sexta-feira, maio 15, 2020

Na ânsia de caçar fascistas, certas patrulhas são parecidas com eles - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 15/05

Para as patrulhas, certos livros são tão nocivos que a mera presença deles corrompe as almas


Confesso: quando a pandemia começou, cheguei a pensar que as “guerras culturais” tinham chegado ao fim. Ou, pelo menos, a uma trégua. Você entende: com a mortalidade do vírus e as consequências económicas que ele traz, aqueles assuntos politicamente corretos seriam enterrados pela urgência dos temas adultos.

Ingenuidade minha. O mundo está cheio de gente desocupada. E o confinamento forçado não ajuda na saúde psíquica do pessoal.

Uma polémica recente no Reino Unido ilustra o ponto. Aconteceu com Michael Gove, um dos ministros do governo de Boris Johnson. Nesses tempos em que falamos cada vez mais via internet, revelando ao público os livros que temos nas estantes, o país ficou a conhecer melhor as preferências bibliográficas do cavalheiro.


Pasmo e horror: entre os seus livros, Michael Gove tem uma cópia de “The War Path”, de David Irving, e outra de “The Bell Curve”, de Richard J. Herrnstein e Charles Murray.

Para se entender melhor a dimensão do “crime”, David Irving é um famoso negacionista do Holocausto. Richard Herrnstein e Charles Murray, apesar de não terem o mesmo currículo de Irving, tentam explicar em “The Bell Curve” como certos grupos étnicos são geneticamente menos inteligentes do que outros.

A sentença foi rápida e fulminante: Boris Johnson tem no governo um negacionista e um racista. Os livros são a prova.

O caso divertiu-me numa primeira fase: o literalismo dos fanáticos é sempre um prazer perverso. Mas depois, olhando para a minha própria biblioteca, tentei encontrar exemplares problemáticos que, suspeita grave, já apareceram nas minhas transmissões via Skype.

Basicamente, não tenho perdão. Para começar, “The Bell Curve” está presente no meu covil, juntamente com outros trabalhos de Charles Murray. Não tenho nenhum David Irving; mas tenho obras de Robert Faurisson, que também milita na mesma escola negacionista.

Além disso, não há praticamente ditador nenhum que não esteja bem representado. “Mein Kampf” está em duas versões —inglesa e portuguesa. Os panfletos revolucionários de Lênin também cá estão —muito bem encadernados.

E, para não ir mais longe, tenho todos os discursos de Salazar, o ditador português.

Poderia argumentar, em minha defesa, que a posse de certos livros não transforma o sujeito em racista, negacionista, nazista, comunista ou salazarista. Quando muito, faz dele um leitor, um estudioso, um curioso.

Mais ainda: a única forma de entender a história e de desenvolver anticorpos para certas ideias malignas implica conhecê-las e confrontá-las.

São argumentos inúteis para quem regrediu mentalmente até a caverna do pensamento mágico. Para as patrulhas, certos livros são tão nocivos que basta a mera presença deles para que o feitiço corrompa as almas.

Isso significa que o melhor é não ter essas obras malditas. Ou, em alternativa, destruí-las sem hesitar, de preferência naquelas fogueiras vigorosas com que os nazistas queimavam a literatura decadente.

Engraçado: na ânsia de caçar fascistas, certas patrulhas nem se apercebem como são parecidas com eles.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Ilhados no manicômio - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 15/05

Logo seremos impedidos de entrar em outros países. Cada brasileiro já está sendo visto como uma bomba



Já viajei muito por aí e, em todos os países em que estive, senti que, ao ouvir a palavra “brasileiro”, as pessoas reagiam com encantamento, prazer e até inveja. Era, talvez, um eco de Carmen Miranda, Copacabana, Pelé, o Carnaval, “Garota de Ipanema”, símbolos históricos de um país musical, colorido e ensolarado. Claro que, mais a par da realidade, eu estranhava tanta aprovação. Ela ignorava nossas mazelas, como a ditadura, a tortura, a violência, a corrupção, a miséria. Mas era como se, mesmo que soubessem, não fosse da conta deles.

Agora, pela primeira vez, o que se passa aqui dentro ficou da conta do mundo. O Brasil está sendo visto como uma bomba prestes a explodir e despejar o coronavírus por toda parte. Nossos vizinhos na América do Sul estão alarmados —cada metro de fronteira, em qualquer dos sentidos, pode levar à morte de seus nacionais. Claro que isso não deve preocupar o governo brasileiro. Mas talvez preocupe o dos países para os quais nos sentamos nas patas traseiras e arfamos, e eles tomem certas providências.

Brevemente seremos proibidos de entrar nos países da União Europeia. Eles não querem se arriscar a admitir oriundos de uma população em que cada indivíduo pode contaminar outros dois com a Covid-19. Para isso, baseiam-se não só nos nossos números, que não demoram a ultrapassar mil mortos por dia e disparar, como na indiferença com que isso é tratado pelos supostos responsáveis.

Aos olhos internacionais, o Brasil tornou-se uma piada sinistra —um país em que fazer as unhas é uma atividade essencial, o ministro da Saúde é um cadáver ambulante e o presidente é um tresloucado que usa máscara cenográfica, humilha seus médicos e enfermeiros e estimula os humildes a sair às ruas para morrer.

E, assim como não poderemos sair desse manicômio, ninguém de fora será louco de vir aqui ou pôr dinheiro nele.


Aras é mais realista do que o rei na defesa do breu - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 15/05


Em petição enviada ao Supremo Tribunal Federal, o procurador-geral da República Augusto Aras associou-se ao governo na defesa do breu. Pediu ao ministro Celso de Mello que mantenha no escuro, longe dos olhares da opinião pública, o grosso da gravação que registra a reunião ministerial do dia 22 de abril, peça central do caso Moro X Bolsonaro.

Aras revelou-se menos concessivo do que a Advocacia-Geral da União. Pior: mostrou-se mais realista do que o rei. O próprio presidente da República admite divulgar uma fatia maior do vídeo. Ao falar sobre o tema numa transmissão ao vivo pelas redes sociais, Jair Bolsonaro não suspeitava que o procurador-geral lhe saísse melhor do que a encomenda.

Aras defendeu junto ao ministro Celso de Mello, relator da encrenca no Supremo, que sejam divulgadas apenas as fatias do vídeo estritamente relacionadas ao inquérito, "notadamente as que tratam da atuação da Polícia Federal, da 'segurança', do Ministério da Justiça, da Agência Brasileira de Inteligência e da alegada falta de informações de inteligência das agências públicas."

Defensor de Bolsonaro, o advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Junior, defendeu que sejam expostas à luz solar todas as manifestações de Bolsonaro na reunião, menos "a breve referência a eventuais e supostos comportamentos de nações amigas", além das falas dos ministros e presidentes de bancos públicos presentes à reunião.

Quer dizer: o advogado-geral foi mais generoso com a curiosidade alheia do que o procurador-geral. Bolsonaro disse o seguinte aos devotos que carregam o seu andor nas redes sociais: "São dois trechos de 30 segundos que interessam ao processo. Mas, da minha parte, autorizo a divulgar todos os 20 minutos, até para ver dentro de um contexto. O restante a gente vai brigar. A gente espera que haja sensibilidade do relator [Celso de Mello]. É uma reunião reservada nossa."

No serviço público, a publicidade é a regra. O sigilo, a exceção. Pela lei, o Planalto poderia ter requisitado a classificação da fita da reunião como sigilosa, secreta ou ultrassecreta. Mas não ocorreu a ninguém que seria necessário proteger segredos de polichinelo, desejados num encontro com mas de duas dezenas de pessoas, incluindo dirigentes de bancos públicos.

Integrante do seleto grupo de autoridades que tiveram acesso à íntegra do vídeo em que a cúpula do governo se reúne sob atmosfera de boteco, Aras justifica a defesa do breu com o argumento de que a divulgação da íntegra transformaria o inquérito em "palanque eleitoral precoce das eleições de 2022." Se procurar um pouco, o procurador notará que o palanque já está montado. De um lado, Bolsonaro, candidato à reeleição. Do outro, Moro, potencial adversário do ex-chefe.

