImagem: Reprodução/UOL

A imagem que vocês veem acima flagra o exato momento em o presidente Jair Bolsonaro diz querer que todo mundo se arme no Brasil. E deixa claro que isso nada tem a ver com o enfrentamento de bandidos ou com a defesa pessoal. Raramente, ou nunca, as Forças Armadas passaram por tamanha humilhação.

À esquerda do presidente e à direita na foto, está o general Hamilton Mourão, vice-presidente. Do outro lado, o general Braga Netto, chefe da Casa Civil e até havia outro dia chefe do Estado Maior das Forças Armadas.

Ambos sabem que o presidente havia exonerado o general Eugênio Pacelli, do Comando de Logística do Exército. Ele teve de deixar a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército porque Bolsonaro se zangou com o militar. Seu erro: ter criado regras para rastrear armamentos e munições nacionais e importados. Seu terro: ter feito a coisa certa.

Bolsonaro não quer rastrear nada. Ele revogou as portarias. Assim, desaparece o controle de armas e munições no país. Mais: é no momento desse flagrante que o presidente dá ordem a Sergio Moro e a Fernando Azevedo e Silva para que baixem outra portaria multiplicando por 33 a quantidade de munição que pode ser comprada por um civil: de 200 unidades por ano para 55 POR MÊS. E, com efeito, no dia 23, a portaria veio à luz.

Reproduzo a fala inteira referente a armas, que tem um rasgo poético até agora incompreendido por quantos tenham tentado interpretá-la: a hemorroida como metáfora de liberdade. Leiam. Volto em seguida:

"Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. E se eu fosse ditador, né? Eu queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva ditadura. Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não da pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais.
(...)
É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado.
(...)
Que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade! Isso é uma verdade"


RETOMO

Generais conhecem muito bem a implicação de um eventual armamento generalizado da população, ao arrepio de qualquer controle.

Ao lado do presidente, Braga Netto sabe mais do que outros: foi ele o interventor na segurança púbica do Rio de Janeiro.

Já hoje, com algum controle, as milícias e o narcotráfico dão uma sova no Estado brasileiro — e não deixa de ser uma humilhação às Forças Armadas também, convenham — porque armados até os dentes.

Imaginem sem controle nenhum.

Mas Bolsonaro considera ser esse o caminho para preservar a liberdade. E a hemorroida.

Duvido que haja qualquer estudo na biblioteca das Três Forças que justifique esse ponto de vista. Duvido que algum militar responsável consiga defendê-lo à luz da segurança interna.

De combatentes contra a subversão, as Forças Armadas do Brasil se transformaram em promotoras passivas da guerra civil.

Levarão muitas décadas para se livrar dessa nódoa moral e ética.

Não é você, sou eu - LUÍS EDUARDO ASSIS

ESTADÃO - 25/05

Radicalismo fundamentalista uniu o presidente Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes; o populismo pode separá-los

Enquanto a epidemia avança, sob a proteção da incúria do governo federal, ficam claras as condicionalidades que nos esperam logo mais adiante.

Sabemos hoje que o déficit primário vai explodir. A previsão da Instituição Fiscal Independente é de um rombo de R$ 706,4 bilhões em 2020, quase seis vezes mais que o déficit originalmente previsto no Orçamento. Sabemos, também, que teremos uma recessão histórica, com queda do PIB de 6% ou mais. Nenhum brasileiro vivo testemunhou o que veremos neste ano.

Sabemos, ainda, que a crise política vai se agravar, fomentada pela verve primitiva do presidente da República. Pesquisa XP/Ipespe divulgada na semana passada mostra que 50% dos pesquisados avaliam o governo Bolsonaro como “ruim” ou “péssimo”, índice que estava em 39% em janeiro. É, ainda, bem menos que os 68% com que Michel Temer deixou o governo, mas a tendência deve se acelerar quando o desemprego subir. Bolsonaro já sente o bafo do impeachment e optou pelo populismo extremista de direita. Já está em modo de sobrevivência e qualquer projeto econômico que prometa resultados de longo prazo não serve. Do que ele precisa para evitar as labaredas da interrupção prematura do mandato? Crescimento da renda e do emprego, logo.

