quinta-feira, junho 04, 2020

Não há nenhum adulto em Brasília? - CORA RÓNAI

O GLOBO - 04/06

Há algo francamente errado quando até torcidas organizadas de futebol se unem para ir às ruas no auge de uma pandemia


Mais de meio milhão de casos, mais de 31 mil mortos, quase três meses de quarentena e isolamento social. Enterros feitos às pressas, parentes que desaparecem de um momento para o outro sem que as famílias possam se reunir para chorar, para se lembrar e para encontrar conforto. Filhos, irmãs, tios, avós, maridos, esposas, pais e mães, madrinhas, amigos, amigas. Antes, quando líamos relatos das epidemias antigas, descrevendo charretes que percorriam as cidades juntando cadáveres casa a casa, não entendíamos como era possível entregar assim os restos dos entes queridos, sem um mínimo de ritual e de reverência; agora entendemos. As fotos dos caixões amontoados na Itália, os caminhões frigoríficos parados às portas dos hospitais, os corpos embrulhados estendidos nas ruas de Guayaquil.

Tudo isso nós vimos, tudo isso está gravado para sempre nas nossas lembranças coletivas.

Neste momento, deveríamos estar vivendo única e exclusivamente o luto da pandemia, solidários na quarentena, mergulhados no que acontece de espantoso à nossa volta; deveríamos estar concentrando esforços para encontrar a melhor saída diante de tantas perdas, o jeito possível de remendar os nossos cotidianos partidos.

Mas não.

Passamos os dias angustiados com as notícias, interpretando entrevistas de generais e declarações de magistrados. Não há nenhum plano traçado para o país, nenhuma política que se vislumbre. Bolsonaro não governa, não governou nunca, não faz ideia do que é governar, apenas ocupa espaço cultivando rancores e pondo a nação em perigo. Dizem que ainda há juízes em Brasília, mas pelo visto não há adultos, não há ninguém que chame para si a responsabilidade de dar um basta no moleque obsceno que está no poder.

Bolsonaro é uma pessoa má, sem uma gota de empatia e sem o menor preparo para o cargo. Com esses defeitos, no entanto, o país já provou algumas vezes que consegue viver. O problema é que, acima de tudo, Bolsonaro é burro, e a burrice é fatal. Foi essa estupidez opaca que o impediu de compreender a dimensão do desastre da Covid-19, a despeito de tudo o que já estava acontecendo em outros países, e de perceber que a tragédia lhe oferecia uma chance única de mostrar liderança.

Ele não é responsável pela pandemia, mas é o responsável direto pela forma criminosa como o estado brasileiro vem se conduzindo. Num mundo digno, sairia do Planalto direto para Haia, para prestar contas ao Tribunal Internacional de Justiça pelo número descomunal de mortos que a sua burrice malsã nos legou.

Estamos todos exaustos, no limite da paciência.

Nos Estados Unidos a população explodiu, enfim, contra o racismo — mas a raiva das ruas vai além disso. A pandemia esticou uma corda que estava para se romper há tempos: a verdade é que ninguém consegue mais respirar num mundo tão desigual e perverso.

We can't breathe.

Lá como cá, a Covid-19 se tornou coadjuvante diante da real ameaça à democracia representada por um sistema moralmente falido e por um homem sem decência e sem limites.

O Brasil vai pelo mesmo caminho. Há algo francamente errado quando até torcidas organizadas de futebol se unem para ir às ruas no auge de uma pandemia.

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De Braulio Tavares, no Twitter: “Aqui no Brasil tem ocorrido certas coisas que se acontecessem num país iam ter graves consequências.”

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