Aras esmiuçou suas preocupações: "A divulgação integral do conteúdo o converteria, de instrumento técnico e legal de busca da reconstrução histórica de fatos, em arsenal de uso político, pré-eleitoral (2022), de instabilidade pública e de proliferação de querelas e de pretexto para investigações genéricas sobre pessoas, falas, opiniões e modos de expressão totalmente diversas do objeto das investigações."

Deve-se torcer para que o esforço exibido pelo procurador na busca de argumentos para poupar o governo da exposição de um vexame seja duradouro. O empenho pode ser útil na hora de procurar no inquérito elementos para o oferecimento de uma denúncia criminal que Bolsonaro dá de barato que o procurador-geral não formalizará.

Aras quer sigilo e age como defesa de Bolsonaro; Dilma não teve 12º jogador - REINALDO AZEVEDO

UOL 15/05

Augusto Aras, procurador-geral da República, não decepciona, não é mesmo? Nem a mim nem a Bolsonaro, ainda que por razões distintas. Manifestando-se no prazo dado por Celso de Mello, relator no Supremo da investigação que apura se o presidente fez uma interferência imprópria na PF, Aras se posicionou contra a liberação da íntegra do vídeo e o fez alguns graus acima da frieza que ficaria bem a alguém no seu posto.

Se José Levi Mello do Amaral Júnior, advogado-geral da União, pede que se libere o conteúdo de toda a reunião, exceção feita às considerações que digam respeito às nações amigas e a falas dos demais membros da reunião, Aras defende que se dê publicidade unicamente às falas do presidente que dizem respeito à Polícia Federal e a órgãos de segurança do governo porque só elas teriam relação com as acusações feitas pelo ex-ministro Sérgio Moro. Ou seja: o procurador-geral é ainda mais restritivo do que o advogado-geral, o que não deixa de ser estranho uma vez que a AGU é quem faz a defesa do presidente.

Aras opta por um singularíssimo percurso argumentativo para defender a não divulgação. Começa, ora vejam, sustentando que "a publicidade reafirma e fortalece a democracia; dá razões e meios aos cidadãos para defenderem seus direitos. Por isso, a ampla liberdade de acesso às informações públicas compõe um elenco de princípios e regras muito caros ao Estado democrático de direito positivados na Constituição Federal."

Parece que ele vai pedir a liberação de tudo, certo? Errado! Aí vem o cavalo de pau no argumento: "Ocorre que, paralelamente a isso, a restrição do acesso protege o cidadão em sua intimidade e, por vezes, confere segurança jurídica e mesmo a paz social". O procurador ainda lembra que a "publicidade é a regra, e o sigilo, a exceção". E ele, então, fica com a exceção não com a regra.

Ele próprio lembra: "A jurisprudência desta Suprema Corte consolidou os seguintes critérios para a restrição do acesso: que "(i) haja previsão legal; (ii) destine-se a proteger a intimidade e a segurança nacional; e (iii) seja necessária e proporcional".

Muito bem! Não existe lei determinando o sigilo. Não se cuida em falar de intimidade porque são homens públicos, em espaço público a debater assuntos públicos. Restaria a questão da segurança nacional. Será mesmo?

Aras faz, então, algo estranhíssimo. Atentem para este trecho:
"Ainda que não tenham sido previamente classificadas como sigilosas nos termos da Lei 12.527/2011, boa parte das informações deliberadas naquela reunião do dia 22 de abril de 2020 poderiam, a critério do Presidente, sem exagero ou desvio de finalidade, ser consideradas questões de segurança de Estado, nos termos do art. 232 da referida lei. Assim, estaria satisfeito o primeiro critério jurisprudencial da 'previsão legal' para restrição de acesso."

Como é? Então Aras pede que Mello faça o que Bolsonaro, no uso de suas atribuições, não fez, que é decretar o sigilo da reunião? O procurador-geral se mostra, assim, mais realista do que o próprio rei. Como não pode ser ele próprio a determinar o sigilo, pede que o ministro do Supremo o faça.

O doutor introduz ainda uma outra vertente exótica nas suas considerações:
"A divulgação integral do conteúdo o converteria, de instrumento técnico e legal de busca da reconstrução histórica de fatos, em arsenal de uso político, pré-eleitoral (2022), de instabilidade pública e de proliferação de querelas e de pretexto para investigações genéricas sobre pessoas, falas, opiniões e modos de expressão totalmente diversas do objeto das investigações, de modo a configurar fishing expedition."
"Uso político e pré-eleitoral" em 2020 tendo em vista o pleito de 2022? Dado o contexto, não há como afastar, então, a conclusão de que, segundo o procurador-geral, a eventual divulgação da íntegra da reunião seria eleitoralmente útil aos adversários de Bolsonaro e prejudicial ao presidente.

Ora, quem faz, nesse caso, "fishing expedition" é o procurador-geral, que passa a pescar em águas turvas, atuando como procurador do presidente da República, resguardando seus interesses eleitorais. Eu, por exemplo, nem havia pensado nIsso. A ser assim, porque há eleições a cada quatro anos, inverta-se o fundamento trazido à luz pelo próprio Aras: declare-se que o sigilo é a regra, e a publicidade, a exceção.

Dados os trechos transcritos pelo advogado-geral da União, está claro que Jair Bolsonaro reclamou de todos os órgãos de segurança, incluindo, em sua fala, a Polícia Federal; que anunciou que faria intervenção em todos eles (e, pois, também na Polícia Federal) e que, em dado momento, afirmou: "Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura". A menos que o GSI faça a segurança de seus amigos, estava falando, sim, sobre a Polícia Federal".

A função do procurador-geral não é pôr palavras na boca do presidente, mas também não é retirar; não é inventar um contexto para a sua fala, mas também não é eliminá-lo a ponto de consagrar o absurdo, como se fosse razoável ficarmos com a interpretação de que, então, o GSI faz a segurança dos amigos do presidente ou de que este ameaçou, em público, demitir o general Augusto Heleno.

Recomendo a Augusto Aras, procurador-geral, que não mais recorra ao processo eleitoral como justificativa para, na coisa pública, fazer a sigilo trinfar sobre a publicidade. Afinal, doutor, como há pleito a cada dois anos, ou estamos em ano eleitoral ou estamos em ano pré-eleitoral, né? A ser assim, o excelentíssimo vai acabar defendendo a tese de que um eleitor desinformado decide com mais propriedade do que um informado.

Querem saber? Sem conhecer o vídeo, acho que José Levi Mello do Amaral Júnior, o advogado-geral, fez bem o seu trabalho. Como membro da AGU, não esperava que adotasse outro procedimento. A defesa de Sérgio Moro o acusa de ter omitido passagens importantes, mas também isso é parte do jogo.

Já a peça de Aras pode não ser surpreendente pela escolha — achei que fosse fazer a defesa do sigilo, ainda que seja um pouco constrangedor para ele —, mas surpreende um tantinho pelo tom. O que se tem ali, mesmo sem entrar no mérito da fala do presidente, é uma peça que ficaria bem na pena de um advogado de defesa de Bolsonaro.

Eis aí: o atual presidente tem o que Lula, Dilma e Temer não tiveram, não é mesmo? O procurador-geral como o 12º jogador em campo.

Aras procura fazer um gol de mão para o presidente. Um deles entrou para a história: o primeiro de Maradona nas quartas de final da Copa de 1986 na vitória da Argentina por 2 a 1 contra a Alemanha. Os argentinos levaran o título. O juiz tunisiano não viu o que o já lendário jogador chamou de "a mão de Deus". Que Celso de Mello enxergue com mais aguda vista.

Uma pergunta: Aras está pensando em se tornar terrivelmente evangélico neste ano, quando Celso de Mello deixa o STF, ou só no próximo, quando sai Marco Aurélio?