O que Paulo Guedes pode oferecer? Princípios liberais fundamentalistas e continência fiscal. O primeiro embate será com a suspensão do auxílio emergencial. Sem ele, o apoio ao presidente vai erodir ainda mais. Outro conflito surgirá com o Orçamento de 2021. Com a inflação muito baixa, a lei do teto orçamentário, se for mantida, imporá cortes descomunais em despesas que financiam atividades essenciais. O governo poderia propor uma reforma administrativa que sinalizasse corte nas despesas de pessoal. Mas não só seria pouco, como essa pauta contraria a natureza corporativista do presidente. Aumento de impostos? O presidente também não aceita, já que iria carcomer ainda mais sua base de apoio, agora entre os ricos. Quem sabe, então, um programa acelerado de privatizações para mitigar o avanço da dívida pública? Não, também não dá, porque o presidente não aceita a venda dos bancos oficiais e da Petrobrás, de onde poderia sair algum dinheiro graúdo.

Paulo Guedes pode oferecer apenas sangue, suor e lágrimas. Bolsonaro precisa de rápida recuperação do emprego para comprar tempo e mudar de assunto quando o impeachment for ventilado. O ministro pensa em reformas estruturais que podem preparar o País para uma arrancada – mas isso exige tempo e habilidade que faltam ao presidente. Bolsonaro está enredado no radicalismo autoritário da direita. Guedes é um liberal juramentado. A cloroquina econômica que demanda Bolsonaro o ministro não pode oferecer. Talvez Guido Mantega, se estiver disponível, possa pensar em algum programa de crescimento baseado em expansão fiscal que encante o presidente. Mas não Paulo Guedes.

Não tardará para que os dois tenham de discutir a relação. Algum pragmatismo poderia superar divergências. Um programa de investimentos públicos, apartado do Orçamento e fiscalizado por uma comissão específica, poderia dar algum alento ao nível de atividade. Mas o ministro não engoliu o sapo do Plano Pró-Brasil e parece não estar disposto a ingerir nenhum girino. Da parte do presidente, sua reconhecida visão ignara das coisas da economia o impede de perceber a gravidade da situação fiscal. Ele não quer saber se o pato é macho – ele quer o ovo. Sem recuperação rápida da economia – inviável, se a tônica for a austeridade –, a chapa vai esquentar. Tudo somado, a dupla está em rota de colisão. Eles (mas não nós) guardarão boas lembranças. O radicalismo fundamentalista os uniu. O populismo pode separá-los.

ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP.

Naufrágio à vista - LEANDRO COLON

FOLHA DE SP - 25/05

Em raro lapso de lucidez, Bolsonaro disse uma verdade na reunião ministerial

Presidente afirmou que seu governo está indo em direção ao 'iceberg'


É justo admitir que Jair Bolsonaro falou uma verdade em meio às barbaridades ditas na reunião ministerial do dia 22 de abril.

Em lapso raro de lucidez diante das evidências sobre a interferência na Polícia Federal, o presidente afirmou aos ministros que seu governo pode estar "indo em direção a um iceberg". "A gente vai pro fundo, então vamos se ligar, vamos se preocupar [sic]", disse.

Passado o choque da revelação de um episódio da zorra total, a certeza é a de naufrágio após a batida inevitável da gestão Bolsonaro com o iceberg. O vídeo revela um governo não só de insanos e despreparados como também de gestores completamente perdidos.

Muita gente nem deve ter percebido, mas a razão do encontro era o programa Pró-Brasil, coordenado pelo general Braga Netto (Casa Civil). ​

A proposta é um amontado de ideias de investimentos públicos e de números reciclados. Na prática, nada.

"É um plano Marshall brasileiro, né?", disse Braga Netto na reunião fechada com seus colegas ministros.

Plano Marshall foi o programa dos EUA para ajudar a reconstruir os países aliados devastados economicamente com a Segunda Guerra.

Ao ouvir Braga Netto, Guedes rebateu: "Não chamem de Plano Marshall porque revela um despreparo enorme". "Um desastre", acrescentou. "Vai revelar falta de compreensão das coisas", disse o ministro na frente do chefe da Casa Civil e do presidente Bolsonaro. "Pró-Brasil é um nome espetacular', exagerou Guedes.

À tarde daquele dia 22, Braga Netto convocou a imprensa para anunciar o programa no Palácio do Planalto. Guedes ficou de fora da entrevista. Pouco antes, jornalistas foram informados e publicaram que nos bastidores os militares haviam apelidado o Pró-Brasil de "Marshall".

Questionado pelos repórteres, o chefe da Casa Civil, talvez um tanto esquecido do que dissera no encontro privado com os colegas de governo, respondeu: "Não existe nenhum Plano Marshall, aqui existe o Pró-Brasil. Plano Marshall é outra coisa".

