segunda-feira, abril 06, 2020

A mídia hoje pode cometer um pecado capital: dar voz aos geradores de histeria - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 06/04

É urgente que o imperativo do horror não se transforme em critério de combate à irresponsabilidade presidencial

Imagino que a geração que viveu a gripe espanhola, muito pior do que esta, teve uma vantagem sobre nós: o mundo era mais silencioso. Menos falação, menos profecias supostamente científicas, menos números de mortos jogados na nossa cara todo dia. E pra que isso?

É comum se dizer, ironicamente, que o jornalismo vive de sangue. A frase causa calafrios nos colegas que se veem como o braço armado da informação para o bem de todos.

A epidemia tem nos legado um fenômeno interessante, talvez, em parte como consequência de criarmos uma frente contra a irresponsabilidade do presidente da República. Por outro lado, como já tive a chance de dizer, muitas pessoas têm um gozo específico com o fim do mundo, ao ver os outros com medo.

Temo que seja chegada a hora de fazermos uma reflexão sobre o risco de a mídia embarcar numa polarização típica da nossa era, que é a da política histérica. Se por um lado a irresponsabilidade de Bolsonaro é gritante, nem por isso a verdade está do lado da histeria gerada na população. Não devemos dar espaço aos apocalípticos nesses dias, nunca será pouco repetir essa máxima. Pessoas que falam que morrerão milhões ou que 2020 será todo trancado em casa, não devem sair do seu buraco, mesmo que com milhões de discípulos.

Sabemos do valor pedagógico e político do medo. O filósofo fiorentino Maquiavel (1469-1527) já dizia no seu “O Príncipe” que o medo é um instrumento poderoso na “gestão de pessoas”, como está na moda dizer.

Muitos argumentam que alimentar o medo ajuda as pessoas a respeitar o isolamento. Verdade em grande medida. Mas, como dizia o próprio fiorentino, só medo, ou medo demais, tende a desesperar as pessoas e o tiro sair pela culatra.

Nunca, nos últimos tempos, a responsabilidade da mídia profissional foi tão grande. Devemos isolar o vírus da histeria alarmista. E isso, infelizmente, não parece estar acontecendo. É claro que não estamos falando de todos os veículos ou de todos os profissionais.

Mas, é urgente que o imperativo do horror não se transforme em critério de combate à irresponsabilidade presidencial, nem de audiência, muito menos de cliques ou likes. Se as mídias sociais podem seguir aos milhões qualquer um, lembremos que outros milhões seguem Bolsonaro, e nem por isso os julgamos “sábios” no combate à epidemia. Quantidades nunca foram sinônimo de verdades.

A ciência é lenta, protocolar, metódica, o que para Descartes (1596-1650) era signo de humildade. Sua temporalidade não agrada a fúria da massa nas redes. Suas exigências não vão ao encontro da ansiedade dos nossos tempos. Suas respostas não são sempre tão evidentes. Sua mensagem, às vezes, parece coisa de elite: para poucos, nem sempre fácil de entender, muitas vezes fica aquém da necessidade de muitos de ter um guru a seguir.

A mídia hoje pode cometer um pecado capital: dar voz aos geradores de histeria. Esses, provavelmente ganharão muito dinheiro no futuro próximo, vendendo pânico e alimentando empresas de seguro pouco cautelosas.

Como esta Folha tem bem demonstrado, é fundamental dizer às pessoas que pouco sabemos com certeza de fato sobre a letalidade ou o comportamento epidemiológico do vírus. Dito em outras palavras: precisamos de tempo pra conhecer esse ilustre desconhecido. Esse tempo é calculado em cima das mortes, do combate a elas, do medo, do combate ao medo e dos cuidados para não matar de vez a economia.

Os debates científicos nunca foram feitos de forma tão rápida. A comunidade científica tem de resistir à tentação que há poucos anos se abateu sobre a magistratura: gozar com as luzes da ribalta. É evidente que esse juízo não se aplica a toda a comunidade científica, assim como não se aplica a toda a comunidade de jornalistas, assim como nunca se aplicou a toda a magistratura.

Não devemos dar ouvidos àqueles que recolhem milhões de seguidores vendendo o horror, como uma espécie de Greta Thunberg piorada.

O que se aprende de válido na repetição contínua dos números de mortos? Nada. Por que afogar as pessoas no desespero? Simples: está nascendo o mercado do terror da epidemia.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

O futuro é sombrio - BRUNO CARAZZA

Valor Econômico - 06/04

Se nada for feito, no futuro a peste, a guerra, a fome e a morte continuarão a cavalgar nas costas da imensa desigualdade social brasileira


Com a recomendação de jejum nacional sendo alçada a política pública de combate à covid-19, é bom lembrar que, de acordo com João, o fim dos tempos chegará sob a liderança da Peste. Na sequência, virão a Guerra, a Fome e, finalmente, a Morte.

