terça-feira, abril 14, 2020

Ataques fragilizam Brasil e ajudam China a obter concessões - ENTREVISTA COM OLIVER STUENKEL

FOLHA DE SP - 14/04

Ataques fragilizam Brasil e ajudam China a obter concessões, avalia acadêmico
Para Oliver Stuenkel, resposta dura da embaixada chinesa explicita mudança na diplomacia do país



Falar mal da China tem um custo. Ataques como o do deputado federal Eduardo Bolsonaro e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, deixam o Brasil em posição frágil e ajudam o governo chinês a conseguir concessões do Brasil em negociações.

Esse é o alerta de Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV-SP e autor do livro “O Mundo Pós-Ocidental: Potências Emergentes e a Nova Ordem Global".

O acadêmico avalia que Pequim provavelmente não fará retaliações óbvias contra o Brasil, como deixar de exportar máscaras e ventiladores mecânicos.

Mas a reação diplomática às declarações de Eduardo e Weintraub revelam “que a China não foge mais do confronto, e ela sabe que muitos grupos [no Brasil] dependem da boa relação” com os chineses, como empresários e o agronegócio.

Para Stuenkel, que está escrevendo um livro sobre a competição tecnológica global entre os EUA e a China, a sinofobia não é exclusividade do governo Bolsonaro e veio para ficar.

“Muita gente acha que o bolsonarismo inventou a sinofobia, mas isso é global. Em países da África, falar mal da China faz parte da política doméstica, criticar a China pode te eleger", explica ele. "A China compreendeu que sempre estará no meio do debate, então ficar calada não é mais uma opção.”

Existe um esforço da China para fazer uma “diplomacia da máscara” em meio à pandemia de coronavírus, com doações de equipamentos médicos e assistência para ajudar o país a ganhar soft power?

Sim, a diplomacia da máscara é pensada primeiro para compensar a questão de a China ter sido o país de origem da pandemia, o que tem conotação negativa. Essa abordagem busca mudar a narrativa.

Mas o segundo fator é que, para ser visto como um líder global, não bastam poder econômico e bélico, é preciso mostrar capacidade de prover bens públicos globais, de resolver problemas. Se você olha a liderança americana após a Segunda Guerra Mundial, não foi só capacidade econômica ou militar que alçaram os EUA a essa posição, foi também a capacidade de resolver problemas, de mediar conflitos, de oferecer ajuda econômica e humanitária em momentos de crise e de coordenar líderes para pensarem conjuntamente sobre uma determinada questão.

A China percebe que tem os meios de liderar neste momento, e que os EUA não têm, existe um vácuo de poder imenso. E é óbvio que a China consegue negociar paralelamente outras questões. Se você recebe milhares de máscaras e ventiladores mecânicos da China, você não vai, poucos meses depois, avisar Pequim a exclusão da Huawei da construção da sua rede 5G.

O senhor disse que a resposta confusa dos EUA à pandemia indica que a liderança global de Washington chegou ao fim. Os EUA abriram mão de serem os líderes globais?

Era inevitável que isso ocorresse em algum momento. É preciso lembrar que a liderança americana, historicamente, é atípica, porque o mundo, do ponto de vista demográfico e econômico, sempre foi asiacêntrico. A ascensão chinesa em algum momento iria levar à volta desse mundo.

É muito evidente, no debate público americano, um certo cansaço, uma resistência crescente de liderar globalmente, principalmente com os custos que isso traz. Isso já vinha acontecendo, Donald Trump é um reflexo dessa tendência, e a pandemia acelera o processo. Nos últimos 70 anos, nenhum país pensava em um problema internacional sem levar em conta a posição dos EUA.

Seja falando da guerra entre Equador e Peru em 1995 ou do combate a terroristas na Somália, o representante do governo americano era sempre crucial. Isso certamente deixará de ser o caso e, se você olhar a coordenação global para lidar com crise migratória, barreiras protecionistas ou combate à pandemia, Washington é um ator importante, mas não é mais um ator que tem a legitimidade para liderar.

A China também tem fragilidades para assumir uma liderança global, se considerarmos respeito a direitos humanos, transparência, democracia partidária. Como seria uma liderança chinesa pós-pandemia?

Eles têm muita noção de suas limitações, e ninguém na China tem ilusões em relação à atratividade da sociedade chinesa. Seria um outro tipo de liderança. Pela provisão de bens públicos, o país pode ser considerado muito atraente pelo mundo em desenvolvimento.

Na última vez que fui a Xangai, vi uma delegação de políticos africanos no aeroporto, havia um guia mostrando como o país vem crescendo, a tecnologia. Isso é soft power chinês. Agora, em muitos aspectos, a China não vai conseguir liderar, teremos um vácuo permanente, o que é muito perigoso. Mesmo assim, a China está muito mais confiante.