Leandro Colon
Diretor da Sucursal de Brasília, foi correspondente em Londres. Vencedor de dois prêmios Esso.

Batidas na porta da frente - FELIPE SCUDELER SALTO

ESTADÃO - 25/05

A hora é da qualificada elite burocrática do País. Mas isso requer liderança política


A covid-19 levou Aldir Blanc, mas sua obra é um fio permanente de beleza a nos guiar nestes tempos obscuros, a exemplo da canção Resposta ao Tempo. A resposta à crise não pode mais ser atropelada por agendas inadequadas. A falta de diagnóstico e de prognóstico turva a visão do governo. Ainda há tempo para salvar muitas vidas. A resposta tem de se pautar em dois eixos: o combate ao vírus, no curto prazo, e o planejamento para o pós-crise.

O isolamento social é inescapável, como explicou o sanitarista Gonzalo Vecina em artigo no Estadão de 20/5. A recessão econômica poderá ser pior do que a apontada no atual cenário pessimista da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, de 5,2%. Diante disso, a tarefa primordial é reduzir mortes e planejar um horizonte de recuperação da produção e do consumo. A volta à normalidade ocorrerá, tempestivamente, de maneira coordenada.

No eixo do combate ao vírus destacam-se quatro frentes de batalha: 1) guarnecer o SUS e os governos regionais; 2) disseminar os testes de diagnóstico e acelerar a compra de respiradores e a instalação de novas UTIs, em parceria com o setor privado; 3) mitigar os efeitos da crise sobre a renda dos mais pobres; e 4) intensificar as medidas de isolamento e as campanhas de higiene pessoal e de uso de máscaras. Comento cada uma a seguir.

1) Foram aprovados R$ 50,2 bilhões de auxílio aos governos estaduais e municipais, além de compensações de até R$ 16 bilhões nos fundos de participação desses entes federativos. Outros R$ 49,8 bilhões foram destinados à saúde, incluindo gastos diretos da União e transferências para Estados e municípios. Mas desse total, de R$ 116 bilhões, foram pagos apenas R$ 11,2 bilhões. É preciso transpor obstáculos burocráticos e acelerar os pagamentos, sobretudo no gasto com saúde.

2) “O tempo aprisiona”, diz a música de Aldir Blanc. A inépcia, também. É urgente promover um esforço nacional envolvendo o setor privado. Sua estrutura, seus profissionais e seu conhecimento têm de ser convertidos para as trincheiras da guerra ao vírus. Faltam testes, medicamentos, respiradores, UTIs e profissionais. Por hipótese, o aluguel ou construção de 30 mil leitos de UTI, ao custo médio diário de R$ 2 mil/paciente, por um período de três meses, representaria R$ 5,4 bilhões. É uma cifra muito pequena relativamente ao poder de fogo da União. Poderia ser comportada nos R$ 49,8 bilhões mencionados.

3) O programa emergencial de R$ 600 está sendo executado, apesar das filas e das dificuldades para acesso ao dinheiro. Dos R$ 123,9 bilhões fixados pelo governo no orçamento, R$ 76,4 bilhões já foram pagos. A IFI estima que o programa atingirá quase 80 milhões de brasileiros, ao custo de R$ 154,4 bilhões em três meses. A discussão sobre a prorrogação do auxílio é relevante, mas precisa ser feita no contexto de eventual reestruturação e unificação dos benefícios sociais já existentes.

4) As campanhas para higienização pessoal, controle de circulação de pessoas e uso de máscaras têm de ser intensificadas. Como apontado por Vecina, se o contágio não se distribuir no tempo, a demanda adicional de UTIs levará o sistema de saúde ao colapso.

No segundo eixo, o do planejamento para o pós-crise, é preciso ter claro o ponto de partida: a dívida pública aumentará mais de dez pontos porcentuais do PIB em 2020, algo como R$ 732 bilhões. Em 2021 será preciso retomar déficits públicos menores. Tarefa complexa a executar se o PIB aumentar muito pouco. A saída da crise envolve o compromisso com o controle dos gastos governamentais e com o aumento das receitas e dos investimentos públicos.

Os juros baixos ajudarão a elevar o investimento privado, mas cabe lembrar que a ociosidade da indústria já supera os 40%. Os recursos dos programas de crédito têm de chegar mais rapidamente às empresas. Também o programa de manutenção de emprego com redução de jornada merece atenção, uma vez que foram pagos até agora apenas R$ 4,5 bilhões dos R$ 51,6 bilhões previstos. Do contrário, fragilizaremos a retomada.