Walther Scheidel, professor de história antiga na Universidade de Stanford, também tem seus quatro cavaleiros do Apocalipse. Dois são os mesmos elencados pelo “discípulo que Jesus amava”: as epidemias e a guerra. Completam o quarteto o colapso do Estado e as revoluções socialistas.

Em “The Great Leveller: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century” (que nas próximas semanas será lançado no Brasil pela editora Zahar sob o título “Violência e a História da Desigualdade”), Scheidel analisa os principais fatores que levaram não ao Armagedon, mas sim à redução esporádica da desigualdade ao longo da história da humanidade.

Com abundância de exemplos e dados, o autor argumenta que, nas sociedades eminentemente agrárias que predominavam até o início do século XX, as epidemias exterminavam grandes contingentes de pessoas. Em resposta à escassez de mão de obra, o mercado de trabalho se reequilibrava com o aumento dos rendimentos dos sobreviventes - e, assim, a distância entre ricos e pobres diminuía.

Outras formas traumáticas de reduzir a desigualdade foram as guerras, as revoluções e a falência do Estado. Ao romperem a estrutura social, esses eventos levavam a uma redistribuição de poder e riqueza entre os diferentes grupos, podendo ocasionar um momentâneo efeito “nivelador” das condições de vida entre seus habitantes.

Com os intensos processos de urbanização, industrialização e aprimoramento educacional da população mundial ao longo dos séculos XX e XXI, o professor de Stanford deposita suas esperanças na mudança de preferências do eleitorado como uma solução menos violenta para as graves crises que enfrentamos. Em entrevista recente à BBC, Scheidel acredita que se a covid-19 for realmente devastadora, a população poderá demandar mudanças políticas e econômicas na direção de um Estado de bem-estar social mais forte, principalmente em países como Estados Unidos e Brasil.

A nova pandemia está expondo as diversas fragilidades do modelo brasileiro de (sub)desenvolvimento. Nossa resiliência à crise está sendo afetada pela crônica falta de dinamismo de nossa economia e à irresponsabilidade fiscal dos últimos anos. E à medida que a doença avança, outras deficiências ficam morbidamente mais claras: o baixo grau de formalização do mercado de trabalho, a precariedade de nossa rede de proteção social, as diferenças entre os sistemas público e privado de saúde e as mazelas de nosso saneamento básico e das condições habitacionais.

Ao que tudo indica, infelizmente, ainda passaremos as próximas semanas em isolamento social, acompanhando apreensivos a contagem de mortos e a deterioração econômica, enquanto a covid-19 chega cada vez mais próximo de nossos lares e famílias. Ainda não sabemos quando e nem como devemos afrouxar o distanciamento social para permitir uma retomada segura das atividades cotidianas. Muito mais importante, contudo, é pensar que tipo de país construiremos depois do coronavírus.

A opção proposta pelo professor Scheibel passa pela construção de um novo pacto social, em que os imensos déficits gerados pelos pacotes de estímulo serão cobertos por impostos cobrados daqueles com maior capacidade contributiva. Também haveria um estímulo ao aprimoramento dos sistemas de assistência médica à população e de maior proteção aos trabalhadores mais vulneráveis, eventualmente com a implementação de um programa de renda básica universal. Dessa forma, o efeito nivelador da covid-19 seria alcançado com políticas públicas e econômicas mais progressistas.

No caso brasileiro, tenho sérias dúvidas se conseguiremos fazer uma limonada desse amargo limão que é a pandemia provocada pelo novo vírus. Ainda é cedo para afirmar, mas as medidas do governo para resgatar a economia podem ter efeito negativo sobre a desigualdade.

Ao que tudo indica, a recessão será muito mais profunda e duradoura do que esperávamos, e auxílios emergenciais de R$ 600 ou frações de seguro-desemprego por três meses não serão capazes de neutralizar os severos impactos sobre a renda dos mais pobres e desamparados. Enquanto isso, aqueles que têm empregabilidade, economias e acesso ao crédito conseguirão superar os tempos ruins de forma muito mais suave.

Novas leis e decisões judiciais tomadas sob a pressão da emergência social também podem levar a ainda mais desigualdade. Nas últimas semanas centenas de novos projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional, boa parte deles pedindo proteção e tratamento especial para as mais variadas categorias. No Judiciário, medidas liminares suspendendo efeitos contratuais vêm sendo concedidas em todos os tribunais, influenciadas por uma perigosa lógica de curto prazo que tem efeitos bastante deletérios num horizonte mais largo.

