terça-feira, junho 09, 2020

Reflexões sobre a violência - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 09/06

Há algo de sacrílego na ideia de que os guardiões podem ser os carrascos


1. Há imagens que são história. E que ajudam a mudar a história. Se nessas imagens existirem policiais, melhor ainda: há algo de sacrílego na ideia de que os guardiões podem ser os carrascos.

Em 1968, quando os Estados Unidos estavam envolvidos na Guerra do Vietnã, um fotógrafo da Associated Press captou o momento em que o chefe da polícia do Vietnã do Sul enfiava uma bala na cabeça de um vietcongue.

Os americanos, quando confrontados com a imagem, fizeram a pergunta óbvia: que estamos nós fazendo no meio desses selvagens?

Antes da derrota no terreno, os Estados Unidos começaram a ser derrotados em casa, aos olhos do seu próprio povo.

O vídeo de George Floyd terá um estatuto igual. Assisti, com esforço, a esse “snuff movie” cruel, pornográfico e bem real: o agente com ar de triunfo, asfixiando com o joelho um homem que implorava por oxigênio.

Se a foto no Vietnã simbolizou a insanidade da guerra, o vídeo de George Floyd simboliza o racismo letal que sobrevive na cultura americana.

Aliás, por falar em racismo, é irônico, tragicamente irônico, que um outro vídeo tenha sido esquecido por esses dias. Sim, não tem a violência aterradora do vídeo de Floyd. Mas, em termos de violência social, merece um lugar no panteão.

Aconteceu no Central Park de Nova York, em finais de maio. Uma mulher (branca), passeando o cachorro, encontra um ornitólogo (negro) entre as árvores. O homem, chamado Christian Cooper, pede para que ela ponha a guia no cão. As regras do parque assim o exigem.

Ela se recusa. É então que Cooper começa a filmar a cena com o seu celular. A mulher, indignada, avisa que vai telefonar para a polícia para comunicar que “um afro-americano” está a ameaçar a sua vida.

Christian Cooper a convida a telefonar. A mulher telefona e, em tom artificialmente histérico, repete, em choro: “um afro-americano” está a me ameaçar no Central Park.

Em breves minutos, temos o essencial de um problema profundo: uma branca que se sente acima da lei; que não tolera um reparo público de um negro; que ameaça com a polícia; e que joga o argumento racial porque sabe que isso faz a polícia salivar (e os negros tremer).

Quando assistia ao vídeo, lembrei-me de um dos livros de história mais impressionantes que li neste ano: “They Were Her Property”, da historiadora Stephanie Jones–Rogers. É um estudo sobre o papel das mulheres (brancas) como donas de escravos no sul dos Estados Unidos. E de como essas mulheres foram implacáveis na defesa da instituição.

Isso não é politicamente correto, sobretudo quando o vitimismo contemporâneo põe todas as minorias na mesma sacola (mulheres, negros etc.)? Admito que sim.

Mas, por maiores que sejam as provações das mulheres brancas na sociedade americana, é preciso lembrar que a história dos negros se escreve com outras cores. As cores do sangue.

2. Ainda sobre imagens: a internet não partilhou apenas a morte de George Floyd. Também mostrou a destruição e as pilhagens que se cometeram em seu nome.

Dizer que essa destruição e essas pilhagens são manifestações antirracistas seria um insulto à memória de George Floyd e aos milhares de manifestantes que marcham, realmente, contra o racismo.

Pior: em incontáveis vídeos, podemos ver militantes de extrema esquerda e de extrema direita que, espancando ou roubando, mostram a essência que os une. Qual é ela?

O gosto pela violência. Eu sei, eu sei: em toneladas de tratados sociológicos, a violência nunca é violência. É um grito de ajuda, um ato simbólico, uma forma de denúncia etc.

Só pessoas que vivem na Lua (ou em muitos departamentos de humanidades, o que é a mesma coisa) levam a sério esse lero-lero.

Para elas, recomendo uma obra fundamental. Não, não é um livro. É o extraordinário filme de Danny Boyle, “Trainspotting”.

Falo, sobretudo, daquela sequência em que o personagem de Robert Carlyle joga uma caneca de cerveja sobre a multidão do bar, o vidro arrebenta a cabeça de uma moça e ele, indignado, proclama aos gritos: “Ninguém sai daqui enquanto não encontrarmos o responsável!”. E o festival de brutalidade começa.

Se eu, um homem pacífico, sinto com essa cena uma vontade quase irreprimível de me juntar à festa (a natureza humana é um abismo...), que dizer de delinquentes profissionais que vivem para esses momentos?

Para eles, a morte de George Floyd não foi uma tragédia; foi um presente.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Um comentário:

  1. Disse tudo,manifestação com violência só mostra a agressividade que há em cada um.

    ResponderExcluir