Transcrição de vídeo desnuda versão de Bolsonaro - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 15/05


"Não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu", declarou Jair Bolsonaro na fatídica reunião ministerial de 22 de abril. "Vou interferir. Ponto final", proclamou ele noutro trecho. Não são manifestações obtidas de terceira mão. Constam de transcrição oficial levada pela Advocacia-Geral da União ao Supremo Tribunal Federal. As palavras do presidente valem por um strip-tease.

Antecipando-se à decisão do ministro Celso de Mello, relator do caso Moro X Bolsonaro na Suprema Corte, a AGU extraiu da gravação feita durante a reunião os trechos que considera relevantes para o inquérito em que o presidente é acusado de tramar a interferência política na Polícia Federal.

A transcrição é parcial. Mas o pouco que ela expõe já é suficiente para desnudar a versão oficial difundida pelo próprio Bolsonaro. "Eu não falo Polícia Federal" na gravação, dissera o presidente aos repórteres. Mentira. A menção ao órgão escorre dos lábios do presidente no instante em que ele se queixa do desempenho dos serviços de espionagem do governo. "Pô, eu tenho a PF, que não me dá informações", ralhou a certa altura.

Às voltas com a síndrome do que estava por vir, Bolsonaro também afirmara aos repórteres que o conteúdo da fita estilhaçaria a acusação de Moro segundo a qual ele ameaçara demitir o então ministro da Justiça se não pudesse trocar o chefe da PF no Rio de Janeiro.

Na versão de Bolsonaro, ele mencionara no encontro apenas preocupações com a sua segurança pessoal e a proteção de seus filhos e amigos. Queixa dirigida não a Moro, mas ao general Augusto Heleno, chefe do GSI, o Gabinete de Segurança Institucional. Lorota. O contexto e os fatos que se sucederam ao encontro não deixam dúvidas. Os alvos de Bolsonaro eram a PF e Moro.

No trecho mais importante da coletânea editada pela AGU, Bolsonaro soa assim: "Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura."

O presidente prossegue, em timbre ameaçador: "Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira."

Nesse trecho, Bolsonaro não cita a PF nem Moro. Mas também não há vestítigio de referência ao GSI, responsável pela segurança do presidente e de seus familiares. Não se ouve tampouco o nome do general Heleno. Confrontada com os fatos, a versão de Bolsonaro, ecoada no Supremo pela AGU, não para em pé.

Tomado pelas palavras, Bolsonaro não parece preocupado com a própria segurança ou com a integridade dos filhos. Inquieta-se com hipótese de surgimento de "sacanagem" com potencial para "foder" a "família toda" ou algum "amigo".

A inquietação com os amigos destoa do trabalho do GSI, pois a lei que prevê o fornecimento de segurança ao presidente e seus familiares não contempla a extensão do serviço de guarda-costas aos amigos do rei.

De resto, o que se verificou nos dias subsequentes à reunião foi uma incursão de Bolsonaro na estrutura da Polícia Federal, não no GSI. O presidente exonerou o direitor-geral da PF, Mauricio Valeixo. Fez isso com requintes de falsidade. Anotou no ato de exoneração que o delegado deixou o cargo "a pedido". Mentira. O Planalto Incluiu no documento a assinatura digital de Sergio Moro. Falsidade.

Nas pegadas do expurgo de Valeixo, sobrevieram o desembarque de Moro; a tentativa de nomeação do delegado doméstico Alexandre Ramagem, cuja posse foi barrada pelo Supremo; a troca de Ramagem pelo subordinado dele na Abin, Rolando de Souza; e a mexida no comando da superintendente da PF no Rio.

Tudo exatamente como ameaçara Bolsonaro na reunião: "Vai trocar [o superintendente do Rio]; se não puder trocar, troca o chefe dele [Valeixo]; não pode trocar o chefe, troca o ministro [Moro]. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira." No GSI, a cabeça de Augusto Heleno continuou sobre o pescoço do general. Não há registro de substituições no grupo que cuida da segurança de Bolsonaro e de sua família.

Afora a percepção de que Bolsonaro tentou mesmo colocar a PF a serviço do seu clã, a transcrição trazida à luz pela AGU revela que o presidente tem uma noção esquisita sobre a tarefa dos órgãos de inteligência do governo. Do modo como se expressou, o presidente parece associar esse setor mais à bisbilhotagem do que à coleta de dados estratégicos, úteis à tomada de decisões de um presidente.

Bolsonaro declarou: "Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações; eu tenho as inteligências das Forças Armadas que não têm informações, a Abin tem os seus problemas, tem algumas informações, só não tem mais porque tá faltando realmente... temos problemas... aparelhamento, etc. A gente não pode viver sem informação."

Nesse ponto, o presidente fez uma inusitada analogia familiar: "Quem é que nunca ficou atrás da... da... da... porta ouvindo o que o seu filho ou a sua filha tá comentando? Tem que ver pra depois... depois que ela engravida não adianta falar com ela mais. Tem que ver antes. Depois que o moleque encheu os cornos de droga, não adianta mais falar com ele: já era. E informação é assim."

Na sequência, Bolsonaro se diz preocupado com a "estratégia". Absteve-se de definir o que entende por estratégia. Limitou-se a ralhar e ameaçar: "E, me desculpe, o serviço de informação nosso — todos — é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade."

O linguajar rastaquera, os modos rústicos e a ignição instantânea fazem parte do DNA de Bolsonaro. Mas os temas tratados na reunião do dia 22 de abril parecem ter aguçado os seus maus bofes. Em certos trechos, o presidente dirigiu-se aos subordinados como se estivesse fora de si. E sempre que isso ocorre, Bolsonaro não consegue esconder o que tem por dentro.

O excesso de irritação de Bolsonaro acabou produzindo material para um inquérito criminal. Resta agora ao presidente confiar na aposta que fez ao indicar Augusto Aras para o posto de procurador-geral da República.

Se Aras decidir que a investigação contra Bolsonaro deve ser arquivada, babau. Não importa a quantidade de evidências em contrário. Do ponto de vista jurídico, o assunto estará encerrado. É o que espera Bolsonaro. Para evitar que eventuais desdobramentos políticos lhe ameacem o mandato, o capitão se acerta com o rebotalho do centrão.

De concreto, por ora, apenas a evidência de que o rei se desnudou. O preço do apoio do centrão dependerá do tamanho da nudez.

O galope do dólar - CELSO MING

ESTADÃO - 15/05

Mesmo quem acha que o Brasil esteja à beira do precipício não consegue explicar tamanho desabamento do real diante do dólar dos Estados Unidos.



Apenas em 2020 (até esta quinta-feira), a desvalorização da moeda nacional foi de 45,1%, de longe a maior dentre as moedas dos países em desenvolvimento. Até mesmo o peso da Argentina, que acaba de passar mais um calote da sua dívida, afundou menos do que real, ou 12,8%, como está na tabela.

Em geral, uma moeda se desvaloriza nessas proporções quando o país que a emite está quebrado nas suas contas externas e, assim, cria para investidores e empresas a percepção de que não terá dólares suficientes para honrar seus compromissos no exterior. Mas, desta vez, não é o que acontece com o Brasil. As contas correntes, onde são contabilizadas entradas e saídas de moeda estrangeira no comércio, nos serviços e nas transferências unilaterais (menos fluxo de capitais), vinham tendo um déficit da ordem de 2,8% do PIB, de fácil cobertura. É mais provável agora que esse rombo seja zerado ou fique perto disso, pela redução de importações e de viagens ao exterior e pelo forte aumento das exportações.

Uma explicação foca o tombo dos juros internos. Como as aplicações financeiras no Brasil, descontada a inflação, passaram a render quase nada, deixou de valer a pena trazer dólares para aplicar no mercado financeiro interno e ganhar com a diferença de juros. Mas essa operação de arbitragem (carry trade) deixou de valer a pena porque, tanto aqui como lá fora, os juros são negativos ou quase, e ainda é preciso correr o risco do câmbio.