Para piorar, a crise da covid-19 ainda teve a externalidade negativa de interditar o debate sobre reformas que poderiam contribuir para as condições de competitividade e até mesmo na distribuição de renda no Brasil. Com a recessão afetando principalmente o setor de serviços, será muito difícil retomar num curto intervalo de tempo a tramitação da reforma tributária, que previa um tratamento equânime na cobrança de impostos sobre o consumo. Com todas as energias concentradas nas medidas de saúde pública e econômicas, também serão adiadas as discussões sobre a reforma administrativa e os privilégios de certos segmentos do serviço público.

Quanto mais profunda a recessão, mais difícil será convencer os setores mais privilegiados da sociedade a aceitarem uma tributação mais progressiva; e quanto maior o crescimento da dívida, menos provável ampliarmos nossos programas sociais. Se nada for feito, no futuro a peste, a guerra, a fome e a morte continuarão a cavalgar nas costas da imensa desigualdade social brasileira.

Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.

Congresso mostra eficiência em decisões na crise - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 06/04

Nos últimos dias, Legislativo atuou com celeridade e bom senso, apartando as próprias divergências


O Congresso está fazendo uma coerente releitura da História em sintonia com as necessidades impostas pela crise provocada pela pandemia.

Na semana passada realizou a primeira sessão remota bicameral dos seus 195 anos. Com 89% dos votos de senadores e deputados, aprovou mudanças significativas no Orçamento da União para permitir ao governo federal uma ampla margem de aumento nos gastos com o socorro a pessoas, empresas, estados e municípios durante esta etapa da calamidade pública.

Nos últimos 15 meses têm sido frequentes as análises sobre o protagonismo do Legislativo no vácuo de um governo recolhido aos próprios impasses político-ideológicos. Nessa crise, a novidade está na demonstração de inusual agilidade operacional e de amplo consenso entre parlamentares em decisões sobre questões complexas e abrangentes para a emergência sanitária nacional.

A velocidade legislativa tem acompanhado o ritmo de avanço da Covid-19 em direção à periferia das grandes cidades e das capitais para o interior.

Em alguns aspectos, ecoa a reação à epidemia de 1918, quando um vírus de gripe chegou ao país a bordo do navio Demerara, com escalas no Recife, em Salvador e no Rio. No mês seguinte, outubro, deflagrou-se uma devastação no país, que não dispunha de rede pública hospitalar. A dimensão das fragilidades do setor público, do clima de caos e horror da época está nos registros históricos sobre grande número de sepultamentos em covas coletivas.

Ultrapassada a emergência, em 1919, o Congresso aprovou uma ampla reforma na Saúde, de âmbito nacional, que pode ser interpretada como marco inaugural da luta pela construção do Sistema Único de Saúde, consolidado em 1988 e posto à prova na atual pandemia.

Nos últimos dias, o Legislativo não só mostrou celeridade como, também, bom senso ao apartar as próprias divergências, típicas de qualquer parlamento, numa espécie de quarentena.

Por consenso, dispensou o governo do cumprimento das metas fiscais, aplainando o caminho para quase R$ 400 bilhões de despesas efetivas (antes de juros e encargos da dívida pública) acima das receitas previstas no Orçamento de 2020. Retirou as amarras da burocracia orçamentária.

Não mais será preciso que o governo aponte a origem dos recursos para custear os gastos emergenciais, enquanto durar a pandemia.

Atuou, ainda, junto ao Supremo Tribunal Federal para que se produzisse decisão imediata, liminar, desobstruindo o caminho do governo na ampliação dos necessários investimentos em saúde.

Poderá avançar muito mais, em torno de temas consensualmente já estabelecidos — entre outros, as políticas de renda mínima e de saneamento básico —, reconhecidos como fundamentais à reconstrução do país.

Falsos dilemas e perda de tempo - GUSTAVO LOYOLA

Valor Econômico - 06/04

Os riscos de o Brasil sofrer uma tragédia em termos humanos, sociais e econômicos são grandes demais


No meio da grave pandemia da covid-19, o país se viu envolvido nas últimas semanas num debate estéril e absurdo a respeito de um falso dilema, por obra principalmente do presidente da República. A ideia de que as medidas drásticas de distanciamento social (DS) trazem maiores prejuízos para a economia do que políticas menos severas de restrição (“isolamento vertical”) é completamente falaciosa. Resulta de uma visão míope e egoísta que toma em consideração apenas os efeitos de curto prazo sobre a atividade econômica.