Antes, a China seguia a estratégia de se manter discreta, “bide your time and hide your strengths” [espere a melhor oportunidade e esconda seus pontos fortes, suas armas]. Era uma postura de ficar fora do radar, mais passiva e defensiva. Os diplomatas só se manifestavam quando havia algo que Pequim considerava muito importante e pertinente para seus assuntos internos.

A China acumulou capacidade econômica, mas nunca tinha se posicionado de maneira mais visível como hoje. Mas ela faz isso porque sabe que a sinofobia também veio para ficar. E ela é inevitável, qualquer grande potência será responsabilizada ou atacada por políticos, porque as pessoas começam a se preocupar com essa ascensão —do mesmo jeito que aconteceu com os Estados Unidos.

O senhor já chamou a atenção para o fato de que a conta no Twitter da embaixada da China no Brasil tem, agora, mais seguidores do que a da embaixada dos Estados Unidos. Como os chineses estão conduzindo essa nova diplomacia pública mais assertiva no Brasil?

Existe uma nova orientação de Pequim, que é claramente visível quando se vê o comportamento de diplomatas chineses em outros países também, na Escandinávia, na Alemanha. O mais importante para a China agora é não deixar sem resposta influenciadores ou autoridades que buscam associar o vírus à China.

Aí tem uma resposta dura, e muito mais dura do que antes. Antigamente, quando alguém falava mal da China, às vezes eles respondiam "gostaria de ressaltar a importância da nossa amizade", mas nunca com ataques específicos. Agora, buscam aumentar o custo de falar mal da China, e estão conseguindo.

Os casos de Eduardo Bolsonaro e Abraham Weintraub revelam que a China não foge mais do confronto e que sabe que muitos grupos dependem da boa relação com a China. A embaixada recebeu cartas de governadores, de líderes empresariais e do agronegócio pedindo desculpas. Isso fragiliza muito o Brasil.

Aí, o [presidente Jair] Bolsonaro tem que ligar para o [líder chinês] Xi Jinping para pedir desculpas, possivelmente no meio de uma negociação sobre quantidade de compra de soja ou sobre a questão da Huawei, e é nesse momento que a China pode fazer avançar muito seus interesses. A China sabe aproveitar esses momentos, esses comentários negativos têm um custo.

Agora, muita gente acha que o bolsonarismo inventou a sinofobia, mas isso é global. Em países da África, por exemplo, falar mal da China faz parte da política doméstica, criticar a China pode te eleger. A China compreendeu essa nova dinâmica, de que ela sempre estará no meio do debate doméstico, então ficar calada não é mais uma opção.

O caso de Eduardo e Weintraub teve repercussão entre o eleitorado de Bolsonaro, Weintraub se consolidou no governo ao atacar a China. A China percebeu, com isso, que a sinofobia no Brasil veio para ficar.

Além de o embaixador chinês ter dados respostas duras aos ataques de Eduardo Bolsonaro e Weintraub, houve relatos de que a China iria reduzir a compra de soja brasileira –embora não esteja claro se isso faz parte do acordo com os EUA para chegar a uma trégua na guerra comercial entre os dois países. Pode haver retaliações mais práticas às declarações das autoridades brasileiras?

Acho difícil a China utilizar compras de soja para mandar sinais diplomáticos, é um assunto muito importante pra eles. A China não é autossuficiente do ponto de vista alimentar nem energético, essas questões são o coração do projeto diplomático chinês. Eles não são de brincar muito com esses fornecedores, e um exemplo é a Venezuela, com quem Pequim mantém laços. Não acho que vai passar muito pela via comercial.

O Brasil é meio que um assunto colateral em uma negociação muito mais importante com os Estados Unidos. Se a China decidir comprar mais ou menos soja, vai ser sempre em relação ao governo Trump. Mas o que pode acontecer, sim, são empresários chineses ficarem mais inseguros em relação a investimentos. Se [a hostilidade em relação à China] continuar, podemos ter uma situação em que leva mais tempo para uma empresa brasileira conseguir a emissão de um documento para investir na China. Ficará tudo mais difícil, as coisas não funcionarão tão bem como antes.

E a China simplesmente aproveita essas situações para avançar interesses em outras áreas na relação bilateral. Xi Jinping recebeu telefonema do Bolsonaro e três dias depois, o general Augusto Heleno disse que a Huawei poderá participar [da infraestrutura de 5G no Brasil]. É mais elegante do que dizer não compro mais a soja de vocês, porque vocês falaram mal da gente. Se uma parte do governo ataca, e a outra fica desesperada, essa ala fica muito mais disposta a fazer concessões em uma negociação, porque está com medo de a relação piorar. Essa divisão interna enfraquece muito a posição de negociação do Brasil com a China.

Além da Huawei, que outros temas prioritários o governo chinês pode tentar fazer avançar, aproveitando-se dessa fragilidade e divisão dentro do governo brasileiro?