Um verdadeiro bunker é necessário para dirigir tudo isso. Os dois eixos são complexos e cheios de matizes que dependem de gente competente, gestores, especialistas e estudiosos. Em nada ajuda a súcia de camisas pardas a aplaudir o caos. A hora é da qualificada elite burocrática do País. Mas isso requer liderança política.

As tarefas são óbvias: coletar informações diárias de todos os Estados e municípios, com foco nos mais afetados pelo coronavírus, e agir, a partir do bom diagnóstico. E, claro, corrigir a rota quando necessário. Não é uma operação trivial.

Como na canção de Aldir Blanc, “(o tempo) sussurra que apaga os caminhos”, atropela vidas, é implacável com a irresponsabilidade. “Batidas na porta da frente. É o tempo...”. A melhor resposta? Governar.

Nota: Meu avô, Milton Scudeler, era assinante do Estadão e lia para mim os editoriais e artigos de opinião das páginas A2 e A3, onde agora tenho a honra de escrever periodicamente. Agradeço ao jornal pelo espaço aberto.

DIRETOR EXECUTIVO DA IFI

Devagar, a democracia extrai o tumor autoritário - VINICIUS MOTA

FOLHA DE SP - 25/05

Reunião de 22 de abril foi drama psicótico de grupo reprimido pelas instituições


Diante da pornografia em que se converteu o exercício do poder presidencial sob Jair Bolsonaro, o que na pandemia custa vidas e empregos, dá para entender a ansiedade de quem preza a democracia e o bom governo pela solução rápida do impasse. Mas ela dificilmente virá.

Não deve vir porque uma das características das democracias é a prevalência da forma sobre a vontade.

Esse mecanismo é o mesmo que dificulta a intromissão do presidente da República nos órgãos policiais do Estado, impede a ministra rompedora dos Direitos Humanos de prender governadores e prefeitos e evita que o desmatador do Meio Ambiente vá passando a boiada por cima das regulamentações antimotosserra.

A pauta de fato da reunião de 22 de abril na sede da Presidência era imprecar contra esse sistema. Ali uma súcia de sádicos reprimidos sonhou acordada com adversários esmagados, sujos de excrementos e acometidos de dores lancinantes. O que as instituições vedam ao grupo foi por ele verbalizado no drama psicótico.

Autoritários são assim. Odeiam o que embota os seus desejos imediatos. Tomam atalhos para contornar a norma e jamais dispensam a força em benefício próprio. Que morra depressa quem tiver de morrer com o vírus para eu tocar o barco da economia. Que vão para a cadeia os juízes que me importunam. Que se evaporem o delegado que investiga minha família e o fiscal que me multou.

Democratas são feitos de outro tecido. Não admitem fulminar a cartilagem que os protege do despotismo nem quando ela também contribui, no presente, para postergar a depuração do regime das liberdades. Formam o partido da paciência cívica.

Daí vem a nota otimista destes dias. Quem cabeceia na fossa obscura dos apetites e das alucinações perdeu a perspectiva do tempo. Trava uma batalha de vida ou morte a cada minuto. Comemora não ter sido atingido pela “bala de prata”, mas não enxerga que afundou mais um pouco nem que a derrocada continua.

A democracia, com vagar sacramental, empurra o tumor para fora.

Ciência e autoritarismo - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 25/05

O que estamos presenciando hoje no Brasil é um retrocesso civilizatório

Não é qualquer ideia, por ser uma mera opinião, que tem validade. Se isso fosse verdade, o conhecimento não se estruturaria, a civilização não avançaria e a vida humana seria impossível. Ideias argumentadas são as que, tendo pretensão de validade, são submetidas à discussão e ao confronto, aceitando testes, debates e verificações. O primeiro tipo conduz ao arbítrio e o segundo, a ordenações políticas baseadas na liberdade.

A ciência, grande expoente do processo civilizatório, aquele que torna um bípede falante qualquer um verdadeiro ser humano, teve um longo percurso histórico, com pensadores mais avançados pagando até com sua própria vida. Foi um processo penoso e difícil através do qual a força das ideias terminou por vigorar contra a violência da dominação política.

O conhecimento se estrutura, a experiência é valorizada, o confronto público de ideias torna-se uma condição deste progresso e seus efeitos se fazem sentir no bem-estar de todos, graças à descoberta de novas técnicas. Vacinas, protocolos de saúde e medicamentos são seus frutos. A pesquisa termina por estabelecer suas próprias regras, de modo que todos se possam reconhecer enquanto agentes de um conhecimento de dimensões coletivas.

Do ponto de vista político, a liberdade no nível do conhecimento se traduz por novas formas de estruturação do Estado, vindo a ser um princípio a organizar as relações sociais e políticas. O espaço do arbítrio, embora não possa ser eliminado, é então circunscrito, de onde surge a noção moderna de cidadania.

Ora, o que estamos hoje presenciando no País é um retrocesso civilizatório. O bolsonarismo, nome para designar um amontoado de ideias carentes de fundamentação, porém eficaz do ponto de vista do convencimento de uma parte da população, tem como uma de suas características principais o menosprezo da ciência e, por via de consequência, da liberdade. O desrespeito ao outro é total, tanto do ponto de vista científico quanto moral, este último se traduzindo pela ausência de compaixão e pela banalização da morte.

Trata-se de um movimento de extrema direita, que deve, evidentemente, ser distinguido da direita conservadora e da direita liberal, que prezam a ciência, a moral, o debate livre a democracia, a despeito, muitas vezes, de divergências sobre o significado desses conceitos. Quisera aqui salientar princípios comuns por eles compartilhados, como os que são igualmente vigentes no campo da esquerda, excluindo sua franja autoritária e totalitária. A extrema direita não adere a esses valores democráticos.

O que temos visto no tratamento da atual pandemia é a afirmação de meras opiniões do presidente Bolsonaro como se fosse um pesquisador a emitir “verdades” de que só ele conheceria o fundamento. O exercício autoritário do poder se conjuga com o desrespeito completo aos procedimentos científicos. É simplesmente aterrador que dois ministros da saúde tenham sido substituídos em curto espaço de tempo por não concordarem com as opiniões “médicas” do presidente. Um presidente não precisa ser especialista em nada, basta cercar-se de assessores competentes. E o que fez o terceiro ministro? Simplesmente seguiu o arbítrio presidencial.

O que faz o presidente? Assessora-se com seus filhos e seguidores, cujo único “princípio”, se é que essa palavra possa ser aqui empregada, consiste em construir uma narrativa que lhe sirva, nas redes sociais, para seu projeto reeleitoral. Que isso seja bom para a saúde dos brasileiros é algo meramente secundário.

As redes sociais, aliás, são campo particularmente propício para esse tipo de prática autoritária, pois lá passa a valer a narrativa, a pluralidade e a desordem das narrativas, como se todas as opiniões fossem de igual valor. Uma ideia científica passa a ser uma simples narrativa, com a qual se confrontam outras narrativas que, uma vez desmentidas, são substituídas por outras narrativas carentes de validade, e assim por diante. A ideia balizada, argumentada, desaparece ante uma avalanche “informativa”, hoje identificada como fake news.

Protocolos científicos, laboriosamente elaborados e estabelecidos há décadas, se não séculos, são simplesmente atirados para o ar, passando a valer a solução mágica de um medicamento determinado, lançado ao léu por supostos cientistas que nem seguiram as regras do seu meio. No caos do vale-tudo, seria uma “solução” entre todas, como se fosse igual escolher entre a conservação da vida, a cura da doença e aventuras perigosas no corpo de cada um.

As consequências do desprezo pela ciência e pelos princípios democráticos se fazem igualmente sentir no domínio dos valores morais. Joga-se contra a ciência, a favor do autoritarismo, quando corpos se amontoam em hospitais e cemitérios. A compaixão humana desaparece, entra-se numa contabilidade de necrotérios, como se as pessoas devessem estar submetidas ao espectro desse tipo de morte. A política põe-se a serviço das trevas e da ignorância – em linguagem popular, do capeta.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS)

Auxílio emergencial e clientelismo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 25/05

Não são pequenas as chances de que a tradição clientelista se imponha com o auxílio emergencial, ainda que sua transformação em permanente encontre dura resistência na realidade


O establishment político já calcula os prováveis ganhos eleitorais advindos do pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais que perderam renda em razão da pandemia de covid-19. Como sempre, esse cálculo ignora as tremendas restrições fiscais do País e, sobretudo, trata a crônica desigualdade de renda como oportunidade para cultivar clientes entre os mais pobres.

