terça-feira, maio 12, 2020

O SANGUE DOS OUTROS - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 12/05

Imprudência de Bolsonaro perante pandemia é típica de revolucionários



Conservadores não estão dispostos a sacrificar a vida humana, por ação ou omissão, em nome de um bem maior


O mais famoso epidemiologista da Suécia, responsável científico pela estratégia anticoronavírus no país, deu uma entrevista ao The Daily Show para dizer, entre outras coisas, que estava “espantado” com o número de mortos.

Esse espanto, nas palavras do doutor Anders Tegnell, explica-se pela mortandade nas casas de repouso para idosos. O que permite concluir que, se não fossem os velhos, tudo estaria dentro do razoável, o que quer que seja esse razoável.

A tese do doutor Tegnell está parcialmente certa, ou parcialmente errada, consoante a perspectiva. Está certa porque a mortalidade da população idosa em casas de repouso é a maior catástrofe global da pandemia.

Mas o famoso cientista está errado ao pôr sobre os velhos o ônus da culpa pelos erros do seu plano.

Relembro: a Suécia, ao contrário dos vizinhos nórdicos (ou europeus), optou por um “lockdown” ligeiro e confiou na disciplina dos seus cidadãos para cumprir o distanciamento social. Mas a vida rolou, mais ou menos como habitualmente. Resultado?

No momento em que escrevo, o país tem 3.225 mortes para uma população de 10 milhões. É pouco? Não é. Nos rankings da mortalidade relativa, e tomando como referência o número de mortos por milhão de habitantes, a Suécia está nos primeiros lugares. Sim, à frente dos Estados Unidos ou do Brasil.

Aliás, se a Suécia tivesse a população do Brasil, já teria ultrapassado os 60 mil mortos, transformando o país no pior exemplo mundial.

Esses números são importantes por dois motivos.

Primeiro, porque a estratégia brasileira nessa pandemia me parece ainda mais radical do que a duvidosa estratégia sueca. Com uma diferença: os hospitais brasileiros não são os hospitais suecos. Quando falei em 60 mil mortos, eu estava sendo otimista, imaginando um Brasil sueco.

Mas existe um segundo motivo que me parece mais relevante. O número de mortos na Suécia se explica pela estratégia mais liberal que o governo seguiu.

E essa estratégia, suspeita minha, só foi possível num país majoritariamente não religioso, onde considerações arcaicas como “a sacralidade da vida humana” não têm o mesmo peso comunitário.

No Brasil, e sobretudo num presidente que põe Deus acima de todos, o descaso de Jair Bolsonaro perante a morte (“e daí?”, “não sou coveiro”, “não faço milagres” etc.) soa estranha vinda de um autoproclamado crente.

Cada morte deveria ser comentada com respeito. Exceto se adotarmos a velha máxima stalinista de que a morte de uma pessoa é uma tragédia, mas a morte de milhares é uma estatística.

Sem falar do óbvio: para um autoproclamado conservador, a imprudência que o governo brasileiro exibe perante a pandemia é típica de revolucionários. Porque só revolucionários estão dispostos a sacrificar a vida humana, por ação ou omissão, em nome de um bem maior.

Não se fazem omeletes sem quebrar alguns ovos, como dizia o antecessor de Stálin. No fundo, é isso que separa um conservador de um revolucionário: o primeiro não está disposto a sacrificar a geração presente em troca de um fim abstrato.

Edmund Burke (1730-1797), o pai espiritual da tribo conservadora, explicou o essencial há mais de 200 anos: o primeiro crime da Revolução Francesa não era político; era moral. E por quê?

Porque os revolucionários jogavam o sangue dos outros, reduzindo a política a uma mera aposta de cassino. Como afirmava Burke, não é possível aplaudir “um bem especulativo” que só será obtido através de “uma elevada dose de mal prático”.

É desse imperativo que emergem todos os princípios conservadores relevantes: a prudência, a humildade, o realismo, a atitude cética perante a política (e os políticos), a recusa do radicalismo —e um certo horror a “sofistas, economistas e calculadores”.

Fato: ninguém de bom senso defende que as considerações econômicas não são importantes no meio dessa tragédia. Isso seria uma forma de radicalismo bastante semelhante ao radicalismo dos que defendem a abertura completa da vida social e econômica.

Mas sociedades civilizadas procuram compromissos civilizados, preservando ao máximo a vida humana. Repito: não se joga no cassino o sangue dos outros.

A Suécia jogou e continua jogando, mesmo com todas as dúvidas sobre o vírus.

Haverá imunidade? Por quanto tempo?

Haverá consequências para a saúde dos sobreviventes? Quais?

Há casos significativos de reinfecção? Quão graves?

E, pergunta crucial, quantos têm de morrer no grande altar da “imunidade de grupo”? Aliás, será legítimo perseguir esse fim sem vacinação massiva?

Qualquer político que não enfrente essas perguntas é pior que um coveiro; é um carrasco.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Luto na quarentena - VERA IACONELLI

FOLHA DE SP - 12/05

O trabalho do luto não deve ser negligenciado


Enquanto vivemos nossas vidas corridas, ocupados com trabalho, filhos, amores e afazeres, não nos lembramos muito de Moraes Moreira, Aldir Blanc, Sérgio Sant'anna, Alfredo Garcia-Roza, Little Richard, Flávio Migliaccio. Mas eis que eles se vão e nossos dias ficam repletos de chorare, equilibristas, detetives, contos primorosos, rock'n'roll, Shazan & cia.

A perda resgata os sujeitos que pairavam distantes do nosso dia a dia. Quando se dá a falta, eles se presentificam mais do que nunca, e suas lembranças vívidas absorvem nossa energia.

Se forem entes próximos, então, a falta apaga o entorno por completo e somos tragados para um mundo paralelo, túnel do tempo de afetos, sensações e imagens. Diante da perda, deixamos de lado o trabalho e tudo o que soava imprescindível desaparece. A rotina, que não podia parar, simplesmente para.

Ficamos assim, enquanto o luto faz seu trabalho --como chamou Freud em "Luto e Melancolia". Trabalho psíquico que requer tempo, reconhecimento social, rituais, elaboração das ambivalências.

Como fazer os rituais fúnebres durante a quarentena é a pergunta que não quer calar diante da aterradora marca de 11 mil mortes —e contando.

As despedidas se tornaram virtuais e, embora se realizem por meio do cúmulo da tecnologia, têm se revelado surpreendentemente íntimas e acolhedoras.

Pode-se fazer uma reunião em uma plataforma virtual com convidados, nas quais são feitas pequenas homenagens. Convida-se amigos para compartilhar falas, músicas, imagens que celebram a existência de quem partiu, brinda-se. A parte operacional pode ser facilitada por uma pessoa contratada para esse fim, ou não, pois é simples. O encontro também poderá ficar gravado.

A quarentena é oportuna para se repensar a atual forma como lidamos com as perdas. Os sepultamentos se tornaram situações puramente burocráticas, oferecendo pouca chance de trocas simbólicas significativas.

A medicalização do luto —e dos afetos em geral— tem sido um dos grandes problemas da nossa época, desencadeando inúmeras formas de sofrimento, que são expressões dos lutos não realizados. Como um corte que não teve tempo e condições de cicatrizar, o luto fica em aberto causando dor interminável. Negação, melancolia, raiva, somatizações, é longa a lista das expressões do luto patológico. O que não enfrentamos à vista, pagamos em adoecimento a prazo. Haja vista os descalabros que ouvimos da secretária da Cultura, ilustrando sua impossibilidade de elaborar minimamente os lutos históricos que ainda nos martirizam.​

Realizado esse longo processo de despedidas, o amor —e o ódio— que investimos no outro volta para nós, nos obrigando a transformar esses afetos em algo que faça jus à vida de quem se foi.