Sem contar com as implicações éticas derivadas da defesa de políticas que desvalorizam a vida humana, os defensores do “isolamento vertical” cometem grave erro, como amplamente mencionado em vários artigos de especialistas publicados recentemente mundo afora. Para poupar espaço, menciono aqui, de modo sucinto, apenas três dos graves equívocos da posição a favor da política de afrouxamento das medidas de DS como possível forma de abrandar os efeitos da crise sobre a economia.

O primeiro e mais grave erro é o de desconsiderar os riscos do colapso do sistema de saúde com consequências econômicas, sociais e políticas provavelmente muito mais danosas e permanentes do que a perda temporária de consumo e produção derivadas das políticas mais duras de DS. As imagens do que ocorre no norte da Itália já falam por si mesmas, porém num país com as desigualdades sociais maiores e com um gigantesco déficit habitacional, como é o caso do Brasil, é necessário ter em conta o risco de a catástrofe ser ainda maior do que se observa na velha Europa.

Outro problema é ignorar os efeitos negativos sobre as expectativas dos agentes econômicos que resultariam de meias medidas adotadas no enfrentamento da pandemia. Como uma espada de Dâmocles pendendo sobre a economia, os riscos de um agravamento do surto da covid-19 mais adiante seguirão impactando as expectativas e assim restringindo as decisões de consumo e investimento e adiando a retomada da economia.

Um terceiro problema é hipótese subjacente de que não existem, à disposição dos governos, políticas compensatórias que podem mitigar de modo relevante os custos econômicos de curto prazo trazidos pelas medidas de distanciamento social. Neste ponto, o equívoco salta ainda mais aos olhos quando se têm em conta a reação praticamente universal dos governos com o intuito de amortecer os impactos da crise sobre as economias. Neste ponto, aliás, há uma contradição gritante entre a postura desarrazoada do presidente contrária ao chamado isolamento horizontal e as ações que seu próprio governo vem adotando na esfera da economia.

Nunca é demais lembrar que o enfrentamento de uma crise do porte da covid-19 exige alto grau de coordenação entre todas as esferas de governo e uma comunicação eficiente e transparente com a sociedade. Cabe aos governantes, principalmente nas situações de crise nacional, o papel de alinhamento das expectativas da população. No campo da economia, o governo deve reduzir as incertezas que, se amplificadas, trazem consequências ainda mais danosas sobre a vida econômica.

Quanto às ações anunciadas pelo governo federal, pode-se dizer que estão na direção correta, mas sua efetividade ainda está para ser provada. Algumas dessas medidas são de fácil implementação - como por exemplo as ações do Banco Central para assegurar a liquidez no sistema financeiro - mas outras - justamente as de impacto mais imediato e direto - são de execução complexa que demanda capacidade de gestão por parte dos diversos componentes do governo. Nesse ponto é que a postura divisiva de Bolsonaro pode atrapalhar a consecução tempestiva das medidas, já prejudica a coordenação entre os vários envolvidos em sua implementação.

Vale ressaltar que o volume de recursos envolvidos nas medidas até aqui divulgadas não é pequeno, em torno dos R$ 750 bilhões, segundo o ministro Paulo Guedes. Dessas medidas, cerca de R$ 200 bilhões têm impacto fiscal direto, o que se trata de esforço razoável considerando que a situação fiscal do Brasil no pré-crise não era confortável. Exatamente por isso, é mais necessário ainda que as ações do governo sejam bem executadas, evitando-se desperdício de recursos que são escassos.

Nesse contexto, a desarticulação provocada pelas falas inoportunas e equivocadas de Bolsonaro restringem a efetividade das iniciativas de seu próprio governo. Preocupa especialmente as críticas do presidente da República aos governadores e prefeitos que aderiram massiva e corretamente às medidas de isolamento social. As características da federação brasileira e as competências concorrentes em áreas como a saúde exigem que as três esferas de governo trabalhem de modo coordenado em situações de crise como a que agora se encontra o Brasil.

Definitivamente, não é o momento para se perder tempo com debates inúteis. Os riscos de o Brasil sofrer uma tragédia em termos humanos, sociais e econômicos são grandes demais para que dirigentes políticos como Bolsonaro sigam estimulando a divisão entre aqueles que deveriam estar na frente de batalha contra a pandemia.

Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, foi presidente do BC e é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo

Saúde e economia são antagônicas? - MICHEL TEMER

ESTADÃO - 06/04

Estamos em ‘guerra’ contra um inimigo insidioso para preservar vidas. Fique em casa!

Respondo desde já: absolutamente não. E explico: a saúde é direito de todos é dever do Estado, registra inicialmente o artigo 196 da Constituição federal. Como se a garante? É no mesmo artigo 196 que está escrito: “mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco da doença e de outros agravos...”. São as políticas sociais e a atividade econômica que garantem a preservação da saúde.