Desse modo, tanto o atual governo federal como a atual legislatura no Congresso, constituídos de políticos que se elegeram com a barulhenta promessa de demolir o sistema corrupto que perpetua a desigualdade, agem como os velhos coronéis da Primeira República, cujo poder se assentava no mandonismo e na relação paternalista com os eleitores das regiões remotas, dependentes em tudo do Estado. A pandemia revelou que nosso atraso vai muito além do esperado recuo inédito do Produto Interno Bruto - estamos retrocedendo mais de um século também na política, que, conforme anunciado pelo bolsonarismo, deveria ser “nova”.

A bem da verdade, esse processo já vinha acontecendo muito antes, e parecia ter encontrado seu zênite nos governos lulopetistas. O Bolsa Família, reunião de diversos programas de transferência de renda e auxílio social já existentes, tornou-se a marca mais vistosa da Presidência de Lula da Silva e de Dilma Rousseff. Desde que o primeiro benefício do Bolsa Família - que deveria ser um instrumento de ascensão social - começou a ser pago, os mapas eleitorais mostram a gratidão dos eleitores beneficiados, na forma de maciças votações em favor dos candidatos do PT, em especial na Região Nordeste, particularmente castigada pela pobreza crônica.

Há, portanto, um padrão de exploração da miséria com a finalidade de garantir uma base eleitoral suficiente para a perpetuação no poder. Nem a bolsonaristas nem a lulopetistas interessa a desgastante discussão de mecanismos de redução da desigualdade de renda que impliquem grandes e duras reformas, com vista a ampliar as oportunidades reais de ascensão social das camadas mais pobres da população. É sempre bom lembrar que a “nova classe média” festejada nos anos dourados do lulopetismo no poder tinha celular e TV de plasma, mas tinha também esgoto correndo a céu aberto na porta de casa.

O saneamento básico insuficiente é apenas a face mais vergonhosa de um atraso que, de tão persistente, só pode ser proposital. Enquanto o presidente da República perde o precioso tempo dos brasileiros com questiúnculas como “ideologia de gênero” e radares nas estradas, quase nada se fez para melhorar o ambiente de negócios no País, ponto de partida para qualquer programa que vise a impulsionar a produtividade e, consequentemente, a elevar a renda dos brasileiros sem necessidade de estimulantes demagógicos.

É claro que a emergência causada pela pandemia obriga o poder público a agir prontamente de maneira a conferir um mínimo de proteção aos que, de uma hora para outra, viram sua renda desaparecer. É questão de vida ou morte. O problema é a tentação populista, a mesma que presidiu a transformação do Bolsa Família, que deveria ser temporário, em expansão permanente e contínua.

E o oportunismo pode se dar de diversas maneiras. O governo parece ter encontrado no pagamento do auxílio emergencial uma excelente ocasião, por exemplo, para expandir a atuação da Caixa Econômica Federal no País, abrindo milhões de contas no banco estatal não só para os beneficiários sem conta em banco, mas também para os que já são clientes de outros bancos. Não satisfeita, a Caixa estuda abrir contas para beneficiários do Bolsa Família, que hoje podem sacar seu dinheiro até em lotéricas. Nada como uma boa desculpa para ampliar a carteira de clientes do banco estatal.

Assim, ainda que a transformação do auxílio emergencial em permanente encontre dura resistência da realidade - o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, informou que isso é “fiscalmente impossível” -, não são pequenas as chances de que a tradição clientelista se imponha mais uma vez. Será surpresa se, afinal, a preocupação com a sustentabilidade fiscal de longo prazo prevalecer sobre o mais rasteiro interesse eleitoral.

A nova do Judiciário - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 25/05

É achincalhe proposta de criar mais um TRF em plena crise e sem debate aberto

Que o Judiciário brasileiro, um dos mais caros do mundo, imagina viver em uma realidade econômica paralela já se sabe. Beira o escárnio, num exemplo recente, que os três maiores tribunais estaduais brasileiros —de São Paulo, Minas e Rio— tenham mantido os penduricalhos extrassalariais dos juízes em plena crise da pandemia.

Descolamento da realidade não é privilégio da Justiça estadual. No âmbito nacional, caminha a passos largos a proposta de criação de uma nova corte, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), a ser instalado em Minas Gerais, por meio do desmembramento do TRF-1, que tem sede em Brasília.

Com votação na Câmara dos Deputados adiada para julho, o projeto já é negociado entre o Palácio do Planalto e os novos aliados do centrão, o que não sugere altruísmo. Urge escancarar os custos envolvidos e os interesses subjacentes.

Autor da propositura, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio de Noronha, sustenta que não haverá impacto no Orçamento. Alguns de seus colegas de corte, no entanto, pensam que a iniciativa poderá, sim, gerar despesas adicionais.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, também expressou preocupação com o açodamento na condução da medida e o parco envolvimento do Conselho Nacional de Justiça no debate.

Defensores da criação do órgão sustentam, não sem alguma razão, que há sobrecarga evidente no TRF-1, que se quer desmembrar.

Dados do CNJ apontam, com efeito, que, na Justiça federal, o tribunal registra o maior volume de trabalho por magistrado na segunda instância e o maior tempo de tramitação de processos (três anos e um mês). Sem um plano de como o novo TRF mudaria tal panorama, contudo, o debate se dá no escuro.

Cumpre buscar com seriedade e transparência as melhores alternativas para enfrentar a morosidade do Judiciário, com atenção à realidade orçamentária do país —que já era precária antes da calamidade do novo coronavírus e exigirá ajustes duros uma vez superada a retração econômica já em curso.

Na ausência de um debate aprofundado sobre o projeto, que se mostra impossível no momento, votá-lo às pressas será um desserviço ao acesso à Justiça.

Cogitar fazê-lo em tempos de emergência achincalha as dezenas de milhares de brasileiros enfileirados à espera do auxílio oficial. Após a pandemia, a discussão vai requerer mais planejamento e menos pressão corporativa.

Vídeo, mentiras e palavrões - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 25/05

A divulgação na íntegra, exceto referência aos chineses, deu uma boa ideia de como estamos sendo governados


É raro ver um filme, depois de ler seu argumento e roteiro. Você sabe o que vai acontecer. No entanto, desconhece como os atores vão representar o texto, como reagirão às falas, como se movimentam no espaço cênico.

O famoso vídeo da reunião do Conselho de Ministros já foi vazado a ponto de termos uma ideia de como transcorreu. Sim, havia dúvidas sobre os palavrões. Como foram ditos, com que expressão facial, em que contexto, que tipo de olhar suscitaram.

Tenho impressão de que o vídeo veio na íntegra. O corte da fala de Weintraub é tão óbvio que todo mundo percebe o que disse: não queria ser escravo do PC chinês. Talvez seja uma das frases mais inocentes de todo o texto.

Não foi uma reunião de Conselho de Ministros tal como a supomos. Foi mais parecido com uma pajelança, uma tentativa de Bolsonaro de animar seu Ministério. O debate mesmo era sobre o plano Pró-Brasil.

O trecho básico, que interessa ao processo nascido com a queda de Moro, é o que afirma que não vai deixar sua família se foder, nem seus amigos. Por isso, mudaria até o ministro se necessário. Mudou o superintendente da Polícia Federal, e Moro caiu em seguida.

O nível das intervenções de Bolsonaro é bastante singular se cotejado com os documentos de reuniões presidenciais. Um dos momentos mais dramáticos foi afirmar que, se a esquerda vencesse, todos estariam cortando cana e ganhando 20 dólares por mês.

Como escritor, o que mais me impressionou foi a maneira como figurou a perda da liberdade: “Eles querem nossa hemorroida”, disse. Da primeira vez, hesitei. Seria isso mesmo? De onde tirou a hemorroida para expressar a perda da liberdade, não tenho a mínima ideia. Os analistas talvez nos ajudem.

A divulgação na íntegra, exceto referência aos chineses, deu uma boa ideia de como estamos sendo governados. Não apenas pelas palavras escolhidas, mas pela falta de conexão, de uma liderança que tivesse a agenda na cabeça e tentasse trabalhar o Ministério no conjunto como o maestro que rege uma orquestra afinada.

A perversidade ficou evidente na fala do ministro Ricardo Salles. Ele sabe que a Amazônia está sendo destruída num ritmo alucinante: de agosto de 2019 a abril de 2020 o desmatamento cresceu 94,4 % em relação ao período de agosto de 2018 a abril de 2019.

A tática explícita de Salles é aproveitar a grande preocupação com a pandemia e passar todas as agendas que significam enfraquecer a legislação ambiental e acelerar o processo destrutivo em curso.

Eu já intuía isso. O Human Rights Watch publicou um relatório semana passada, mostrando como as multas na Amazônia deixaram de ser devidamente cobradas desde outubro e como os funcionários sentem-se desamparados na execução da lei.

Consegui passar essa mensagem no meio de uma notícia sobre Covid. É preciso usar todas as brechas para neutralizar a tática perversa.