Lauren Collins compartilha sua experiência com a virtualidade e a morte do pai em "Reinventing Grief in An Era of Enforced Isolation", artigo publicado na revista The New Yorker (4/5). Nosso precioso Antonio Prata também nos brindou com sua homenagem ao padrasto Nirlando Beirão em sua coluna (10/5).

Em ambos os textos, vemos o trabalho psíquico de dar um novo destino ao amor que perde seu objeto. Acabamos nós, leitores, agraciados pelas lindas palavras dirigidas a quem não tivemos o privilégio de conhecer. Assim nossos mortos cumprem, através do trabalho de luto de quem fica, sua derradeira função de deixar para o mundo o amor que produziram a sua volta.

Vera Iaconelli
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Bolsonaro torna Ministério da Saúde não essencial - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 12/05

Jair Bolsonaro dispensa ao ministro Nelson Teich um tratamento bem diferente do que infligia a Henrique Mandetta. Com Mandetta, o capitão guerreava por meio da imprensa. Com Teich, nem isso.

O presidente transformou o doutor num personagem despiciendo. Sem ouvir seu hipotético ministro da Saúde, baixou decreto autorizando a retomada de três atividades "essenciais": academias de ginástica, salões de beleza e barbearias.

O que está escrito nas entrelinhas do decreto de Bolsonaro, em letras invisíveis, é o seguinte: "O Ministério da Saúde é uma pasta não essencial."

Diante das câmeras, em plena entrevista coletiva, Teich se deu conta de que o pior tipo de solidão é a companhia de Bolsonaro no meio de uma pandemia.

Indagado sobre o novo decreto presidencial, o ministro protagonizou minutos constrangedores.

"...Foi uma decisão do presidente, que ele decidiu isso aí", disse Teich, sem muita convicção: "Saiu hoje isso?" O ministro olhou para o personagem ao lado, o general Eduardo Pazuello, o número 2 do ministério. Nada.

Um repórter tentou socorrer Teich: "Ele acabou de falar no Alvorada." E o ministro, entre incrédulo e estupefato: "Falou agora?" Diante da resposta afirmativa, o doutor ergueu levemente a mão. E emendou: "Decisão de?... Manicure, academia..."

Outro repórter acudiu o suposto ministro: "Barbearia". Falando como se desejasse fornecer tempo ao cérebro para pegar no tranco, Teich repetiu: "Barbearia..." Engatou uma segunda: "...Não é atribuição nossa, isso aí é uma decisão do presidente."

Uma assessora do ministro tentou virar a página: "Mais alguma pergunta?" Teich voltou a trocar olhares com o general Pazuello. Nada.

A ficha do pseudo-ministro ainda não caiu. Bolsonaro enfiou o general no organograma da Saúde para obter informações da pasta, não para estabelecer um fluxo de dados em mão dupla.

"É o ministério da Economia que decide isso...?!?!", balbuciou o hipotético ministro. O general limitou-se a concordar com um movimento de cabeça. E Teich, virando a página para trás, pediu a atenção dos repórteres: "Só uma coisa..."

Cuidou de tomar distância social da pasta de Paulo Guedes: "É o Ministério da Economia que decide isso. A decisão de atividades essenciais é uma coisa definida pelo Ministério da Economia."

Teich tentou fixar um contraponto: "O que eu realmente acredito é que qualquer decisão que envolva a definição como essencial ou não, ela passa pela tua capacidade de fazer isso de uma forma que proteja as pessoas."

O entrevistado sentiu a necessidade de soar repetitivo: "Só para deixar claro que isso é uma decisão do Ministério da Economia. Não é nossa." Desnecessário enfatizar. Já estava claro que a pasta a Saúde fora ignorada.

Bolsonaro já havia demonstrado seu descaso pelo trabalho de Teich na semana passada, quando marchou sobre o Supremo Tribunal Federal. Foi queixar-se do isolamento social que leva CNPJs à UTI.

Participaram da marcha empresários e uma penca de ministros. Até o filho Zero Um, Flávio Bolsonaro, foi levado a tiracolo pelo presidente. A única coisa que não ocorreu a Bolsonaro foi chamar o seu ministro da Saúde.

O esquecimento de Bolsonaro é metódico. Ele exclui Teich de compromissos e decisões porque não deseja correr o risco de injetar racionalidade médica na sua conversa mole sobre "volta à normalidade".

Na prática, o decreto de Bolsonaro não tem serventia, pois governadores e prefeitos ganharam do Supremo Tribunal Federal o reconhecimento da prerrogativa de agir na pandemia na contramão do negacionismo de Brasília.

Quer dizer: o decreto presidencial serviu apenas para humilhar o ministro da Saúde e transferir a culpa pelo tsunami econômico para governadores e prefeitos adeptos do isolamento social.


'Mais que palavras' - ANA CARLA ABRÃO

O Estado de S.Paulo - 12/05

Enquanto Bolsonaro for na direção contrária dos governadores, esforços estarão sendo desperdiçados



Esse é o título em português de um artigo em fase de elaboração que começou a circular na última semana nos grupos de economistas brasileiros (More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic). Nele, dois economistas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, Nicolas Ajzenman e Daniel da Mata, além de Tiago Cavalcanti, da Universidade de Cambridge, analisam o impacto das palavras e ações do líder político de uma nação sobre o comportamento das pessoas.

Os autores buscam responder a essa questão dentro do contexto brasileiro atual. Com base em uma análise que combina informações eleitorais com dados de telefones celulares, os autores concluem que houve uma redução do isolamento social nas localidades onde a presença de cidadãos pró-governo é mais relevante, relativamente às localidades onde o apoio é menor, após as manifestações do presidente Jair Bolsonaro minimizando publicamente os riscos da pandemia da covid-19 no Brasil. Ou seja, os resultados do trabalho sugerem que as palavras e ações do presidente da República têm impacto negativo no nível de obediência dos seus apoiadores às medidas de isolamento social.

Vale lembrar que na ausência de uma vacina ou de um medicamento, o isolamento social é a única medida comprovadamente eficaz para conter a disseminação da pandemia. Essa disseminação é determinada pela taxa de contágio que, por sua vez, está vinculada ao número de contatos que uma pessoa contaminada venha a ter e portanto à sua capacidade de passar o vírus adiante. Em particular, pessoas que estejam contaminadas e não apresentem sintomas são aquelas com maior potencial de contaminação.

Ao mesmo tempo que reduz a taxa de propagação do vírus, o isolamento social (obrigatório ou voluntário) também reduz a atividade econômica. Nesse contexto, além da proibição legal de funcionamento de algumas atividades, questões comportamentais também se impõem pelo receio da contaminação, nesse caso reforçando os impactos do isolamento sobre a curva de contaminação, mas também alavancando os efeitos sobre a atividade. O resultado dessa combinação é, por um lado, o desejável achatamento da curva e, por outro, os choques de oferta e de demanda que estamos observando no Brasil e no mundo.

Isso se reflete nos indicadores econômicos: pedidos recordes de seguro-desemprego nos Estados Unidos, que superaram os 33 milhões em abril ou quedas significativas no PIB dos diversos países afetados, como os 6,8% de contração do primeiro trimestre na China. Junte-se a isso os pedidos de recuperação judicial de empresas afetadas diretamente pela pandemia e uma perspectiva sombria para o mercado de crédito de varejo nos próximos meses e temos alguns exemplos dos impactos da crise de saúde na economia real.

