domingo, abril 19, 2020

Mandetta fritou Bolsonaro - ELIO GASPARI

O Globo/ Folha de SP - 19/04

Até a semana passada presidentes fritavam ministros. Desta vez, foi o contrário


Até a semana passada presidentes fritavam ministros. Desta vez, foi Luiz Henrique Mandetta quem fritou Jair Bolsonaro. Ele saiu maior e o capitão ficou menor. Tendo-se colocado numa posição teatral que ofendeu a ciência e a opinião pública, o presidente abandonou a piada da “gripezinha”. Boa notícia.

Bolsonaro fritou-se porque quis. Conduziu-se de maneira leviana e criou um antagonismo desnecessário com Mandetta. Em nenhum país a discussão da calibragem do isolamento, bem como a das virtudes da cloroquina levaram a fricções como as que Bolsonaro produziu. (Se Donald Trump pudesse, teria cortado a língua do doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas desde 1984, mas preferiu calibrar seus próprios delírios.)

Pode-se atribuir as falas da “gripezinha” a um estilo próprio de Bolsonaro, mas no domingo passado, quando ele disse que “parece que o vírus começa a ir embora”, lidou com fatos. Até aquele dia haviam morrido 1.233 pessoas, o contágio estava em expansão e como se esperava, poderia bater a marca dos 2 mil óbitos.

Bolsonaro vive numa realidade paralela. Isso não é de hoje. Em maio do ano passado ele disse o seguinte: “Brevemente, estará sendo apresentado aos senhores um projeto que, com todo o respeito ao Paulo Guedes, a previsão é de termos dinheiro em caixa maior do que a reforma previdenciária em dez anos”. Cadê? (Provavelmente, era a ideia de se legalizar o jogo.)

Em fevereiro, Bolsonaro anunciou que iria aos Estados Unidos, onde visitaria uma empresa de militares que lhe apresentariam uma “transmissão de energia elétrica sem meios físicos”: “Se for real, de acordo com a distância, que maravilha! Vamos resolver o problema de energia elétrica de Roraima passando por cima da floresta”. Não era real, era conversa de maluco, e Bolsonaro foi aos Estados Unidos, mas não visitou a tal empresa. De lá, sua comitiva trouxe apenas 25 infectados pelo coronavírus.

Até a semana passada Bolsonaro cultivou a ideia da “gripezinha”. Pode ser que tenha moderado sua fé médica, mas quando a pandemia estiver controlada ele terá no colo uma inédita recessão. Antes do vírus, ele administrava um pibinho com 12 milhões de desempregados. Depois dele, seu “Posto Ipiranga” está tonto, à frente de um superministério travado, encrencando com o Congresso.

Luiz Henrique Mandetta era uma solução e Bolsonaro resolveu fritá-lo. Fritou-se. Não se pode saber o que fará Nelson Teich, o novo ministro da Saúde. Ele sabe que Rivotril não resolve, assumiu distribuindo platitudes e revelou que saúde e economia são complementares. (Em outra ocasião, usou a ciência econômica para justificar o descarte dos velhos doentes.)

Teich defendeu um amplo programa de testes para identificar pessoas contaminadas ou imunes ao vírus. Amanhã o doutor poderá telefonar ao seu colega Paulo Guedes para saber o que aconteceu com a proposta de um empresário inglês que há uma semana lhe ofereceu 40 milhões de kits de testes por mês.


Mourão lembrou uma regra do polo

Quando o vice-presidente Hamilton Mourão disse que o ministro Luiz Henrique Mandetta “cruzou a linha da bola” com sua entrevista de domingo, antecipou que ele seria demitido. O general explicou: “Cruzar a linha da bola é uma falta grave no polo. Nenhum cavaleiro pode cruzar na frente da linha da bola”. De fato, o regulamento desse esporte diz que “se um jogador comete uma falta grave, o juiz poderá aplicar o cartão amarelo ou optar pela expulsão de forma direta, aplicando o cartão vermelho.”

Chega a ser pitoresco que no país do futebol, com suas regras elegantes, o general tenha recorrido a um exemplo desse excêntrico esporte. Mourão é um oficial da cavalaria e, no Rio, montava no Centro Hípico do Exército.Apesar de as tropas Aliadas terem surpreendido os alemães em 1944 porque desembarcaram na Normandia sem trazer cavalos (só veículos), no Brasil os regimentos de cavalaria só adotaram o transporte mecanizado nos anos 1960. “A tradição hipomóvel” foi mantida, contou Mourão ao repórter Fabio Victor, que o acompanhou numa competição com seu animal, “Ídolo do Rincão”. No Centro Hípico havia cinco banheiros-vestiários, o dos generais, o dos oficiais superiores, o dos sargentos e tenentes, o dos soldados e cabos, e o dos paisanos.

Em Brasília, Mourão cavalga “Rincão” no 1º Regimento de Cavalaria de Guarda. No século passado, lá montava o general-presidente João Baptista Figueiredo. Ele contava que não foi para a Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial porque não tinha o curso de Motomecanização.

Para paisanos, cavalo é coisa cara. Um quadrúpede qualquer pode custar R$ 2 mil mensais. Um cavalo de polo, por baixo, custa entre R$ 5 mil e R$ 10 mil.

O hipismo é uma tradição militar em quase todo o mundo. O general americano George Patton jogava polo, montava um magnífico cavalo branco, mas celebrizou-se com seus tanques, desembarcando na Sicília, até entrar na Alemanha, atravessando o Rio Reno, no qual urinou.


De uma serpente:

“Se o Getulio Vargas tivesse feito com a Força Expedicionária Brasileira o que Bolsonaro faz com os profissionais de saúde, as tropas alemãs teriam desfilado na Avenida Rio Branco.”


Os tablets de Moro

Como os relógios parados, que estão certos duas vezes por dia, a turma do ódio bolsonarista acertou quando reclamou por que o Ministério da Justiça compraria 600 tablets para que presos tivessem visitas virtuais de parentes.

A ideia seria aceitável se as pessoas isoladas em UTIs tivessem o mesmo amparo. Afinal, há brasileiros hospitalizados porque acreditaram que a Covid seria uma “gripezinha”, enquanto os presos ofenderam as leis.


Pernil Brasil

Seja qual for a crise, a turma do andar de cima aproveita o barulho para tirar mais uma fatia do grande pernil em que se transforma a Bolsa da Viúva.

Os produtores de etanol pediram ao governo que estude uma redução nos seus impostos por causa da retração do consumo do combustível.

Tudo bem, mas os produtores de etanol levaram uma pancada do mercado antes da chegada do vírus ao Brasil, quando o preço do barril do petróleo caiu.


Bolsonaro e Brás Cubas

Um observador da conduta de Bolsonaro sugere que ele dê uma olhada nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.

Brás havia sido deputado e criado um emplastro que lhe “garantiria a glória entre os homens”. Ele seguia os ensinamentos de Quincas Borba, um filósofo doido.

O “defunto-autor” de Machado resfriou-se e “no outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me matou.”

O delírio de Brás Cubas matou-o, mas não matou os outros.


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