Desempenho de moedas emergentes ante o dólar desde 2020 Foto: Estadão

A única explicação que sobra para essa sofreguidão pela busca de moeda estrangeira é a forte deterioração da vida pública brasileira. A política propriamente dita é uma barafunda. Ninguém se entende, o governo não sabe o que quer, nem mesmo o novo ministro da Saúde consegue sintonia com o presidente sobre a melhor maneira de enfrentar a pandemia. Os políticos do Centrão se aproveitam da desordem para cobrar o que bem entendem em troca de apoio duvidoso e provisório.

A economia está à beira da calamidade, se já não está no meio dela. Ninguém sabe hoje para onde vão as contas públicas. A percepção prevalecente é a de que afundam. O Congresso vai autorizando “orçamentos de guerra”, sem olhar para o interesse público. E as reformas, que antes da pandemia deveriam ajudar a pôr a casa em ordem, estão engavetadas.

A economia real vai desmaiando. Não é que a indústria esteja parada; está andando para trás. O setor de serviços, que corresponde a 73% do PIB, mantém grande número de seus segmentos a portas fechadas. Se não começou, a quebradeira está para começar. Ninguém sabe para onde vai o desemprego, renda e consumo despencaram. É cada vez maior a probabilidade de que o mergulho do PIB neste semestre será medido por dois algarismos. Enfim, o único fator que consegue explicar o tombo do real diante do dólar é a perda de confiança. Nada indica melhoras a caminho.

A terrível distopia de Bolsonaro - PEDRO DORIA

ESTADÃO - 15/05

Este é um dos problemas deste governo: ele trabalha na mentira, em uma obra fictícia. Com o coronavírus, se tornou uma distopia terrível.


Existe um Brasil paralelo lá fora. Nele, não existem os muitos estudos científicos que vêm dizendo, nas últimas semanas, que a cloroquina não ajuda no combate ao novo coronavírus. O número de mortes este ano em nada difere dos anteriores. Há caixões sendo enterrados com pedras dentro. As pessoas não morrem de Covid-19, e sim de outras doenças, mas médicos desejosos de inflar os números fraudam as certidões de óbito. E, claro, o Brasil parou por ordem de governadores neuróticos, uma conspiração que inclui gente eleita da centro-direita à esquerda. O fato de que toda a Europa menos a Suécia parou, de que todas as Américas pararam, assim como um bom naco da Ásia, sequer registra. Em geral, damos a este fenômeno um nome: fake news. E é isso mesmo. Mas é hora de incluirmos um segundo anglicismo no debate público: gaslighting. Porque as notícias falsas servem a um projeto maior e mostram como a internet opera para ajudar a sustentar a popularidade do presidente Jair Bolsonaro.


O Brasil paralelo não existe. Este é um dos problemas deste governo. Ele trabalha na mentira. E a arquitetura de comunicação baseada em redes sociais facilita a construção desta obra fictícia.


Que fique claro: este Brasil paralelo inteiro não é real. É falso, mas é inventado com os requintes daqueles escritores tipo J. R. R. Tolkien, George R. R. Martin ou J. K. Rowling. É isso que está no Senhor dos Anéis, em Game of Thrones ou Harry Potter: a criação de mundos inteiros, com suas próprias histórias internas, para romances de fantasia. Assim, o país dos caixões enterrados com pedras é o mesmo onde uma conspiração marxista tomou as rédeas das artes, universidades e redações. O país em que governadores por algum motivo desconhecido decidem parar propositalmente a economia é o mesmo em que algo chamado “ideologia de gênero” tem por objetivo sexualizar cedo crianças e, sempre que possível, leva-las à homossexualidade.

Cada peça de informação dessas é uma fake news. Mas o conjunto forma um universo inteiro que tem sua lógica interna e apresenta uma visão de mundo. Isto é gaslighting. O termo vem de uma peça importante do Modernismo inglês, Gas Light, escrita em 1938 pelo dramaturgo Patrick Hamilton. No cinema, teve como atriz Ingrid Bergman. A história tem no centro um casal em que o marido manipula psicologicamente sua mulher até que ela começa a duvidar de sua própria memória e percepção.

Como estratégia política de comunicação, gaslighting é a mesma coisa. É a criação de um universo paralelo que, repetido consistentemente, passa a se tornar crível para alguns. Mas o processo não se dá apenas pela criação destas versões, ela inclui também uma técnica de ação que ocorre via redes sociais. Não é complicada: uma pessoa conhecida, com muitos seguidores e que defenda um ponto de vista, é desafiada com um argumento fantasioso. Não é raro que responda com desorientação. Porque não basta um contra-argumento. É preciso questionar toda a premissa que sustenta o desafio, é preciso provar que aquele mundo não existe. Porque esta pessoa tem muitos seguidores, aquele diálogo vai ganhando audiência.

Este Brasil paralelo vem sendo construído pelo escritor Olavo de Carvalho e seus seguidores há bem mais de uma década. Com a emergência das redes sociais, ganhou dinâmica e volume. E quando Jair Bolsonaro cita em suas lives ou comenta nas entrevistas à porta do Alvorada alguma destas histórias, ele só as torna mais plausíveis. Afinal, trata-se do presidente da República. O problema é o seguinte: continua sendo tudo mentira. O Brasil paralelo não existe. Este é um dos problemas deste governo. Ele trabalha na mentira. E a arquitetura de comunicação baseada em redes sociais facilita a construção desta obra fictícia.

Que, com o coronavírus, se tornou uma distopia terrível.


A fila anda - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 15/05

Bolsonaro tem crise de abstinência quando não persegue alguém. Vítima da vez é Nelson Teich

“Tratar isso como não essenci..., como... como não essen... como essencial é um passo inicial. Foi decisão do presidente... que decidiu isso aí. Saiu hoje isso? Manicure, academia... barbearia? Não... Isso aí... não é atribuição nossa.”

Foi assim, pego de surpresa, balbuciando, que Nelson Teich, ministro da Saúde, médico oncologista respeitado, com especialização em gestão em saúde, descobriu numa entrevista coletiva que não apenas não manda nada como passou a ser o novo saco de pancadas do presidente Jair Bolsonaro no governo.

Mal acabou de demitir Luiz Henrique Mandetta e de empurrar porta afora o “superministro” Sérgio Moro, o presidente já passou a desautorizar ninguém menos que o novo ministro da Saúde, justamente em meio à pandemia e com o número de mortos chegando a mil por dia. Por dia!

O enredo é bem conhecido. Primeiro, o presidente dá bronca no ministro ou auxiliar em entrevistas. Depois vai minando a autonomia e a autoestima da vítima. Por fim, demite ou pressiona para a demissão. No script, falas recheadas de autoafirmação: “Eu sou o presidente, pô!”, “eu que fui eleito”, “Eu nomeio, todos têm de ser afinados comigo”, “Quem manda sou eu. Ou vou ser um presidente banana?”.

A fila das vítimas é longa. Além de Mandetta e Moro, o delegado Maurício Valeixo, da PF, o general Santos Cruz, secretário de governo, o amigão Gustavo Bebianno, secretário geral da Presidência, o economista Joaquim Levy, do BNDES, e o cientista Ricardo Galvão, do Inpe. Sem falar na secretária da Cultura, Regina Duarte, que está em banho maria, nem nos superintendentes da PF no Rio, um atrás do outro. Em compensação, Ernesto Araújo (anti-China), Weintraub (anti-STF e antiportuguês) e Ricardo Salles (desmatamento) continuam muito prestigiados.

Assim como Regina Duarte, Nelson Teich assumiu sem nunca ter assumido e é uma ilha na própria casa, provavelmente nem sabe os nomes da sua equipe. Não indicou ninguém para o Ministério, engoliu uma penca de militares que não conhecia e nunca conseguiu apresentar um programa, um modelo de combate ao coronavírus. Da última vez que tentou, acabou cancelando a entrevista minutos antes do início.

Há um muro entre Jair Bolsonaro e Nelson Teich: a ciência. Apesar de bolsonarista desde a campanha de 2018, Teich tem uma biografia a zelar. Não vai jogar isso fora para agradar ao presidente, contrariando estudos científicos do mundo inteiro e pregando o fim do isolamento social e o uso indiscriminado de cloroquina.