Não há quem esteja insensível a esses números. O grande desafio está, contudo, na compatibilização dessa preocupação com a necessidade de se garantir que a contaminação não vai superar a capacidade instalada de atendimento de saúde. Infelizmente, não será impossível evitar que muitas mortes ocorram. Mas é sim possível reduzir os número delas desde que haja atendimento adequado e tempestivo. Essa é a restrição que precisa ser considerada e que condiciona todas as outras ações.

A decisão de quando e como flexibilizar depende, portanto, desse delicado equilíbrio entre o formato da curva de contaminação, a capacidade hospitalar – em particular de leitos de UTIs – e uma retomada organizada e gradual das atividades. Nessa última parte, o foco especial em setores mais afetados pela crise e com maior potencial de geração de emprego e informalidade pode ajudar a organizar a retomada. Aqui, a definição de protocolos de saúde que visem à redução dos riscos de contaminação é fundamental.

Adicionalmente, o Brasil precisa ampliar substancialmente sua capacidade de testagem. Atividade que dependerá de pactuação com o setor privado, cuja capacidade de execução é a única forma de garantir a necessária velocidade. Nessa equação com tantas variáveis, o esforço conjunto é o que fará a diferença.

Mas enquanto o presidente da República for na direção contrária das ações de conscientização e planejamento de governadores como João Dória, em São Paulo, ou Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, esforços estarão sendo desperdiçados.

Como mostra o estudo dos meus colegas economistas, as palavras do presidente não têm se perdido no tempo. Ao contrário, elas têm contribuído para atrasar o controle da curva de contaminação e, portanto, da possibilidade de retomada das atividades. Ou seja, ao contrário do que querem dizer as palavras de ordem dos seus apoiadores, o principal responsável pelo atraso na retomada da atividade econômica é o presidente da República.

Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.

Desafios do acordo Mercosul-União Europeia - RUBENS BARBOSA

O Estado de S.Paulo - 12/05

Além das incertezas vindas da Argentina, competitividade e meio ambiente estão em foco



Um fato novo complica o entendimento entre os países do Mercosul. Em abril a Argentina informou que não mais acompanharia Brasil, Paraguai e Uruguai nas negociações em curso do Mercosul com outros países, como Canadá, Cingapura, Coreia do Sul, Líbano e Índia. Mas manteria sua participação nos acordos, já concluídos e não assinados, com a União Europeia (UE) e com a Associação Europeia de Livre Comércio (Efta). Na semana passada o governo argentino voltou atrás, num confuso comunicado em que ressalta ter decidido manter-se nas negociações conjuntamente, mas sempre levando em conta as sensibilidades dos setores menos competitivos (industriais).

Embora querendo participar de todos os trabalhos e demandando a inclusão de cláusulas que resguardem os interesses argentinos futuros, Buenos Aires não se compromete com a conclusão das negociações em curso. O chanceler Felipe Solá diz favorecer um regime de dupla velocidade, em que a Argentina não fica fora dos acordos, mas quer ter a palavra final sobre como e quando passaria a fazer parte deles.

Até meados do ano, o acordo Mercosul-UE deve ser assinado. Como o governo argentino reagirá durante o processo de ratificação, se forem solicitadas modificações no texto do acordo, como foi no caso do tratado UE-Canadá? Nuestros hermanos querem um Mercosul à la carte, o que aumenta a incerteza para todos, pela insegurança jurídica na aplicação dos compromissos assumidos. Flexibilização, se houver, tem de ser para todos.

Além dessa incerteza, menciono duas questões do lado brasileiro para o acesso ao mercado europeu: competitividade e meio ambiente.

Para aproveitar as preferências tarifárias, os produtos industriais deverão melhorar significativamente sua competitividade e passar a receber tratamento isonômico em relação ao produzido em outros países. Sem isso, apesar de a UE abrir seu mercado com tarifa zero de imediato para 75% de suas importações, será difícil competir no mercado europeu com produtos importados de outras áreas, como EUA, China e Coreia. A aprovação da reforma trabalhista e a da Previdência Social foram avanços importantes no caminho da modernização do Estado brasileiro. De modo a que o custo Brasil seja reduzido, é imperativo serem aprovadas a reforma tributária, a reforma do Estado e um amplo programa de desburocratização, simplificação e facilitação de negócios e de melhoria na logística (portos, estradas, ferrovias). Em paralelo, um eficiente programa de inovação das empresas e de políticas públicas ajudaria a modernizar a operação das companhias que produzem para o mercado doméstico e também exportam. Estudo recente da Fiesp, mostra que a indústria nacional, antes da pandemia, estava lenta na busca para alcançar o nível de 4.0 – 1,3% tinha investimento em 4.0 (em faturamento).

O segundo desafio são os compromissos na área de meio ambiente que o Brasil deverá cumprir. O capítulo de desenvolvimento sustentável, incluído no acordo, talvez seja o mais desafiador, em vista da atual política de meio ambiente e mudança de clima do governo brasileiro. A crescente força política dos partidos verdes nos Parlamentos dos países europeus poderá representar um obstáculo para a ratificação do acordo caso a atual política ambiental brasileira não se modifique, como exemplificado pela crise em relação ao Fundo Amazônico, que resultou na suspensão de recursos financeiros recebidos da Alemanha e da Noruega. Os compromissos assumidos pelos países-membros no tocante ao desenvolvimento sustentável estão incluídos em 18 artigos, que cobrem acordos relacionados a comércio e meio ambiente, comércio e biodiversidade, comércio e preservação de florestas, da ONU, além de regras da Organização Internacional do Trabalho, incluída a Resolução 169, que trata da exploração de terras indígenas.

O descumprimento dos dispositivos dos acordos poderá acarretar boicotes e mesmo restrição de importação de produtos agrícola do Mercosul. São mencionados explicitamente os principais acordos internacionais, como os derivados da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, da Conferência Quadro da ONU sobre mudança do clima, da Convenção sobre Diversidade Biológica, da Convenção da ONU de Combate à Desertificação, do Acordo de Paris de 2015, de regras da OMC e resoluções de outros organismos internacionais. Além disso, por insistência da UE, foi aprovado o princípio da precaução, pelo qual o não cumprimento de acordos de meio ambiente, energia ou trabalho forçado ou infantil pode acarretar restrição à importação de determinado produto.

O mundo mudou e as preocupações com o meio ambiente, a mudança do clima, a preservação das florestas entraram definitivamente na agenda global. A falta de informação interna objetiva dos compromissos internacionais assumidos pelos diferentes governos nas últimas décadas e a crescente percepção externa negativa sobre as políticas ambientais criam uma incerteza adicional para o setor produtivo, em especial o do agronegócio.

Com o fim da covid-19, as questões ambientais vão ressurgir com toda a força e os governos do Mercosul não poderão ignorar essa agenda incluída no acordo com a União Europeia.

Presidente do instituto de relações internacionais e comércio exterior (IRICE)

Impacto da crise na área externa - MARIA CLARA R. M. DO PRADO

Valor Econômico - 12/05

Em oito meses, o Brasil perdeu US$ 52,5 bilhões em reservas líquidas, um valor expressivo em termos absolutos


Queda do PIB, com a expressiva redução do emprego e do investimento, no contexto de uma pandemia mundial que ninguém sabe quando chegará ao fim, além de uma crise política que coloca em dúvida a capacidade administrativa do governo federal, configuram o cenário brasileiro de uma tempestade mais que perfeita. Seu impacto na área externa do país é significativo e tende a aumentar no curto e médio prazos.