O general Heleno escreveu uma nota ameaçadora antes da divulgação do vídeo. Não entendeu que o ministro Celso de Mello apenas submeteu ao procurador-geral a hipótese de periciar o telefone de Bolsonaro e seu filho Carlos.

A ameaça é clara: intervenção militar. Heleno é um militar com experiência internacional. Creio que ele e as Forças Armadas sabem que existe uma pandemia e que ela é um tema decisivo para a Humanidade.

Creio também, caso leiam os jornais, que sabem o papel de Bolsonaro no imaginário internacional: o de um negacionista, cada vez mais perigoso na medida em que o Brasil torna-se o epicentro da pandemia mundial.

Um golpe militar no Brasil vai colocar o país em choque com o mundo. Dois temas vão se entrelaçar: a pandemia e a destruição da Amazônia.

Não creio que depois de tanta reflexão histórica, estudos, seminários, palestras, cursos no exterior, as Forças Armadas queiram participar dessa aventura. Já associaram sua imagem à cloroquina. Será que ouviriam o general Heleno e os defensores de uma intervenção militar?

Desta vez, não cairemos no erro de resistir com armas. Será uma luta longa e pacífica, alavancada pelo próprio mundo. Da primeira vez foi uma tragédia; agora, será uma farsa com consequências profundas. Se é possível dar um conselho, ai está: por favor, não tentem.

Governo fracassa no socorro a 16,3 milhões de empresas - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 25//05

Pandemia impôs um custo brutal ao setor. Em São Paulo, 117 mil estabelecimentos estão fechados


O governo prometeu, e fracassou. Está deixando para trás 16,3 milhões de empresas de micro, pequeno e médio portes que acreditaram no anunciado socorro oficial durante a emergência da pandemia. É um universo empresarial sobre o qual existe pouca luz e, em geral, sempre foi tratado com desdém na política econômica.

São dez milhões registrados como microempreendedores individuais (MEI, para a Receita Federal), um contingente que dobrou nos últimos cinco anos. Antes da crise provocada pelo novo coronavírus, conforme dados do Sebrae, oito em cada dez deles ganhavam acima de dois salários mínimos, com renda mensal domiciliar na média de R$ 4.400,00. Apenas uma minoria (24%) possuía fonte de renda além do trabalho em casa. Operavam, basicamente, em condições estruturais precárias — 68% não possuíam previsão de caixa para o mês seguinte.

Igualmente fragilizados estão os 6,3 milhões de pequenos e médios empresários (PMEs), mostra estudo recém-concluído do Google/IAT sobre os impactos da crise na vida brasileira. Juntas, essas pequenas e médias empresas são responsáveis por 52% dos empregos com carteira assinada no setor privado. Ou seja, constituem a fonte básica de renda para mais de 16 milhões de trabalhadores na economia formal, em todo o país.

A pandemia impôs um custo brutal para esse universo empresarial. Em São Paulo, por exemplo, 117 mil estabelecimentos comerciais estão fechados, segundo a Fecomércio. Foi interrompida, também, a cadeia de negócios na fronteira entre lojas e comerciantes informais — os ambulantes —, com perdas estimadas por dirigentes da Associação Comercial em quase R$ 1 bilhão por dia.

O drama se estende à pequena e média indústria paulista. Pesquisa Datafolha/Simpi com 181 indústrias, entre os dias 8 e 12 de maio, indica que a ampla maioria (86%) não tinha acesso ao crédito prometido pelo governo. Seis em cada dez estavam totalmente paradas ou com a maior parte do maquinário desligada — e sem qualquer auxílio estatal.

A crise está expondo a inoperância governamental em sua plenitude. Falha o prometido socorro às micro, pequenas e médias empresas, e malogra a assistência aos economicamente mais vulneráveis.

Antes da surpresa pandêmica, a burocracia impôs uma fila a dois milhões de pessoas com direito à aposentadoria. Com a disseminação do vírus criou-se outra fila, de dezenas de milhões, nos guichês da Caixa Econômica Federal. Em abril, o governo imaginava que teria de pagar R$ 600, temporariamente, a cerca de 25 milhões de “invisíveis” na economia. Em maio descobriu que são mais de 50 milhões, além dos inumeráveis sem qualquer tipo de registro em agências do Estado brasileiro.

Brasília precisa acordar e agir rapidamente na realidade de uma economia à beira do abismo. Sua ineficácia está ampliando a dimensão do desastre.