Enquanto Teich admite até o lockdown em algumas circunstâncias e regiões, Bolsonaro mantém sua cruzada insana contra o isolamento e, portanto, para jogar mais e mais pessoas nas ruas, nas UTIs e nos túmulos. Enquanto o ministro avisa que a cloroquina não salva vidas e tem graves efeitos colaterais, o Dr. Jair “está exigindo” seu uso.

É assim, na base do achismo e centrado nele mesmo, que Bolsonaro solta uma polêmica MP livrando agentes públicos de responsabilidade por decisões durante a pandemia, define uma “guerra” contra o governador João Doria, confraterniza com o grande capital, tenta capturar eleitores pobres do PT e mantém sua relação esquizofrênica com deputado Rodrigo Maia. Ataca, depois chama em palácio e abraça.

Enquanto isso, convém ler e entender o artigo de ontem do vice Hamilton Mourão no Estadão, com múltiplos recados e puxões de orelhas no Judiciário, governadores e mídia, sem um pingo de crítica (ou autocrítica) aos graves erros do governo. “Nenhum país do mundo vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil”, decreta o vice. Impossível discordar. Mas faltou nomear quem efetivamente causa tanto mal assim.

Bolsonaro dribla seu ministro da Economia - CLAUDIA SAFATLE

Valor Econômico - 15/05

O presidente é a maior oposição ao seu governo


“Não há governo”, constata e lamenta o ex-ministro Delfim Netto. Ele teme pelo dia em que o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril vier a público. “Acho que isso é o maior opróbrio a que será submetida a sociedade brasileira. Vai ser uma vergonha internacional! E ninguém mais vai nos leva à sério”, comentou o ex-ministro que, em seus 92 anos completados no dia 1º de maio, disse que nunca viu ou teve notícias de uma “esculhambação dessa dimensão” nos governos anteriores do país. O vídeo, recheado de palavrões, foi submetido a investigadores da Polícia Federal, Segundo quem o assistiu, ele indica que Bolsonaro pressionou o então ministro da Justiça, Sergio Moro, a trocar o superintendente da PF do Rio, que estaria no encalço da sua família, dos seus filhos.

“O presidente Jair Bolsonaro só faz confusão”, completou Delfim, acrescentando que Bolsonaro fica alimentando uma briga “absurda” com João Doria, governador de São Paulo, em uma disputa eleitoral que se mistura à política de combate à pandemia da covid-19 e deixa as pessoas completamente confusas.

“Em 2022, na campanha pela sucessão presidencial, Bolsonaro vai dizer que o Doria matou 1 milhão de pessoas e o Doria acusará Bolsonaro de ter matado 1 milhão de pessoas”, com as políticas de isolamento social total ou, como prega o presidente, de isolamento vertical em decorrência da pandemia.

A mais recente decisão de Bolsonaro foi adiar o veto à proposta de reajustes salariais para determinadas carreiras, que consta do projeto de socorro a Estados e municípios. O presidente deu tempo para que os governadores que ainda não tinham reajustado os salários pudessem dar um aumento agora. Todos eles, porém, estão passando por profundas dificuldades financeiras.

Na quarta feira, o Congresso Nacional aprovou por 70 votos favoráveis, dois contra e uma abstenção projeto de lei que autoriza a concessão de reajuste salarial neste ano para os policiais civis, militares e bombeiros do Distrito Federal. A permissão se estende também aos servidores militares do Amapá, Rondônia e Roraima e o reajuste é retroativo a janeiro.

O governo estima uma despesa de mais de R$ 505 milhões, que será financiada pelo Fundo Constitucional do Distrito Federal. Outros Estados, como Minas Gerais e Rio de Janeiro, ambos falidos, já haviam aprovado reajustes aos servidores neste ano.

Assim, Bolsonaro cumpre promessa feita ao ministro da Economia, Paulo Guedes, de vetar reajustes salariais, mas só depois de eles já terem sido aprovados, tornando o veto sem efeito algum. “São traíras”, reagiu o ex-ministro.

Ele defende uma profunda reforma do Estado, a começar pelas carreiras, salários e estabilidade dos servidores, tão logo se acalmem os efeitos da pandemia. “Nos últimos seis anos o funcionalismo teve aumento real de salários de 40%”, citou.

Delfim acredita que os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, aprovariam uma boa reforma do Estado, até porque Maia chegou a sugerir uma redução de salários de servidores como medida de ajuda ao combate à pandemia. Foi dissuadido, porém, “pelo próprio governo”, disse o ex-ministro.

A crise econômica decorrente da pandemia é brutal. “Estou convencido de que o PIB [Produto Interno Bruto] cai entre 7% a 8% neste ano e a inflação vai para 1,5%”, estimou.

Ele vê como acertada a aprovação da PEC do “Orçamento de Guerra”, que vai permitir a contabilidade separada dos gastos com o combate ao coronavírus, que deverá chegar a casa dos R$ 800 bilhões. Sobre o Orçamento normal continua a vigorar a lei do teto de gastos. E as contas da pandemia terão que ser, de alguma forma, resolvidas pelo governo.
Delfim disse que também gosta do que vê na ação do Banco Central, que, segundo a PEC do “Orçamento de Guerra”, poderá dar liquidez a todo o sistema. Considera “louvável” o trabalho conjunto da área fiscal do governo com o BC, que ele acredita que começou com o Ilan Goldfajn à frente da autoridade monetária e está, hoje, em um nível de integração que nunca esteve. “Essa é uma das coisas boas que a tragédia, a confusão e a fuzarca do Bolsonaro não atingem”.

A questão do investimento como base da recuperação da economia pós-coronavírus é uma grande incógnita. “Ninguém vai investir aqui quando o presidente é a maior oposição ao seu governo”, disse ele.
“ É muito simples. Se você não encontrar uma forma nova de acomodar o volume de investimentos do Estado dentro do orçamento ordinário - separando o orçamento de custeio e dos investimentos, com sempre se fez - e preparar uma lista de bons projetos executivos com boas taxa de retorno para atrair o setor privado, nunca mais o país se recupera.”

Faz 30 anos que o Brasil está em subdesenvolvimento. “Se compararmos a renda per capita do Brasil com a dos Estados Unidos, que não é das mais brilhantes, em termos de paridade do poder de compra, ela foi de 20% em 1945, chegou a corresponder a 38% nos anos 80 e hoje está no patamar de 28%”, realçou. Ou seja, está se devolvendo tudo o que cresceu no passado.

Delfim aposta em um programa de renda básica como um sucedâneo do auxílio emergencial de R$ 600. “Não acredito que se tenha força política para simplesmente acabar com esse auxílio. Vamos ter que repensar o país. O Brasil nunca mais será o mesmo.”

Ao assumir um programa dessa natureza, sobrarão ainda menos recursos para os investimentos, e é aí que entra a reforma do Estado, pois é com pessoal a segunda maior despesa do Orçamento público, depois da Previdência. “ Não dá para aceitar todos os direitos ‘mal adquiridos’ pelos servidores”, sublinhou.

Neste momento que talvez seja o mais grave da história contemporânea do Brasil, é importante que as elites política e administrativa do país se conformem com o fato de que os recursos são finitos. E parem de passar a conta dos sucessivos “rombos” para a sociedade, que já vai ter que arcar com os pesados custos da pandemia.

O jogo do impeachment - ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK

ESTADÃO - 15/05

Em que medida ele estreita as possibilidades de atuação eficaz no combate à pandemia e a seus desdobramentos?

Salta aos olhos que, se continuar isolado, fragilizado e acuado como está, o presidente estará fadado a enfrentar dificuldades redobradas para lidar com a pandemia e seus complexos desdobramentos socioeconômicos. Não surpreende que Bolsonaro insista em reservar posição para poder alegar inocência quando a conta desses desdobramentos chegar. Mas, se as notícias sobre a letalidade da pandemia continuarem tão alarmantes como se teme, é bem possível que o seguro que Bolsonaro vem tentando fazer, na esperança de que o custo político da recessão possa recair sobre governadores e prefeitos, acabe se revelando proibitivamente caro.

É natural que a popularidade do presidente esteja caindo, na esteira das suas dificuldades com a pandemia e a crise econômica. O problema é que, tendo aberto uma terceira frente, ao desencadear crise política tão grave, Bolsonaro se viu agora exposto a risco crescente de impeachment. O que torna o quadro ainda mais intrincado é a forma peculiar com que Bolsonaro vem reagindo à elevação desse risco. Em contraste com o ex-presidente Temer, que, a partir do episódio do porão do Jaburu, passou a pautar cada movimento seu pelo objetivo de minimizar o risco de impeachment, Bolsonaro tem se permitido reações que, muito ao contrário, parecem exacerbar tal risco e chegam até a dar margem a novas razões para impeachment.

O sequenciamento usual do impeachment envolve, primeiro, identificação de crime de responsabilidade e, a seguir, formação da coalizão requerida para aprovar o pedido de impeachment na Câmara. Mas o sequenciamento que Bolsonaro deveria temer é outro: paulatina formação de uma coalizão em favor do impeachment na Câmara, súbito movimento de manada que pareça assegurar a maioria requerida e, só então, escolha dos crimes de responsabilidade a alegar.

Bolsonaro deveria ter em conta a famosa frase do ex-presidente Gerald Ford sobre a questão que, adaptada ao caso brasileiro, pode ser expressa em português claro como “crime de responsabilidade é o que a maioria da Câmara dos Deputados entender como tal num dado momento” (“High crimes and misdemeanors” should be defined as “whatever a majority of the House of Representatives considers them to be at a moment in history”).

Apesar de suas reações irrefletidas, Bolsonaro afinal deu mostras de ter percebido o risco a que está exposto. E vem tentando se resguardar contra isso no Congresso. Mas, de novo, há nessa iniciativa claro contraste com Temer, que contava com sólida coalizão governista previamente construída, graças a uma trajetória parlamentar de sucesso, em que ocupou por dois mandatos a presidência da Câmara. O que agora se vê é algo bem distinto: um movimento tardio e um tanto desesperado de Bolsonaro para negociar às pressas, com o que há de pior no Centrão, a montagem de uma coalizão governista na Câmara que pelo menos lhe possa assegurar os 172 votos necessários para bloquear o avanço de um processo de impeachment na Casa.

Tudo indica que o risco de impeachment continuará a assombrar o presidente por muito tempo. Em que medida isso estreitará ainda mais suas possibilidades de atuação eficaz no combate à pandemia e a seus graves desdobramentos socioeconômicos?

Saberá o Planalto abandonar o cabo de guerra com governadores e prefeitos e passar a tratar com a devida ponderação as complexas escolhas envolvidas nas decisões sobre timing, formatação e flexibilidade de uma saída concertada do confinamento, com cuidadosa contraposição dos riscos de agravamento da pandemia e dos custos crescentes de aprofundamento da recessão? Conseguirá o presidente conciliar a preservação da equipe econômica com as condições do seguro contra o impeachment contratado com a pior parte do Centrão?

Respostas desalentadoras a tais indagações sugerem que é bem provável que, ao tornar o presidente ainda mais incapaz de enfrentar de forma adequada as duas grandes crises que vêm aterrorizando o País, o risco de impeachment poderá se elevar na esteira do agravamento da situação.

ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

O AI-5 de Bolsonaro e Guedes - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 15/05

Medida provisória que protege agente público é direito criativo de lunáticos


A medida provisória 966 é escandalosamente inconstitucional. No hospício a que, por hábito, chamamos “governo”, resta só loucura. Foi-se o método. Quer a excludente de ilicitude da pandemia ou o AI-5 do coronavírus. Segundo o texto, os agentes públicos só poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem por dolo ou erro grosseiro. É direito criativo de lunáticos.

O texto vale para decisões ligadas à Covid-19, afeitas à saúde e à economia. O que é “erro grosseiro”? Jair Bolsonaro e Paulo Guedes explicam: é o “erro manifesto, evidente e inescusável, praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.” O que esse mar de subjetividade quer dizer? Qualquer coisa. Contra o usuário do serviço estatal.

Dispõe o parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

A inconstitucionalidade da MP, pois, é arreganhada. Poderiam objetar: a responsabilização do Estado na relação com o cidadão resta preservada, o que a MP altera é o “direito de regresso”, que é a possibilidade de o ente estatal, então, acionar o servidor.

Errado! Quando se limita uma demanda ao tal “erro grosseiro” e sua absurda imprecisão, o direito de apresentar uma petição ao Estado vai para o ralo. Sob o pretexto de proteger o servidor, querem criar o habeas corpus preventivo para o Estado.

Sem a evidência do “erro grosseiro” e do “dolo”, legitima-se o ato do ente estatal por ser ente estatal. Lembra o artigo 11 do AI-5: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”. Vale dizer: aquilo a que chamavam “revolução” legitimava o ato, e o ato, tudo o que dele derivasse. Era o círculo perfeito da tirania.

De fato, situações como a da pandemia podem gerar tal receio nos servidores que há o risco do apagão administrativo. Já existem os instrumentos para responder a isso. Um deles é a lei 13.655, de abril de 2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Leiam.

Ela é eficaz, nas esferas civil e administrativa, para proteger o servidor e o Estado de eventuais ações ou decisões judiciais fundadas apenas em “valores jurídicos abstratos, sem que que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Na esfera penal, há a nova lei que pune abuso de autoridade.

No texto da trinca desastrada, está escrito que “o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”. Ora, o tal “nexo de causalidade” entre a conduta e o resultado danoso é o que comumente se chama “prova”. Não dá!

O presidente, com sua militância irresponsável e dolosa em qualquer esfera, vê se agigantar a montanha de cadáveres, mesmo com a brutal subnotificação. O ministro falha de maneira grotesca num diagnóstico minimamente realista da crise e na assistência a pobres e empresas.

Ambos temem uma avalanche de ações por improbidade administrativa e tentam uma vacina para se proteger. Estão perdidos e vituperando contra os mortos.

O tempo passou na janela, e as Carolinas não viram. Bolsonaro e Guedes têm seus fantasmas debaixo da cama. Num caso, o comunismo; no outro, o nacional-desenvolvimentismo. São, com a licença do Caetano Veloso de 1968, dois combatentes que pretendem matar amanhã velhotes inimigos que morreram ontem. Atrasos distintos e combinados. Suas ideias povoam cemitérios de passado e do presente, literal e metaforicamente.

Como não haverá tanques para atuar como “Deus ex machina” na tragédia dos mortos sem sepultura individual, buscam esbulhar direitos dos vivos para se proteger de sua própria incompetência. Ganharam um necessário Orçamento paralelo de guerra. Agora querem uma Constituição paralela. Não terão.

Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

A fabricação de uma guerra - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 15/05

Milhões esperam a segunda parcela dos R$ 600. Enquanto o governo atrasa, Jair Bolsonaro faz propaganda do caos.


No início do mês, Jair Bolsonaro declarou que o país só não tinha ondas de “saques e violência” graças ao pagamento dos R$ 600 do auxílio emergencial. Sem querer, o presidente denunciou a perversidade do próprio governo. Milhões de brasileiros que perderam renda com a crise esperam há mais de 15 dias pela segunda parcela do benefício.

Enquanto o governo atrasa a transferência do dinheiro, Bolsonaro faz propaganda do caos. Na conversa que teve com empresários nesta quinta (14), ele disse prever “saque a supermercados, desobediência civil”. Ainda completou: “Não adianta querer convocar as Forças Armadas”.

Por desinteresse ou incompetência, o presidente abre mão de comandar a aplicação das medidas emergenciais contra os efeitos da pandemia. Longe disso, prefere explorar a pressão econômica sobre os miseráveis para se proteger politicamente e atacar seus adversários.

Na reunião com os associados da Fiesp, Bolsonaro pediu ajuda dos ricos nessa missão. Como se patrocinasse a formação de uma milícia, disse aos empresários que eles deveriam “jogar pesado” com governadores que implantaram medidas de isolamento. “Jogar pesado, porque a questão é séria, é guerra”, disse, antes de citar a ameaça de desordem.

Em sua cruzada, o presidente se contenta em dizer apenas o óbvio: “As pessoas, não tendo renda, não vão ter o que comer em casa”. Ele ignora o fato de que o governo gerencia, aos trancos, um programa de assistência muitas vezes maior do que o Bolsa Família, justamente para evitar que isso aconteça.
Bolsonaro finge desconhecer que o isolamento não é um fim em si mesmo, mas uma maneira de ganhar tempo até que o país desenvolva uma estratégia para retomar suas atividades com segurança.

O presidente não apresenta nada disso. Limita-se a fazer uma campanha claudicante pelo tal “isolamento vertical” e a fazer campanha da cloroquina como droga milagrosa, só para tumultuar o debate. O único plano de Bolsonaro é a guerra e o caos.

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

A vida numa ‘live’ sobre coronavírus - FERNANDO GABEIRA

ESTADÃO - 15/05

Política de negação da extrema direita encontrou no Brasil sua face mais rude

Nem sempre tenho chance de falar sobre tudo isso que está acontecendo. Quero dizer, limito-me a comentar todos os dias apenas alguns aspectos de uma realidade que me desafia, ou, se quiserem, me atropela.

Nesta semana tive a chance de conversar com o embaixador Marcos Azambuja, num encontro promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Além da amizade, partilhamos um certo senso de humor, que sobrevive mesmo nestas horas sombrias.

Trabalho com a questão ambiental desde a década de 1970. Sei que as pessoas têm certa dificuldade em reconhecer um perigo invisível. Foi assim no desastre de Chernobyl. Muitos europeus não acreditavam que o próprio leite que consumiam poderia estar contaminado. Em Goiânia não era tanto a invisibilidade, mas a sedução de uma pedra brilhante (césio-137) que enganava as pessoas na Rua 57.

Com Chernobyl acentuou-se o declínio das classes dirigentes soviéticas. A epidemia de coronavírus não trouxe desgaste do mesmo nível para o PC chinês. Há um vácuo da presença americana, uma vez que o país abandonou suas pretensões de liderança e refugiou-se no lema America first. Coube a uma potência média, a Austrália, com apenas 25 milhões de habitantes, lançar uma iniciativa internacional para apurar a responsabilidade da China.

Quem gostava muito de comparar a Austrália com o Brasil era Lionel Brizola. Não é minha intenção. A Austrália tem um governo conservador e a China como seu maior parceiro comercial. No entanto, encarou o problema e ainda por cima unificou as forças políticas internas, num esforço comum.

O governo brasileiro censura a China nos bastidores e nas redes sociais, algo bastante imaturo. Nesse caso, o melhor seria ficar calado.

Mas o pior foi a incapacidade de encontrar uma resposta nacional e solidária no combate ao coronavírus. A política de negação da extrema direita internacional acabou encontrando no Brasil sua face mais rude.

Bolsonaro negou a importância da pandemia, afirmando que não passava de uma gripezinha. Consequentemente, negou toda a política de isolamento social, estimulando seus seguidores a combatê-la.

Quando surgiram as primeiras mortes e depois elas foram se acumulando, o processo de negação estendeu-se aos próprios mortos. Seria mesmo tanta gente ou estava havendo uma superestimação?

Com as imagens dos caixões vieram novas dúvidas: existe gente dentro ou são caixões cheios de pedras? Em Minas foi divulgado o vídeo de uma testemunha vendo pedras em caixão. Certamente, uma militante paga. Uma deputada federal chegou a afirmar que um caixão no Ceará estava vazio.

Assim como nega o coronavírus em todas as etapas, Bolsonaro quer passar para a nova fase, como se ele não tivesse devastado a saúde dos brasileiros, sem planos de transição. O Brasil tornou-se um caso internacional. Reportagens, memes, comentários escandalizados na TV estrangeira, Bolsonaro aos poucos se transforma em vilão mundial. Essa é uma das razões por que o título da nossa conversa é a tempestade perfeita. O vírus no Brasil metamorfoseou-se em molécula política.

Muitos dizem que a pandemia é o grande drama que vivemos desde a 2.ª Guerra Mundial. Mas, se observamos aquele período, a situação do Brasil é pior. Vargas custou, mas encontrou seu rumo. Bolsonaro simplesmente não consegue sintonia com o esforço nacional na luta contra o coronavírus. O Brasil não era um dos principais protagonistas da guerra, mas está se tornando uma das principais vítimas da pandemia.

Estamos, como todo mundo, sepultando sonhos. Não importa que tipo de futuro o coronavírus nos permitirá, também ficaremos mais pobres.

Pela minha experiência, a pobreza não é tão terrível quando mantemos nossa vida amorosa e intelectual em bom nível. O problema será viver num país em que a pobreza material inevitável é seguida de um debate político desolador, uma permanente troca de insultos. De qualquer maneira, a alegria de se descobrir vivo quando atravessarmos este túnel talvez compense todo o susto e a tristeza.

A ideia de que o coronavírus nos tornaria a todos melhores pessoas é uma ilusão. Todos os grandes problemas do Brasil, incluída a corrupção, estão em vigor neste período. Ao lado de um louvável movimento de solidariedade, é bom lembrar.

O que pode acontecer, entretanto, é uma chance de negociarmos prioridades, uma vez que a pandemia revelou não apenas a profunda desigualdade social, mas como ela bloqueia o futuro. Quem sabe, também, no final do processo, será possível restabelecer o papel da ciência e do esforço intelectual, ambos tão estigmatizados pelo populismo de direita.

Quando digo papel da ciência não estou pensando em mitificá-la ou transformá-la em nova religião, apenas reconhecer sua importância e continuar trabalhando nas esferas em que atuamos, cheias de incertezas e imprecisões.

Somos uma geração de risco, em todos os sentidos. Espero que possamos sair de casa bem rápido, pois ainda há muito que fazer. Sobretudo depois que nos apegamos tanto à vida, “à vida apenas, sem mistificação”, como dizia o poeta.

Dito isso, creio que, por algum tempo, posso voltar aos detalhes cotidianos.

Opaco e aviltante - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 15/05

Bolsonaro falta com transparência e seriedade ao tratar de cartões ou sua saúde


Com a costumeira fanfarrice, Jair Bolsonaro prometeu há nove meses revelar suas despesas pessoais pelo cartão corporativo a que tem direito na condição de presidente.

“Eu vou abrir o sigilo do meu cartão. Para vocês tomarem conhecimento de quanto gastei de janeiro até o final de julho. OK, imprensa?”, anunciou, em 8 de agosto do ano passado. “Vou com vocês, na boca do caixa, digito a senha e vai aparecer todo meu gasto.”

Também como de hábito, a encenação de valentia —em resposta, na época, a alguma fofoca de rede social— deu em coisa nenhuma.

A bravata foi convenientemente esquecida, e os dispêndios realizados por meio do mimo presidencial permaneceram incógnitos mesmo quando o Supremo Tribunal Federal, em 7 de novembro, considerou inconstitucional um dispositivo do regime militar que permitia à Presidência manter segredos do gênero.

Desta vez, o Planalto se viu forçado a apresentar alguma explicação formal —alegou-se, com base em outra legislação, que informações passíveis de pôr em risco a segurança do presidente e seus familiares devem ficar reservadas.

Mas Bolsonaro decidiu voltar ao tema no desvairado pronunciamento de 24 de abril, quando respondeu a acusações de ingerência na Polícia Federal. No esforço para mostrar sua probidade, alegou não haver feito uso de um cartão, entre três que possui, que lhe permite gastar R$ 24 mil mensais.

A veracidade da afirmação não pode, infelizmente, ser aferida. Os dados disponíveis permitem constatar, porém, que as despesas com cartões presidenciais cresceram na atual gestão e chegaram ao recorde de R$ 1,9 milhão em fevereiro —do qual R$ 739 mil, segundo o presidente, com o resgate de brasileiros na China. Mais não se sabe.

As desculpas oficiais para a permanência do segredo soam tão inconvincentes hoje como em 2008, quando uma farra no uso de cartões gerou escândalo no governo Lula (PT). Tratando-se de Bolsonaro, a recusa à transparência se une à conduta aviltante.

Assim se viu também na ridícula saga da divulgação dos exames do chefe de Estado para a Covid-19, enfim levada a cabo por determinação do Supremo Tribunal Federal, a pedido do jornal O Estado de S. Paulo. Soube-se então que o presidente chegou ao cúmulo de usar pseudônimos nos testes, cujos resultados foram negativos.

De claro no episódio, apenas a irresponsabilidade de Bolsonaro ao sujeitar a si e a terceiros aos riscos de contágio, antes e depois de conhecer seu estado de saúde.

A guerra de Bolsonaro - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 15/05

Presidente quer fazer crer que o isolamento social, adotado em todo o mundo para conter a pandemia, é escolha, não imperativo


A equipe econômica do governo federal informou na quarta-feira, dia 13, que sua projeção para o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano caiu de 0,02% positivo para 4,7% negativos. O dado foi apresentado de forma a enfatizar o caráter dramático da situação e a atribuir o cerne do problema ao isolamento social para enfrentar a pandemia de covid-19. Segundo informou o Ministério da Economia, o PIB perde R$ 20 bilhões por semana em razão do isolamento.

Embora tenha negado que estivesse fazendo críticas à adoção da quarentena, o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, disse, ao apresentar os números, que o objetivo era “deixar claro para a sociedade o custo das decisões” e mostrar que, “quanto mais semanas ficarmos em distanciamento social, maior será o número de falências e de desemprego e maior será o impacto de longo prazo”.

Ato contínuo, na manhã seguinte, o presidente Jair Bolsonaro informou aos brasileiros que há uma “guerra” em curso no País, em referência ao isolamento social determinado por autoridades estaduais e municipais. “O que está acontecendo parece uma questão política, tentando quebrar a economia para atingir o governo”, disse Bolsonaro, em seu dialeto peculiar.

Ou seja, o governo parece ter unificado o discurso em torno da narrativa segundo a qual o Brasil está à beira do precipício econômico e social não em razão da pandemia, que está arrasando mesmo países desenvolvidos, mas sim graças ao isolamento social – que, conforme Bolsonaro, é resultado de um imenso complô da oposição, em conluio com a imprensa e com o Judiciário, para sabotar sua administração.

Para essa “guerra” em defesa de seu governo e, por extensão, do País, Bolsonaro convocou os empresários a pressionar o governador de São Paulo, João Doria, a relaxar a quarentena no Estado. “Um homem está decidindo o futuro de São Paulo, o futuro da economia do Brasil. Os senhores (empresários), com todo o respeito, têm de chamar o governador e jogar pesado, porque a questão é séria, é guerra”, disse o presidente, que, prevendo “caos” social, arrematou: “O Brasil está quebrando. E depois de quebrar, não é como alguns dizem, que a economia recupera. Não recupera. Vamos ser fadados a viver num país de miseráveis, como alguns países da África Subsaariana”.

Assim, o presidente Bolsonaro quer fazer crer que o isolamento social, adotado em todo o mundo para conter a pandemia, é uma escolha, e não um imperativo – e essa escolha, aqui no Brasil, seria fruto de maquinações políticas. Ora, é um insulto à inteligência presumir que chefes de Estado ao redor do mundo estejam submetendo seus governados a privações desnecessárias. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, estima que 9 das 11 principais economias do mundo terão retração econômica severa e, em vários casos, sem precedentes. O Unicef (Fundo da ONU para a Infância) prevê que o colapso do sistema de saúde aumentará em 1,2 milhão de crianças a conta da mortalidade infantil no mundo nos próximos seis meses. O empobrecimento planetário já é uma realidade – que fica particularmente dramática em países cujos governantes, como Bolsonaro, agem de maneira irresponsável.

Se o presidente estivesse realmente preocupado em mitigar os múltiplos efeitos da pandemia, travaria uma guerra não contra os governadores e contra a oposição, e sim contra o vírus – que, por ora, está em grande vantagem, graças à bagunça que Bolsonaro criou no Ministério da Saúde, incapaz de liderar os esforços contra a pandemia, e ao comportamento do presidente, que continua a desdenhar das mortes, estimulando os brasileiros a ignorar a quarentena.

Nesse seu prélio delirante, Bolsonaro chegou até a citar uma frase de Napoleão, “enquanto o inimigo estiver fazendo um movimento errado, deixe-o à vontade”, para dizer que “o movimento errado é se preocupar apenas e tão somente com a questão do vírus” – e quem ganha com isso, disse o presidente, é “a esquerda”, que “está quietinha”.

Se quisesse realmente se inspirar em Napoleão, o presidente Bolsonaro deveria buscar outra frase do general francês, aquela que diz que “o verdadeiro líder é um mercador de esperanças”. Algo praticamente impossível para um presidente cuja vocação é frustrá-las.

Teses de Bolsonaro não correspondem aos fatos - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 15/05

Pesquisas científicas e estudos sobre a Gripe Espanhola nos EUA derrubam bandeiras do presidente


O aumento de intensidade da dinâmica da crise reforça traços negativos da personalidade do presidente, como uma convicção extrema mesmo que os fatos estejam contra ela. Se Bolsonaro conseguisse absorver novas informações a partir da observação e da constatação de que cometeu equívocos, e se corrigisse, como a maioria das pessoas, seria um ganho enorme para todos. A fixação, por exemplo, que ultrapassa a teimosia e se aproxima da obsessão, no suposto efeito benéfico da substância hidroxicloroquina para o enfrentamento da Covid-19, já teria sido deixada para trás caso o presidente desse atenção aos diversos estudos científicos já divulgados que afastam esta possibilidade.

Outro assunto que oblitera a capacidade de Bolsonaro de absorver opiniões em contrário é o isolamento social. Desde março, quando começaram a ser registradas oficialmente no Brasil as primeiras vítimas do vírus Sars-CoV-2, Bolsonaro teria tido tempo de não apenas se informar sobre os efeitos do “isolamento social horizontal” — para todos, exceto trabalhadores de setores essenciais — e do “vertical” — apenas para os grupos de risco, como ele deseja. Saberia, por experiência concreta de outros países, que em epidemias o isolamento ao extremo das pessoas é vital para conter a disseminação do vírus. Por um motivo fácil de entender: para que os sistemas de saúde tenham condições de se preparar para atender os contaminados.

Mesmo que o número de infectados venha a ser o mesmo no final da epidemia, todos poderão ser atendidos, o que significará um número menor de mortos. Ao passar ontem pelo cercadinho da claque bolsonarista na saída do Alvorada, Bolsonaro repetiu o mantra: defendeu a cloroquina e desfiou um aterrorizante discurso contra o isolamento social adotado por governadores, a serem provavelmente seguidos por lockdowns (bloqueios). O presidente previu mortes pela fome, devido à suposta liquefação do sistema produtivo, provocada por este combate à epidemia. Em uma live com empresários, o presidente adotou o mesmo tom, chegando a falar em “guerra”.

Também aqui, Bolsonaro se recusa a aprender com cientistas e a História. Estudo bastante citado de economistas do Banco Central americano, Fed, do BC de Nova York e do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Sergio Correa, Stephan Luck e Emil Verner, prova que, entre 43 cidades americanas, as que adotaram o isolamento social amplo na Gripe Espanhola (1917/18) recuperaram suas atividades de maneira mais rápida e consistente.

Outra fantasia bolsonarista é a forma com que a Suécia enfrentou o coronavírus. Bolsonaro elogia o país. Não se informou dos efeitos do isolamento frouxo da Suécia: morrem bem mais suecos do que vizinhos nórdicos. O índice de mortes por Covid por milhão de habitantes da Dinamarca está entre 50 e 100; e os da Finlândia e Noruega, abaixo de 50. Os três países praticam lockdowns. Na Suécia, acima de 300, o que tem prejudicado os negócios, ao contrário do que acha Bolsonaro. Só a ideologia pode explicar tanta desinformação.