A Huawei é o caso mais importante. É visto como o projeto central da diplomacia chinesa neste momento. Mas, no caso brasileiro, outra prioridade seria evitar que o Brasil copie todas as posturas críticas dos EUA à China, evitar que o presidente se posicione de maneira negativa em relação à China.

Impedir que o Brasil adote essas posturas em outras áreas –por exemplo, questionando por que Taiwan não faz parte da OMS?

A China não tem ilusões de conseguir apoio brasileiro em órgãos multilaterais, mas querem basicamente que o Brasil não se alinhe sempre aos EUA em embates que serão cada vez mais frequentes.

O fortalecimento do nacionalismo neste momento e o contexto de lei da selva, em que países pagam mais para “roubar” encomendas de equipamentos médicos destinadas a outras nações, vão continuar após a pandemia?

Em momentos de crise, as pessoas se dão conta de que o Estado é a estrutura principal. Outras coisas podem ser relevantes em outros momentos, mas, na hora agá, é o Estado que protege. As indústrias vão dizer: não podemos comprar de fora, precisa ser produzido aqui dentro, pode haver outra pandemia. Os EUA, por exemplo, compravam uma enorme porcentagem de seus medicamentos da China. Isso certamente acabou.

Esse ressurgimento do nacionalismo é uma resposta a essa sensação de instabilidade. Essa tendência veio para ficar, e é preciso reconhecer que, neste momento, o Estado tem um papel fundamental. Na América Latina, vai surgir o debate sobre controle de capitais, substituição de importações, nacionalização de alguns setores. Mesmo na Europa, a União Europeia está discutindo comprar participações em setores-chave para impedir que a China assuma o controle em empresas estratégicas. Cada vez mais são os aspectos geopolíticos que guiam as decisões, e não os aspectos econômicos —e obviamente o Estado é o ator central.

Alguns governos, como o de Viktor Orbán, na Hungria, de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, e de Binyamin Netanyahu, em Israel, estão se aproveitando da pandemia para acumular poderes. Isso mudará após o fim da crise?

Essas crises aceleram tendências pré-existentes. Tudo isso já estava acontecendo, não foi uma surpresa a escalada autoritária de Orbán, ele vem trabalhando nisso há bastante tempo. Netanyahu e Duterte também.

Isso dificilmente será revertido, porque, a partir de agora, sempre se pode defender posturas autoritárias em nome da saúde pública, dizer que a doença pode voltar, a segunda onda está chegando. Em países com instituições frágeis é um risco, e veremos outros países onde a democracia deve passar por um processo de erosão, como a Polônia, por exemplo. E, até em democracias robustas, a necessidade de obtenção de dados dos cidadãos aumentou —para monitorar a saúde pública. Numa democracia funcional e com liderança com convicções democráticas, isso não é um risco. Mas pode haver um futuro governo que tenha acesso a essa informação e a use para perseguir, para tolher a liberdade de expressão.

Como o Brasil deveria se posicionar em relação a China e aos EUA?

O Brasil deveria ter noção de que pedir ajuda à China neste momento, em vez de atacá-la, não significa estar de acordo com a política interna chinesa. O Brasil é um dos poucos governos do mundo que, nesta situação de pandemia, ataca de maneira muito direta o governo chinês.

A longo prazo, equilibrar-se entre as duas potências será crucial. Será um desafio, e a questão da Huawei dificulta essa postura mais neutra. Deixar de se envolver sem necessidade em conflitos entre esses dois é algo fundamental e difícil, pois há uma politização desses temas, uma nova guerra fria. Mas é bom lembrar que foi Ernesto Geisel quem estabeleceu relações diplomáticas com a China em 1974. O então chanceler Azeredo da Silveira o convenceu de que era uma atitude pragmática, e não tinha nada a ver com sua preferência política. Do mesmo jeito foi com Richard Nixon, que também estabeleceu relações com Pequim, e era de direita, ninguém poderia acusá-lo de ter simpatia pelos comunistas.

Bolsonaro podia ter um momento Nixon?

Bom, o [vice Hamilton] Mourão até tentou... Mas está tudo tão louco que já disseram que o Mourão é comunista.

O senhor brincou que o Brasil é um dos quatro integrantes da aliança dos avestruzes –ao lado de Turcomenistão, Nicarágua e Belarus, únicos países que negam a gravidade da pandemia do coronavírus. Qual é o reflexo disso sobre nosso soft power?

Isso automaticamente inviabiliza qualquer postura de liderança do Brasil no maior desafio que o mundo enfrenta neste momento. Ninguém olha para o Brasil e diz "nossa, o governo brasileiro está lidando bem com a crise".

Em diplomacia, os desafios são oportunidades de você mostrar sua capacidade, e o Brasil exclui a possibilidade de essa crise servir para demonstrar a competência brasileira. É uma oportunidade perdida que gera a percepção de que o Brasil vive numa realidade paralela.


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