quinta-feira, maio 07, 2020

Sobre problemas reais e quimeras - ZEINA LATIF

O Estado de S.Paulo - 07/05

A julgar pelas dificuldades de gestão da crise no atual governo, há razões para temer o uso ineficiente dos recursos públicos


O Brasil tem sido um exemplo de fracasso no combate a covid-19 no mundo. Seria simplismo apontar a falta de recursos como a razão para a escalada de óbitos e a saturação do sistema público de saúde. O principal problema é a falha de gestão.

Erramos na saúde e precisamos conter os erros na economia.

A elevação dos gastos e da dívida do governo é inevitável, sendo a decisão mais acertada no momento. No entanto, é crucial que o recurso público seja utilizado de forma justa e eficiente. Que a deterioração fiscal valha a pena, pois ela nos custará caro.

Isso sem contar que, com a economia tão fragilizada, será necessário esforço fiscal ainda maior no futuro para garantir a estabilidade da dívida pública como proporção do PIB. O cumprimento da regra do teto não será suficiente para isso, como aponta a A. C. Pastore e Associados.

A julgar pela baixa qualidade da ação estatal e pelas dificuldades de gestão da crise no atual governo, há razões para temer o uso ineficiente dos recursos públicos. Preocupam os excessos e a má alocação, fora as despesas de natureza permanente.

Por ora, a medida com maior impacto no orçamento é o auxílio emergencial de R$ 600 por 3 meses, que está orçado em R$ 123,7 bilhões – a previsão inicial era R$ 98 bilhões. A tendência é de mais aumento, pela grande demanda e pela possibilidade de extensão do programa. Será necessário calibrá-lo e preparar seu desmonte adiante.

Algumas despesas poderão se tornar permanentes, como as decorrentes da inevitável elevação da inadimplência de empresas e entes da federação que contam com garantia da União em seus empréstimos.

O ineditismo da crise estimula a busca por saídas fáceis.

Alguns analistas propõem que o Banco Central compre títulos públicos para financiar o governo, reduzindo a pressão sobre a dívida pública.

Parece uma defesa de volta ao passado que jogou o País na histórica inflação. Esse é um tema secundário, pois instituições como o FMI computam também os títulos públicos na carteira do BC para cômputo do estoque da dívida do governo.

Há ainda os que defendem levar a taxa de juros do BC a zero para estimular o crédito a famílias e empresas. Não será esse medida, porém, que irá ativar o mercado de crédito, principalmente com o elevado risco de inadimplência neste quadro recessivo e com elevada insegurança jurídica.

A medida teria efeitos colaterais na inflação e na capacidade do Tesouro de se financiar. Seria aprofundada a saída de recursos do País, de residentes e estrangeiros, o que pressionaria a cotação do dólar ainda mais. Também poderia alimentar a compra de ativos reais. O resultado seria inflação mais elevada, cedo ou tarde.

As propostas acima baseiam-se na crença de que não há mais risco inflacionário no Brasil. Porém, não é porque a inflação está baixa – ainda mais agora por conta do isolamento social que compromete o consumo - que podemos rasgar manuais.

Não faz muito tempo que lidamos com o risco de descontrole dos preços. A história nos ensina que recessões não impedem a inflação de subir. O desequilíbrio fiscal sistemático – e este risco aumentou – e voluntarismo na política monetária desancoram a inflação. Esse foi o quadro no governo Dilma.

Outros defendem vender as reservas internacionais para financiar os gastos extras do governo. Uma ilusão. As reservas não foram construídas utilizando sobras orçamentárias, mas sim com a emissão de dívida pública. Vendê-las para gastar implicaria reduzir o seguro que o País tem hoje, sem qualquer benefício em termos de redução de dívida. Deixaria o País mais vulnerável a crises.

Melhor deixar como está, com o BC administrando as reservas com vistas ao bom funcionamento do mercado cambial.

Saídas fáceis não existem, principalmente em um país que falha muito na ação estatal. A crise exige cuidado com o uso dos recursos públicos, e estamos falhando. Seria errar duplamente utilizar fórmulas equivocadas para financiar os gastos e trazer alívio à sociedade.

Consultora e doutora em economia pela USP

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