sábado, maio 23, 2020

O médico decide - EURÍPEDES ALCÂNTARA

O GLOBO - 23/05

Nenhum poder público pode impedir ou obrigar qualquer pessoa a tomar ou não tomar um remédio


A menos que seja deposto pelo processo constitucional do impeachment, Jair Bolsonaro precisa ser derrotado nas urnas em 2022 para desocupar os palácios no planalto. Até lá temos que nos virar com o que temos para enfrentar o grande desafio da Covid-19 e seu reino de morte. Isso inclui ter uma opinião pessoal racional sobre essa bendita ou maldita hidroxicloroquina.

Recuso-me a ficar sendo jogado de um lado para outro no terrível balanço dos chutes a favor e contra. Uma das heranças mais valiosas da Grécia Clássica para a civilização ocidental é a de que se apenas alguns cidadãos se elevam na sociedade à posição de poderem fazer políticas públicas, todos podem criticá-las. É um princípio básico da democracia exposto por Aristóteles (384-322 a.C). Essa é a razão essencial do direito de qualquer pessoa de ler, discordar e externar sua discordância sobre um decreto papal ou sobre um édito de qualquer outra autoridade tida como suprema por seus seguidores.

Recorro a esse princípio para contar aqui o que aprendi como jornalista sobre o uso da hidroxicloroquina ao cabo de conversas com médicos na linha da frente do combate ao novo coronavírus, de pesquisas em revistas científicas e de estudos baseados em evidências empíricas colhidas em hospitais.

O que me motivou foi o desejo individualista, mas não egoísta, de responder à seguinte questão: “Caso me infecte com o novo coronavírus, quero que a hidroxicloroquina esteja entre as drogas usadas no meu tratamento?”

Meus achados, listados aqui por ordem de relevância, segundo meu julgamento.

1) A decisão de tomar ou não hidroxicloroquina tem que ser tomada pelo paciente em discussão com seu médico. Nenhum poder público pode impedir ou obrigar qualquer pessoa a tomar ou não tomar um remédio. Vacina é outro caso. A vida em sociedade obriga todos a se vacinarem e vacinarem seus filhos, pois pessoas quando são vetores de doenças perdem o poder individual sobre certos direitos. Esse é o preço de conviver, que é sempre mais alto do que o de apenas viver.

2) Para que um paciente tome hidroxicloroquina, é necessário que a droga e a dosagem sejam prescritas por um médico. Mesmo que se deseje tomar hidroxicloroquina com o objetivo de prevenir o contágio, como anunciou estar fazendo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ainda assim esse passo só pode ser dado com controle médico.

3) Aqui, pode parecer que estamos entrando em terreno restrito da medicina, mas acredito que a lógica justifica o avanço. Pelo que as pesquisas demonstram o maior risco trazido pelo uso da hidroxicloroquina é a ocorrência de arritmias e outros distúrbios elétricos do coração, que podem matar. Por isso, se seu médico não tocar no assunto, o que é improvável, provoque-o e peça para se submeter a eletrocardiogramas — sim, muitas vezes não basta um — e para pedir exames de sangue que determinem se seus níveis de cálcio, magnésio e potássio estão normais.

4) Todas essas considerações só fazem sentido lógico em um artigo leigo para pessoas sadias ou nos primeiros dias da infecção —e apenas como conselhos para uma conversa com o médico. Disciplinadamente, ignorei todas as pesquisas sobre uso da hidroxicloroquina em fases adiantadas da Covid-19. A luta nas UTIs é para especialistas e pouco tem a ver com a reprodução do vírus, dizendo mais respeito ao controle da inflamação e dos trombos. Não tenho como formar uma opinião sobre isso.

5) Médicos de hospitais privados no Brasil e nos Estados Unidos têm prescrito hidroxicloroquina para pessoas jovens com sintomas iniciais de Covid-19, sem problemas cardíacos ou outras morbidades. Entendo que oficialmente se recusem a falar sobre isso com o objetivo de fugir do fogo do debate ideológico em torno do remédio. Mas é um fato comprovável.

Conclusão: caso me infecte com o novo coronavírus, quero que a decisão de tomar hidroxicloroquina seja tomada pelo médico encarregado do meu caso. Tenho 63 anos e já tive alguns episódios de taquicardia. Vou seguir a decisão do médico seja qual for o protocolo oficial do governo e independentemente do que o STF tenha a dizer sobre o assunto.

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