O aumento no fluxo de saída das divisas estrangeiras, que abandonam o país diante das incertezas crescentes, reflete-se no acentuado declínio das reservas internacionais. A rigor, o saldo das reservas começou a declinar a partir de agosto do ano passado, quando o Banco Central sinalizou a continuidade do processo de redução da Selic, a taxa de juros de curto prazo que rege as operações de liquidez entre a autoridade monetária e as instituições financeiras no dia a dia. Aquela taxa caiu de 6% em agosto para 3% neste mês em termos nominais. A metade, portanto.

A sensação de que o país caminha para um estado de anarquia espanta os investidores estrangeiros


A consequência foi o desinteresse dos investidores estrangeiros pelo Brasil, em especial aqueles que gostam de ganhar dinheiro com operações de arbitragem entre juros e câmbio e que são a maioria. Em fim de agosto de 2019, o saldo das reservas internacionais pelo conceito de ativos estava em US$ 386,477 bilhões, enquanto que na mesma data as reservas medidas pela liquidez, ou seja, em divisa estrangeira conversível, eram de US$ 371,792 bilhões.
De lá para cá, o quadro sofreu drástica alteração. No fim de abril deste ano, as reservas medidas em ativos caíram para US$ 339,316 bilhões, ao passo que o saldo contabilizado como disponível em divisa estrangeira conversível foi de US$ 319,264.

Em oito meses, o Brasil perdeu US$ 52,528 bilhões em reservas líquidas, um valor expressivo em termos absolutos. As informações são do banco de dados do FMI, da sessão Reservas Internacionais e Liquidez em Moeda Estrangeira, atualizada no dia 08 de maio passado.

Vale aqui uma observação. As reservas internacionais pelo conceito de ativos (“Official Reserve Assets”) representa o somatório do valor das reservas disponíveis em divisa estrangeira conversível mais as aplicações em ouro, a posição do país como membro do FMI, as aplicações junto ao BIS (Bank of International Settlements, o banco central dos bancos centrais) e as operações em SDR (a moeda do FMI), além de outros tipos de ativos que não representam liquidez imediata. Diga-se, aliás, que este é o conceito que o Banco Central do Brasil divulga nas suas estatísticas para o público interno.

Um rápido paralelo que se faça com o comportamento da taxa de câmbio no mesmo período de oito meses - em agosto de 2019 a cotação do dólar vis a vis o real entrou definitivamente na casa dos R$ 4, tendo pulado para os R$ 4,50 no início de março, para R$ 5,30 no início de abril e para R$ 5,76 na sexta-feira passada, pelos dados do BC - mostra que a progressiva desvalorização da moeda nacional não é pura coincidência. Ontem, a taxa de câmbio comercial fechou a R$ 5,83, enquanto que no mercado de turismo, o dólar chegou a R$ 6,03. Percebe-se que a chegada da pandemia veio piorar o cenário, agravado sem dúvida pelas investigações que envolvem o presidente da República.

Toda essa movimentação que reflete o desinteresse do capital estrangeiro pelo país pode ser facilmente captada pelas informações do BC sobre as operações de contrato de câmbio. Desde agosto do ano passado os saldos positivos das operações cambiais relacionadas ao movimento da balança comercial (exportações menos importações) não têm sido suficientes para compensar os saldos negativos dos demais movimentos de câmbio, envolvendo as operações financeiras.

Entre agosto e dezembro de 2019, o total daqueles contratos, entre comercial e financeiro, representou drenagem de US$ 42,558 bilhões em recursos externos. Entre janeiro e abril deste ano, a saída de divisas representada pelos contratos foi de US$ 12,730 bilhões. Não foi pior porque desde fevereiro houve um considerável crescimento dos contratos do câmbio comercial, embora não suficientes para cobrir a posição negativa dos contratos do câmbio financeiro.

Tudo isso tem implicações monetárias. A saída líquida de recursos externos significa enxugamento de reais da economia. Só em março último, pelos dados do BC, as operações do setor externo tiveram um efeito contracionista de R$ 91 bilhões na base monetária (emissão primária de moeda mais depósito à vista nos bancos). Sem movimento na economia, e com uma velocidade renda da moeda baixíssima (o dinheiro não circula como antes), os bancos acabam por depositar no BC os reais da contrapartida das operações cambiais, uma massa de dinheiro que ajuda o governo a prover liquidez para os setores da economia e faixas da população que se ressentem de renda nesta fase de grave recessão.

São aspectos das contas cambiais e monetárias que se inter-relacionam. Ajudam a explicar de onde vem e para onde vão os recursos que transitam entre o mercado financeiro e o BC. As expectativas continuarão a guiar os números daqui em diante. O grande ponto de incógnita hoje, para além da pandemia, está no enorme e perigoso sentimento de insegurança que afeta os 200 milhões de trouxas, na definição do Ministro da Economia, Paulo Guedes, residentes neste país.

É muito grave a cena que se viu ontem, com caminhoneiros a desafiar as decisões do governo do Estado de São Paulo e do prefeitura da cidade de São Paulo, ao estacionarem seus veículos ao longo da Av. Paulista, sem obedecerem à regra do confinamento, do desimpedimento da via e nem ao rodízio imposto para a circulação de veículos na cidade. Mais do que uma atitude de afronta, foi um ato de desobediência civil praticado contra a autoridade pública, um crime previsto no Código Penal. A sensação de que o país caminha para um estado de anarquia espanta, claro, os investidores estrangeiros. Cabe aos trouxas arcar com as consequências.

Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação Inteligente e autora do livro “A Real História do Real”.

Teich e a fritura em tempo recorde - VERA MAGALHÃES

ESTADÃO - 12/05

Tal qual a curva de covid-19, a de fritura de auxiliares de Jair Bolsonaro em relação ao tempo que ocupam os cargos só cresce. O ministro da Saúde, Nelson Teich, superou Regina Duarte. Menos de um mês depois de ter sido nomeado para o lugar de Luiz Henrique Mandetta em plena pandemia, o oncologista já é alvo da máquina de moer reputações do bolsonarismo.

Da mesma forma que a secretária nacional de Cultura, no entanto, Teich não poderá dizer que foi surpreendido pelo método, ou que não esperava que isso fosse acontecer com ele: um ano e quatro meses depois de empossado Bolsonaro, já são inúmeros os exemplos de que aliados só o são enquanto prestam vassalagem incondicional ao capitão. Caso contrário todos, de generais a Sérgio Moro, estão suscetíveis a se tornar saco de pancadas.

A razão pela qual Teich foi colocado no paredão das redes sociais bolsonaristas, cada vez mais delinquentes, é o de que, como médico, nunca poderia coadunar totalmente com a maneira irresponsável com que o presidente conduz o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus.

O ministro da Saúde pagou um mico público ao demonstrar surpresa com o decreto de seu chefe tornando cabeleireiros, barbearias e academias de ginástica atividades essenciais, e portanto passíveis de serem reabertos em todo o País. Assim como os governadores, não escondeu certa estupefação (há que se dizer que sua expressão sempre afeta certa estupefação, aliás). O fato de ter deixado claro que, por ele, mais essa loucura seria revista, já foi o suficiente para pendurá-lo no pelourinho digital.