O que temos no momento atual? Uma pandemia pelo novo coronavírus. Pandemia porque universal, não apenas localizada. Cresce o número de infectados e de mortes. E tudo indica que se trata de doença de fácil transmissão. Mas basta verificar os cuidados mais comezinhos que se devem tomar para evitar a sua proliferação. Portanto, saúde acima de tudo.

Aliás, não são poucos os dispositivos constitucionais que dela tratam. Afora a Seção II do Título VII, que trata da ordem social, nela incluída a seção mencionada, dos artigos 186 a 200, o certo é que outros cuidam do tema. Assim é com os artigo 23, II, e 24, XII, da Constituição federal. O primeiro entrega à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios uma competência executiva, ou seja, “cuidar da saúde” como competência comum. No artigo 24, XII, as mesmas entidades, à exceção dos municípios, têm competência concorrente para legislar sobre o tema. Obedece-se, com essa fórmula, ao princípio federativo no destaque ao tema saúde.

Organismos internacionais e nacionais recomendam o isolamento social com o dito “fiquem em casa”. Aqui e no exterior já que se trata de pandemia. Interromper a espiral do contágio é a única medida, cientificamente, que temos para combater o espalhamento da covid-19. A luta é para que tenhamos menos pessoas internadas.

E aí surgiu uma disputa entre os que pregam o isolamento social completo e os que defendem nenhum isolamento, ao fundamento de que o Brasil não pode parar. Mas aos poucos foi crescendo a ideia de que certas atividades não poderiam cessar e se entendeu que isso era movimentar a economia. Não é. Na verdade, é para preservar a saúde da população. Demonstro.

Por que é que se autoriza o trabalho dos médicos, enfermeiros e operadores da saúde? Para cuidar da saúde dos enfermos. Por que é fundamental o livre trânsito dos caminhoneiros, que devem ter, na estrada, meios de sobrevivência, como alimentação, higiene, combustível? É porque eles promovem o abastecimento da população. Já imaginaram o que aconteceria com o desabastecimento de supermercados ou minimercados em todo o País? Como as pessoas se alimentariam? Morreriam de fome?

E quem precisa de remédios, máscaras, etc., se as farmácias não fossem abastecidas? Adoeceria? E o campo, o agronegócio, podem parar? De onde vem o abastecimento dos Ceasas, dos mercados, etc.? Não será da produção agrícola? Isso tudo é em função da economia, como, de resto, outras tantas atividades ditas essenciais?

Absolutamente não. É para manter a incolumidade física, a saúde das pessoas. Portanto, sem embargo de essas tarefas encerrarem uma natureza econômica, são, na verdade, conteúdo de um continente chamado saúde. São atividades complementares dentro do tópico “saúde”. Por essa razão, hão de ser autorizadas.

Quero com isso evidenciar que no plano constitucional é essa a abrangência do vocábulo “saúde”. Assim, duas conclusões: primeira, o isolamento social é importante nos termos propostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde; segunda, as atividades ditas essenciais haverão de ser, como estão sendo, autorizadas, para garantir a saudabilidade dos cidadãos.

Finalmente, aí, sim, economia: os governos federal, estaduais, distrital e municipais devem destinar recursos, quantos sejam necessários, para manter salários de empregados, verba para autônomos, crédito para de médias a microempresas e facilitação do financiamento para grandes empresas, com o objetivo de manter a empregabilidade.

O curioso é que isso tem sido feito pelas entidades federativas. Se for pouco agora, há de ser aumentado depois.

Estamos em “guerra” contra um inimigo insidioso para preservar vidas. Vidas que, preservadas, ajudarão a recuperar a economia quando a “guerra” terminar.

A doença não escolhe príncipes, plebeus, artistas, líderes ou atletas. O vírus não gosta mais ou menos dos italianos ou dos paulistanos. Vírus é vírus. E, como tal, ele se apresenta ora como gripe, ora sufoca e mata. E, como vírus que é, às vezes nada faz. Por isso, melhor pecarmos pelo exagero do que nos arrependermos depois.

A covid-19 talvez conviva com a gente para o resto da nossa vida. Espero que o retrovírus e a vacina, também. Agora, o que vai nos proteger e projetar para o resto dos tempos é a nossa atitude, é a nossa consciência.

Daí também por que não faz sentido a divisão entre os governados e entre os governantes. Se já estão fazendo, unam-se todos. Bom para o Brasil e péssimo para o coronavírus. Fique em casa!

ADVOGADO, PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA