domingo, maio 24, 2020

Um novo mundo - LYA LUFT

ZERO HORA - 24/05

Teremos uma humanidade transformada depois da pandemia?


Muito se fala, se pensa, se argumenta sobre isso: depois de passada ou aquietada essa pandemia do coronavírus, teremos um mundo novo, um mundo diferente, uma humanidade transformada, um pouco recauchutada, pior ou melhor?

Em geral sou otimista, o que me permitiu viver bastante bem uma vida já longa, cheia de ganhos e perdas, como a de todo mundo. Pessoalmente, não creio que a gente saia muito melhorada, exceto alguns cuidados de higiene, não atropelar uns aos outros... sei lá. Cuidar mais da saúde, do povo, cuidar mais dos miseráveis e pobres, que são os mais vulneráveis. Mas vejo tanta raiva, tanto horror ao estrangeiro e ao diferente, tanta acusação, tanta irritação que, sem ter um objeto fixo, se lança sobre qualquer um - que não creio muito numa grande melhora na hostilidade geral.

Ao contrário, talvez a gente seja ainda mais egoísta e bairrista, curtindo uma horrorosa xenofobia. Você é de outro edifício, outra rua? Se desinfete por favor, o álcool gel está na porta. Outro bairro? Outra cidade, Estado, região? Outro país? Caia fora, não venha me trazer doença. Talvez no futuro a gente nem lembre mais do corona, mas tenha medo de qualquer pessoa não próxima: seremos tribos isoladas, rangendo os dentes e brandindo paus para quem se aproximar vindo de fora. E não será nem por medo de que roube nossos territórios ou nossos tesouros, mas nossa saúde... ah, aquele vírus.

Estudar, comer, dançar (os furiosos que seremos ainda vão saber dançar?), ir ao cinema, sentar no sofá da sala - tudo com fita métrica na mão: dois metros de distância, ou pouco menos. Vidinha sem graça. Licença para abraçar, transar só para perpetuação da espécie. O resto, muito suspeito, e os vírus, e os vírus?

Seremos mais religiosos, ou transcendentais, ou caridosos, fraternos? Também não sei. Para muitos, a contenção de festas, passeios, despesas, rua, pode significar uma real interiorização também na alma, nos amores. Há quem me diga: descubro cada dia novas qualidades nos meus filhos, novo encanto na minha mulher, nova qualidade no meu marido. Outros, porém, convivem como animais selvagens numa gaiola estreita. Talvez não se ataquem concretamente, mas quanto desejo mau, quanto rancor secreto, quanta palavra maldosa contida na boca que se fecha amargurada.

Enfim, não sabemos, e de momento sou dos que duvidam: sim? Não? Vamos melhorar ou piorar, ou desaparecer do mapa? Possivelmente vamos continuar, cheios de conflito, medo, esperança, alguns milímetros mais humanos... Seja o que for que isso vá significar. Ou ainda achando que tudo aquilo foi histeria e exagero? Ou bem piorados, sussurra o diabinho que às vezes pousa no meu ombro. Vai ser apenas este nosso velho mundinho, mais torto, mais medroso, e um pouco mais raivoso, cheio de ódio e acusações.

Mas vamos ser otimistas: quem sabe será um mundo novo com gente mais amena, mais criativa, mais trabalhadora, mais artística, mais espiritualizada porque passou esse grande susto... Mais amiga e mais bonita porque mais feliz...

Ah, nossos bebês vão começar a nascer mascarados?¶Isso nem os deuses sabem.


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