Este é um método suicida, além de absolutamente autoritário, de se conduzir um governo. Mas Teich sabia exatamente em que vespeiro estava se metendo quando aceitou substituir um ministro que vinha lidando com a covid-19 de forma técnica e que foi submetido às provações que ele viu Mandetta ser. Agora, como se diz nas redes sociais, só resta constatar: ele que lute.

E daí? - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 12/05

Moro mirou no que viu e acertou no que não viu, ou sabia do potencial explosivo do vídeo?


O ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro mirou no que viu e acertou no que não viu, ao jogar luz, e curiosidade pública, na fatídica reunião ministerial com o presidente Jair Bolsonaro no dia 22 de abril, no Planalto. Ou será que não? Será que ele citou a reunião apenas para efeito jurídico e para confirmar suas acusações? Ou será que, intencionalmente, para expor o que foi dito, e como foi dito, ali?

O fato é que, com os temores dos efeitos jurídico, político e midiático da reunião, os três poderes giram em torno de um vídeo, que foi central no depoimento de Moro e causou boas trapalhadas no Planalto, até ser “achado”, reconhecido e colocado sobre a mesa do relator do processo no Supremo, Celso de Mello. E, hoje, será visto pelo próprio Moro, a PF e a PGR. Sem direito a pipoca, choro, risada e muito menos tédio.

O potencial jurídico do vídeo, pelo menos o esperado por Moro e temido por Bolsonaro, é dar materialidade à acusação do ex-ministro de que o presidente não apresentava nenhuma razão para demitir o superintendente do Rio e o diretor-geral da Polícia Federal, senão ter a liberdade para interferir politicamente no órgão (ou seja, nas suas investigações e operações). É isso, segundo Moro, que Bolsonaro admite na reunião com ministros.

Já o efeito político e midiático do vídeo vai além, porque as versões divulgadas até agora variam entre constrangedoras e aterrorizantes e a reunião, eternizada num pequenino pendrive, expõe as entranhas de um governo em que faltam comando e compostura. Pelos relatos, há ali um presidente irritado e ministros trocando desaforos, com palavrões voando pela sala. O ministro da Educação ataca o Supremo e seus onze integrantes, o chanceler e o presidente ironizam a China, onde Bolsonaro diz ter um bom amigo, o presidente Xi Jinping. O que diria Xi Jinping se visse o vídeo do amigão? Ou o que dirá, quando o vir?

Depende de Celso de Mello quebrar ou não o sigilo da reunião, que já foi tratada, em ofício do governo ao STF, como reveladora de “assuntos sensíveis” de segurança nacional e de política externa. Aparentemente, não eram propriamente assuntos sensíveis, mas uma grande demonstração de insensibilidade e falta de liturgia institucional e diplomática. Um retrato do governo e mais um vexame, entre tantos outros que derretem a imagem do Brasil no mundo.

Se o vídeo está no centro da crise política e do risco de uma denúncia formal contra Bolsonaro, ele é apenas uma das peças da investigação. Ontem, os depoimentos dos delegados Maurício Valeixo, demitido da direção-geral da PF, Ricardo Saadi, afastado da Superintendência do Rio, e Alexandre Ramagem, impedido pelo STF de tomar posse na vaga de Valeixo. Hoje, os generais Braga Netto, Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos.

Todos eles, estejam de um lado, de outro ou em cima do muro, decidiram abrir os microfones com uma intenção: ater-se aos fatos, tentando escapulir de dar opiniões e de cair em perguntas capciosas de interrogadores experientes. Isso vale sobretudo para Valeixo, pivô da crise que atingiu o coração do governo, rachou o bolsonarismo, uniu Moro, Supremo e Congresso como alvos de atos golpistas e joga mais e mais Bolsonaro no colo do Centrão. Em última instância, a crise pode chegar até a ameaçar o mandato de mais um presidente.

Essa barafunda, em meio a mais de 150 mil contaminados e de 11 mil mortos pelo coronavírus no Brasil, não tem desfecho predefinido, mas ainda vai revelar muito das entranhas do governo e do presidente. Longe de reuniões e churrascos, Moro aguarda, aliviado. Resta saber as reações de Bolsonaro às acusações e revelações: tudo não passa de “histeria”, “neurose”, “gripezinha”, “resfriadinho”, “loucura”, como a pandemia? E daí? Nesse caso, é uma boa pergunta.

O direito da direita de jair se arrependendo - RANIER BRAGON

FOLHA DE SP - 12/05

É observado o desenvolvimento de anticorpos em parte do conservadorismo nacional

A saída de Sergio Moro do governo acelerou o movimento de parte do conservadorismo brasileiro de reconhecer a terrível derrapada que deu ao se associar a Jair Bolsonaro.

Nenhum antipetismo poderia justificar isso. A confiança de que as instituições e o peso do cargo iriam dar prumo à coisa se revelou uma belíssima de uma aposta furada. Poucos tiveram a hombridade do tucano Alberto Goldman (morto em 2019), que, diante do inominável, declarou voto em Fernando Haddad (PT).

Não se tratava de PT, mas de democracia, razão e sensibilidade. E se tem alguma coisa pela qual Bolsonaro jamais poderá ser cobrado é de ter escondido quem ele realmente era.

Por isso, alguns bradam aos que buscam jair se arrependendo que se ajoelhem no milho e peçam desculpas —que não serão aceitas. O que também se revela um erro, pois há uma direita e um conservadorismo relevantes no Brasil, e eles têm todo o direito democrático de serem representados por políticos com o mínimo de preparo e inteligência, que respeitem as instituições, a ciência e os pilares da civilização e do humanismo —não por um bando de lacerdistas de pré-primário, que de Lacerda só herdaram a inclinação ao golpe.

Em autocrítica publicada na Gazeta do Povo, um dos dirigentes do MBL, Renan Santos, diz que a direita derrubará Bolsonaro. "Se queremos reconstruir a direita democrática e torná-la politicamente viável, precisamos, antes de tudo, torná-la democrática", afirma, criticando o populismo e o culto à personalidade e defendendo o diálogo —em vez das brigas— com outros campos políticos. "Precisamos amar a política, a mais nobre das ocupações humanas, e não destruí-la, como muitos julgavam ser necessário."

Cobre-se o tributo dos que se aventuraram na nau dos insensatos —incluindo MBL e (principalmente) Moro. Mas não interditem a tentativa de parte da direita de se desgarrar daquilo que de mais repugnante surgiu na política brasileira nas últimas décadas. A democracia só tem a ganhar.

Ranier Bragon
Repórter especial em Brasília, está na Folha desde 1998. Foi correspondente em Belo Horizonte e São Luís e editor-adjunto de Poder.

Secretária da sucata - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 12/05

Regina Duarte pode ter ganho sobrevida à custa da pacificação do setor cultural


O Brasil perdeu nas últimas semanas uma galeria de nomes ilustres da cultura nacional. Dos contistas Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna aos compositores Moraes Moreira e Aldir Blanc, passando pelo artista plástico Abraham Palatinik.

Em nenhum momento autoridades do governo federal, a começar pela secretária de Cultura, Regina Duarte, demonstraram publicamente algum tipo de pesar —o que, infelizmente, não surpreende diante das constantes demonstrações de aversão ao conhecimento científico, às artes e à educação.

Dado que a riqueza cultural acumulada passou de “soft power” reconhecido internacionalmente a alvo de guerrilhas ideológicas, não se poderia esperar coisa diferente.

O obscurantismo nesse terreno desafia limites. A ocupação massiva dos órgãos do setor por uma malta de despreparados e fanáticos —teleguiados, não raro, pelo guru do ideário cultural bolsonarista, o escritor Olavo de Carvalho— parecia encontrar uma pausa na nomeação da atual secretária.

De fato, quando da escolha da atriz, chegou-se a imaginar que se avizinharia uma trégua. Foi, infelizmente, um engano.

A secretária, que já se notabilizara pela omissão e pela falta de capacidade para o exercício da função, deu uma passo a mais em entrevista que concedeu ao canal CNN Brasil. Na ocasião, uma descontrolada Regina Duarte desfiou uma série espantosa de sandices, que foi da nostalgia em relação ao ufanismo da ditadura militar ao desprezo pelas vidas —e não apenas as dos grandes nomes da cultura— que se perdem aos milhares com a pandemia do novo coronavírus.

À sua maneira e por outros caminhos, a secretária repetiu na TV a sinistra performance de seu antecessor, Roberto Alvim, que encenou um pastiche nazifascista para anunciar seus planos para o setor.

A permanência da atriz no cargo se afigura pouco promissora, embora nas cavernas do bolsonarismo suas palavras tenham encontrado eco e, quem sabe, lhe assegurado alguma sobrevida.

Nessa lógica de sinais trocados, em que o pior é visto como melhor, uma eventual substituição não daria lugar a nada de minimamente auspicioso, de todo modo.

Importa menos que a área tenha sido rebaixada ao segundo escalão do Executivo, abrigada na inexpressiva pasta do Turismo. Pior é observar o aparelhamento ideológico e a indigência do pensamento que emana das repartições culturais.

Os interesses que vão além da nomeação do diretor da PF - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 12/05

Como nomeia o diretor-geral da PF, Bolsonaro acha que deveria mandar na instituição, que, no entanto, é do Estado, e não de seu governo



Não é preciso ter um papel assinado com a confissão para saber-se que tanto interesse assim na direção-geral da Polícia Federal tem objetivos além da simples nomeação. Um organismo técnico, de fundamental importância para a estruturação de um sistema nacional de combate à corrupção, deveria ter sua atuação acertada pelo presidente da República com seu ministro da Justiça em termos conceituais, e a escolha do comando do órgão deveria atender a esses critérios técnicos.

Basta ouvir com ouvidos que não sejam de mercador o depoimento do ex-diretor-geral da PF Mauricio Valeixo para saber que há mais coisa nessa história do que a simples vontade de ter um diretor-geral “mais afinado” com Bolsonaro.

A expectativa geral, no entanto, é que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, mande arquivar o processo, não porque não existam condições para a denúncia, mas provavelmente ele vai aceitar a tese de que não há um ato de ofício que incrimine o presidente.

Esse talvez seja o principal embate entre Augusto Aras e o ex-ministro Sergio Moro, que, quando juiz da Operação Lava-Jato, seguiu a trilha aberta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do mensalão, e passou a não tratar o tal “ato de ofício” como condição indispensável para condenar alguém.

Quando inexistente esse papel assinado pelo criminoso, os ministros do STF e, depois, os juízes das diversas instâncias do Judiciário, passaram a aceitar o acúmulo de indícios, as provas testemunhais, como suficientes para a formação de um juízo final.

O procurador-geral tem diante de si a recondução ao cargo no final de seu mandato e, subsidiariamente, uma possível, mas não provável, indicação para o Supremo Tribunal Federal (STF). São tentações humanas que podem se sobrepor à decisão mais apropriada, que seria o oferecimento de uma denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro e o subsequente julgamento pelos “onze filhos da puta” do Supremo, como teria definido o ministro da Educação, Abraham Weintraub, na tal reunião em que o presidente ameaçou demitir o ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro se não mudasse o superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro.

Como Weintraub diz que não se lembra de ter dito palavrões, somente a íntegra do vídeo, se liberada pelo ministro Celso de Mello, poderá esclarecer esse escândalo paralelo à ameaça de interferir na superintendência do Rio, e na diretoria-geral da Polícia Federal.

O noticiário é farto em informar, desde agosto do ano passado, que o presidente Bolsonaro pressionava Moro a trocar o superintendente da Polícia Federal no Rio, nicho eleitoral da família Bolsonaro. Só a insistência, e agora a confirmação de que, ao trocar o diretor-geral da PF, a primeira decisão do novo diretor-geral foi mudar a chefia regional, seria por si só eloquente para demonstrar o interesse de Bolsonaro nesse caso e, por conseguinte, a interferência política presidencial num cargo cuja escolha do titular não é de sua responsabilidade.

Como nomeia o diretor-geral da PF, Bolsonaro acha que deveria mandar na instituição, que, no entanto, é do Estado, e não de seu governo. A escolha dos superintendentes deve obedecer à autonomia que a PF precisa ter, e um desejo do presidente sobre uma determinada superintendência assemelha-se muito ao interesse dos políticos do Centrão a certos cargos, como a Direção Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs), ou o ministério do Trabalho, sonho de consumo de Roberto Jefferson, inelegível por ser um excondenado no mensalão.

Cargos assim, além do orçamento, passam a ser instrumentos eleitorais importantes. Por que algum político quererá indicar o responsável pela Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional e Urbano do Ministério do Desenvolvimento Regional? As companhias de ônibus podem ser uma pista para tanto interesse.

A superintendência da Polícia Federal no Rio trata de assuntos que vão do combate à corrupção ao crime organizado, do tráfico de armas ao de drogas, que no Rio tem nas milícias urbanas a mais grave ameaça.

Teve churrasco - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 12/05

O longo processo de cozimento das instituições republicanas


Sabe o churrasco de Bolsonaro? Teve. Foi na quinta, 7 de maio, dentro do STF. Assado mais explícito de um longo processo de cozimento das instituições republicanas, cujas maminhas — sobre essa chama que ora sobe, atiçada pela oportunidade que a peste dá aos extremos — se foram amaciando, amanteigando, cedendo o brio dos nervos, até que nacos seus se pudessem cortar não apenas sem resistência; mas em oferta.

Desde o começo do governo Bolsonaro, um criador para abate em grande escala, houve estímulos — de início meramente verbais, dissimulados na imensidão do zap profundo — a manifestações contra STF e Congresso. Depois, com progressiva adesão física de agentes do Planalto, os atos evidenciariam o que sempre foram: propriedade do bolsonarismo — de modo que não tardaria a que se visse, por exemplo, general Heleno sobre carro de som em protesto de ataque às instituições.

O governo — o projeto de poder autocrático disfarçado em governo — passava a fazer pressão, contra a democracia liberal, também por meio do corpo forjado a partir do investimento, aposta pessoal de Bolsonaro, na formação de um movimento de rua que reage, com violência, ao soar do apito-mestre. Não demoraria — a peste já entre nós — até que o soprador ele próprio se juntasse à matilha adestrada ao cerco de Supremo e Parlamento; numa das vezes para tocar o berrante, criminalizando (novamente) a ideia de negociação (enquanto negociava com notórios vendedores de si mesmos), defronte ao QG do Exército.

E então o churrasco. A marcha de Bolsonaro, não para o Supremo — mas sobre o Supremo. O QG da Constituição, escancarando-se, dócil, à emboscada. O anfitrião foi Toffoli, presidente daquela corte. Prosperou, a propósito, a versão — mui influente — de que o ministro teria sido pego de surpresa por um rompante do presidente da República, o mais espontâneo ser entre os de espontaneidade calculada.

Toffoli, ele mesmo, capturado, sem conversa prévia, no contrapé — o ex-zeloso: aquele outrora capaz de instaurar um inquérito sigiloso, sem objeto investigado definido, resultando mesmo em censura a uma revista, apenas para proteger a sua honra e a dos pares. Certo. Toffoli surpreendido. Seria, então, o anfitrião acidental. Mas isso — o de repente — não a ponto de impedir que rapidamente se arrumasse a varanda gourmet do STF. Responsabilidade institucional acima de tudo.

Toffoli desconhecia a agenda — isso prosperaria também. E não teve a curiosidade de perguntar. Seria desrespeitoso; poderia abalar a harmonia (que vige, né?). Não se nega a cortesia de um chefe de Poder que vem no improviso — e seria feio lhe questionar sobre as carnes que trazia. Por que quereria se inteirar do cardápio, a ser servido no tribunal cuja pauta controla, se quem lhe impunha a fraldinha súbita está em conflito com outros habitantes daquela casa — investigado num inquérito recente ali instalado? Por quê? Se é o governante que teve uma nomeação ali impedida, e esvaziada ali a caneta para decretar contra as medidas restritivas de governadores e prefeitos, por que desejar saber do que viria tratar?

Aceitemos, pois, que Toffoli ignorasse os cupins oferecidos e tampouco soubesse quais e quantos seriam os penetras. Terá também sido surpreendido pela transmissão, via rede social, do açougue em que se improvisou o STF? Não quis dizer não a Bolsonaro? É isso? Pudemos então saber, ao vivo, que o ministro reage bem— seguramente porque em defesa do equilíbrio republicano —a surpresas, capaz de dissimular contrariedades (fez vazar que ficara contrariado) e mesmo de atuar como se fizesse parte orgânica daquele fogo de chão no frigorífero.

Mais tarde naquele dia, seria reportado — pela primeira vez — volume de mortes superior a 700 em 24 horas, isto depois de, na véspera, termos violado a barbárie dos 600 mortos. Toffoli, porém, esteve à vontade — a institucionalidade pedia — para aderir ao clima de consternação ante a perspectiva de falecerem CNPJs, franqueando o Supremo ao matadouro de CPFs em que consiste o lobby populista de Bolsonaro. Com a presteza do ignorante que não é, o presidente do STF — não sei se cabo ou soldado — também forneceria o carvão, o próprio tribunal.

Paulo Guedes, manuseando a sua técnica de Chicago, foi o churrasqueiro. Sem saber ainda, churrasqueiro também de si mesmo — emprestando o espeto liberal, já enferrujado, à picanha autoritária (um corte do boi tão nobre que jamais encontrado, aquele em cuja superfície, instável como só ao piso ausente, o açougueiro pensa ser possível promover reformas liberais do Estado) e à linguiça sociopata segundo a qual as medidas restritivas não funcionaram, conforme indicaria o decolar da curva de mortos, senão para assassinar a economia e matar o pobre.

Guedes é o churrasqueiro. Espero que saiba que o chefe gosta de carne bem passada, há um mês dizendo que o pior já passou. A costela somos nós.

Falta governo na pandemia - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 12/05

País desconhece a realidade sanitária nas cidades, de pessoal, leitos e equipamentos na rede hospitalar

Falta governo na saúde. A evidência está na devastação provocada pelo vírus em menos de vinte semanas.

Em dezembro, quando a China confirmava a disseminação, 11 estados brasileiros fechavam 17 hospitais e 30 postos do SUS. Faltou dinheiro, alegaram aos repórteres André de Souza, Marlen Couto e Sérgio Roxo.

Jair Bolsonaro repetia Dilma Rousseff, que presidiu a desativação de 11,5 mil leitos hospitalares — um a cada duas horas —, nos primeiros dois anos e meio. A redução da rede e as greves aumentaram a fila do SUS, única opção para três em cada quatro brasileiros. A imprevidência fez nascer outra fila, a das aposentadorias.

Antes do carnaval, no 28 de janeiro, deputados cobraram um plano federal para a Covid-19. Fez-se silêncio no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministérios. A prioridade era o corte linear nos gastos.

Quando a “gripezinha” ameaçou o SUS de colapso, em abril, houve uma miríade de promessas: 2 mil novos leitos de UTI, 40 mil respiradores, 44 milhões de testes para Covid-19, entre outras coisas. Até sexta haviam sido entregues 400 leitos de UTI (20% do prometido), 487 respiradores (1,2% ) e, com sorte, maio acaba com 2 milhões de testes (4,5%).

Com menos 17 hospitais no país, o governo resolveu erguer 48 unidades de campanha ao custo de R$ 10 milhões cada. Bolsonaro posou para imagens num deles (220 leitos), em Águas Lindas (GO). Está pronto há semanas, mas continua fechado, assim como o de Boa Vista (88 leitos).

O desgoverno na saúde levou a um apagão de informações. O país sabe o ritmo da inflação a cada dia, mas desconhece a realidade sanitária nas cidades, de pessoal, leitos e equipamentos na rede hospitalar.

Com fila de mais de mil doentes, o Rio vive a agonia da anarquia na pandemia. Possui oito instituições federais de saúde em extrema precariedade. Elas consomem R$ 3,5 bilhões por ano, o equivalente ao custo anual da rede de 66 hospitais estaduais.

Amarelo-golpista - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 12/05

Autoritários excitam predisposição do presidente e exigem reação institucional


Sob o beneplácito do presidente da República, a cor da moda em nichos da veneração bolsonarista é o amarelo-golpista. Combinada ao verde-ódio, a onda retrô patrocina aglomerações em plena epidemia mortal, emprega violência e incita à ruptura do regime democrático.

Seus primeiros modelos se exibiram acoplados a movimentos que pediam o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2015 e 2016. Outro desfile, mais desavergonhado, ocorreu no cerco à população brasileira promovido por caminhoneiros em maio de 2018.

Após a vitória de Jair Bolsonaro, os tons da boçalidade passaram a adornar gabinetes do Executivo federal e chegaram ao Planalto. A longa trajetória do eleito como deputado federal não deixava dúvidas sobre suas inclinações autoritárias e seu desprezo pelos princípios norteadores do pacto de 1988.

Uma vez eleito, não negou sua própria biografia. Pior, a caneta na mão deu vazão ao irascível e incapaz chefe de Estado para criar uma série de crises. O exemplo mais recente de uma lista imensa é a incapacidade de liderar o país no momento em que o Brasil e o mundo passam pelo maior desafio sanitário e econômico de uma geração.

O erro crasso de Bolsonaro ao menosprezar o impacto da pandemia na saúde transformou o que era uma relação difícil com os demais atores institucionais num conflito aberto. O presidente se colocou quase na condição de pária mundial e talvez por isso se aproximou mais da militância lunática.

Que não reste dúvida sobre quem é a parte fraca —Bolsonaro— e quem é a forte —a arquitetura institucional que o contém— nesse embate. Ainda assim, cabe aos fiscais da lei investigarem quem está por trás de movimentos conspiratórios, mesmo que partam de nichos aparentemente exóticos, o que é apenas parcialmente verdade quando examinadas algumas conexões dos agitadores da baderna.

Detectaram-se pessoas próximas a quem exerce mandato em relação com aparelhos, como um tal “300 do Brasil”, que organizaram atos antidemocráticos. Investigam-se deputados sob suspeita de envolvimento em tramas contra a ordem constitucional, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso.

No Conselho de Ética da Câmara, adormece representação contra o deputado Eduardo Bolsonaro, por cogitar a repetição de uma medida como o AI-5, que em 1968 fechou o Congresso e esmagou o que restava de liberdades individuais.

Tais movimentos golpistas, que um dia se deram nas franjas distantes do poder de Estado, hoje excitam a predisposição de quem está na Presidência. Que o Judiciário e o Legislativo descubram quem segura as cordas a mover as marionetes de camisa amarela.

Evolução da pandemia demoliu tese bolsonarista contra o isolamento - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 12/05

A velocidade do aumento do número de casos mostra a necessidade de medidas mais duras nas cidades


Bolsonaro continua a justificar as críticas de dentro e de fora do país ao seu comportamento inominável com relação à tragédia em curso no país provocada pela epidemia da Covid-19. Desde que começaram a ser contabilizados no Brasil casos de infecção pelo vírus Sars-CoV-2, no final de fevereiro, o presidente assume uma posição negacionista, contrária a medidas preventivas como o isolamento social, quarentenas e similares.

O presidente Trump recuou em parte nessa posição quando começou a se assustar com a explosão no número de mortos no estado de Nova York (até o início da tarde de ontem, 26.800), que tomou da cidade chinesa de Wuhan o posto de epicentro mundial da pandemia. O colega brasileiro, ao contrário, segue em frente no desatino.

No sábado, quando o país alcançou oficialmente 10 mil mortes, Bolsonaro passeou de jet-ski no Lago Paranoá, em Brasília, depois de ter desmentido que faria um churrasco para a família e convidados no Alvorada, um tipo de evento desaconselhado por gerar aglomerações e facilitar o contágio por um vírus de elevada transmissibilidade. O presidente recuou na festa devido ao tamanho da repercussão negativa. Em contrapartida, Congresso e Supremo decretaram luto oficial pelas vítimas.

O histórico desta pandemia já fornece provas e argumentos sólidos de que seria um erro crasso de dimensões descomunais o poder público nada fazer para atenuar a propagação de um vírus desconhecido, contra o qual ainda não há a proteção de vacina e medicamentos que possam contê-lo. Tudo dentro da teoria de que os vírus cumprem um ciclo de ascensão e queda, à medida que a contaminação das pessoas vai criando anticorpos na população.

Mas a que custo em termos de vidas humanas? Na noite de sábado, o programa “GloboNews Debate”, com a participação dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde, Bolsonaro), do DEM; Humberto Costa (Saúde, Lula), do PT; e Osmar Terra (da Cidadania, Bolsonaro), do MDB, serviu para reafirmar a fragilidade da argumentação bolsonarista contra o isolamento e outras medidas desse tipo, defendidas no programa por Terra.

O deputado do MDB gaúcho, também médico como Mandetta e Humberto Costa, não conseguiu justificar o fim do isolamento diante da sobrecarga nas redes de saúde, como já ocorre em Manaus, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Deixa-se as pessoas morrerem sufocadas nas ruas? É indiscutível que os países que ensaiaram uma posição mais relaxada no início da epidemia foram forçados a tomar medidas às pressas para esvaziar as áreas públicas. Foi assim na Itália e nos Estados Unidos, casos notórios de recuo.

Brincando de ser presidente - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 12/05

O enfrentamento da crise é quase impossível quando se tem um presidente absolutamente incapaz de ver o mundo além do próprio umbigo


O Brasil decente e solidário está de luto. O Congresso e o Supremo Tribunal Federal decretaram no sábado passado luto oficial de três dias, depois que o Brasil superou a triste marca de 10 mil mortos pela covid-19. O governador de São Paulo, João Doria, já havia feito o mesmo na quinta-feira, dia 7, e o luto paulista será mantido até o fim da pandemia. Como lembrou o Supremo, em nota oficial, “precisamos, mais do que nunca, unir esforços, em solidariedade e fraternidade, em prol da preservação da vida e da saúde”. E a mensagem da Corte arrematou: “A saída para esta crise está na união, no diálogo e na ação coordenada, amparada na ciência, entre os Poderes, as instituições, públicas e privadas, e todas as esferas da Federação deste vasto país”.

No mesmo dia em que as principais autoridades do Judiciário e do Legislativo manifestavam pesar pelos milhares de concidadãos mortos e rogavam aos brasileiros que se unissem na luta contra a pandemia, circularam pelas redes sociais imagens do presidente Jair Bolsonaro a passear de moto aquática pelo Lago Paranoá, em Brasília, divertindo-se à beça. A este senhor, que brinca de ser presidente, não basta incitar seus camisas pardas vestidos de verde e amarelo a desafiar as instituições republicanas e a intimidar jornalistas; é preciso tripudiar sobre o sofrimento dos milhares de brasileiros que morreram e dos milhões que ora se encontram em quarentena, abrindo mão de sua vida social e enfrentando as agruras do desemprego e da redução de renda.

E mais: enquanto os governadores e prefeitos lutam para convencer seus governados a ficar em casa, única forma de retardar o colapso do sistema público de saúde – que já se verificou em diversos Estados –, o presidente avisa que vai ampliar, por decreto, o número de atividades consideradas essenciais e, portanto, livres de restrições durante a pandemia. “Vou abrir, já que eles (governadores) não querem abrir, a gente vai abrindo aí”, declarou Bolsonaro, como se a quarentena fosse uma escolha, e não um imperativo. Respeitados especialistas dizem, aliás, que o ideal seria impor desde já o chamado “lockdown”, isto é, a radicalização do isolamento social – o exato oposto do que Bolsonaro defende.

Compreende-se a dificuldade de fazer com que os cidadãos aceitem o isolamento social, o que inclui pôr em risco a própria sobrevivência e a da família em muitos casos. A situação fica ainda mais dramática à medida que a quarentena se estende no tempo. Portanto, é razoável esperar uma progressiva queda na adesão ao esforço coletivo para reduzir o contágio, mas está claro que essa queda tende a se acentuar quando a mensagem das autoridades a respeito da pandemia é confusa e fragmentada.

Se o presidente usa sua destacada posição de principal dirigente da República para, além de debochar dos mortos e dos que estão sofrendo, incitar os cidadãos a ignorar a quarentena imposta por governadores e prefeitos como se fosse desnecessária, não surpreende que muitos o façam. Em vez de inspirar os cidadãos a aceitar a responsabilidade de cada um no enfrentamento da pandemia, o presidente estimula o fracionamento da autoridade – o que, no limite, leva à desobediência e ao caos. Para complicar, o Ministério Público ainda colabora para minar a credibilidade dos governos estaduais e das prefeituras ao criar caso com compras emergenciais de equipamentos médicos, ignorando que, neste momento, eventuais irregularidades, previsíveis numa operação dessa magnitude, são o menor dos problemas diante da urgência urgentíssima.

O enfrentamento desta crise, que caminha para ser a maior da história do Brasil, depende, fundamentalmente, de harmonia entre as diversas autoridades, em todas as esferas, resguardadas as prerrogativas de cada uma, conforme o espírito da Federação. E depende de articulação dedicada entre o presidente, seus ministros, os governadores e os prefeitos, além do Congresso, do Judiciário e do Ministério Público. Obviamente não é fácil, como ficou claro na maior parte dos países do mundo, às voltas com atropelos no combate à covid-19. Mas é muitíssimo mais difícil, quase impossível, quando se tem um presidente que, tal como um adolescente birrento e mandão, é absolutamente incapaz de ver o mundo além do próprio umbigo.