quinta-feira, abril 30, 2020

O decano encara cabo, soldado e capitão - MARIA CRISTINA FERNANDES

Valor Econômico - 30/04

Celso de Mello não deixará outra alternativa ao procurador senão denunciar o presidente



O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para diretor-geral da PF pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mostra que, se o presidente Jair Bolsonaro pretendia ter pontes com a Corte, com suas recentes indicações para a Advocacia- Geral da União e o Ministério da Justiça, a pinguela despencou antes de estabelecida.

Procurador-geral da Fazenda Nacional, Levi Mello do Amaral foi secretário-executivo do MJ na gestão Alexandre de Moraes, hoje relator de dois inquéritos que cercam o mandato presidencial, o das “fake news” e da manifestação do dia do Exército.

Além de segundo de Moraes no MJ, o novo AGU também é próximo de Gilmar Mendes. Compõe com novo ministro da Justiça, André Mendonça, ex-colega do ministro Dias Toffoli na AGU e seu candidato para a próxima vaga no Supremo, uma dupla que prometia azeitar a interlocução com a Corte.

A pinguela começou a ser dinamitada em sua própria base. A deputada Carla Zambelli, da tropa de choque bolsonarista, acusou Moraes, que foi secretário de Segurança em São Paulo, de vínculos com o PCC. Apresentou como única evidência o fato de o ministro “estar envolvido na causa de investigar pessoas que fazem o bem pelo Brasil”.

Na primeira vez em que o STF interferiu numa nomeação do Executivo, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a Casa Civil de Dilma Rousseff, com base num grampo ilegal do ministro Sergio Moro, deu início à queda da ex-presidente. Não foi a última.

Durante o governo Michel Temer, a ministra Carmen Lúcia suspenderia a nomeação da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) e o ministro Celso de Mello manteria a de Moreira Franco. Nenhuma delas abalou o mandato presidencial.

Por controverso, Moraes achou por bem fiar sua liminar na abertura de investigação sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, autorizada por Celso de Mello com base nas denúncias de Moro. Deixa claro que é a autoridade do decano que vai avançar os limites da Corte em relação aos atos do presidente da República.

Assim tem sido antes mesmo da posse de Bolsonaro. No dia seguinte à circulação de vídeo em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro disse que bastaria cabo e soldado para fechar o Supremo, o então candidato pelo PSL à Presidência enviou uma carta a Mello. Nela, dizia que as manifestações “emocionais” da campanha se deviam à “angústia e às pressões sofridas”.

Mello não era presidente da Corte e se insurgira contra o vídeo da mesma maneira que outros colegas, mas Bolsonaro justificava a escolha do destinatário pela “conduta impecável” e pela “ponderação”.

O constitucionalista Diego Arguelhes (Insper) diz que a atuação do ministro em defesa das minorias parlamentares pode ter despertado empatia no então candidato. Mas ele também tinha ao seu lado Gustavo Bebianno, que trabalhara no escritório de Sérgio Bermudes, e estava em condições de instruí-lo sobre o destinatário que melhor representaria a reserva moral da Corte.

O remetente logo descobriria que não tinha a menor chance de dobrá-lo. O decano hoje simboliza um Supremo mais unido do que se viu nas décadas marcadas por mensalão e Lava-Jato, pelo restabelecimento da ordem constitucional. Dias depois, um coronel bolsonarista aposentado ofendeu a ministra Rosa Weber e o ponderado ministro chamou-o de “imundo, sórdido e repugnante”.

Com a posse do presidente, o tom subiria ainda mais. Na reedição da medida provisória transferindo a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, que sucedeu a decisão parlamentar mantendo-a na Funai, o ministro não pediu vênia: “É preciso repelir qualquer ensaio de controle hegemônico do aparelho de Estado por um dos poderes da República”.

Na escalada do confronto, passou a se dirigir diretamente ao chefe da nação. Na nota em que reagiu a um vídeo compartilhado por Bolsonaro comparando os ministros da Corte a hienas, identificou “atrevimento presidencial [que] parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar”.

Àquela altura, nenhum outro ministro ousara tanto. O outrora desbocado Gilmar Mendes se tornara frequentador da corte bolsonarista na companhia de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Celso de Mello, que nunca foi de frequentar palácios, continuou vigilante em relação à escalada autoritária.

Em março, quando Bolsonaro engajou-se na divulgação de passeata golpista, Mello pulou duas casas: “É uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”. O ministro submeteu-se a uma cirurgia e, ao voltar da convalescença, já em plenário virtual, resolveu transpor sua indignação para os autos.

Pediu que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se manifeste sobre denúncia por crime de responsabilidade de dois advogados, determinou que a União devolvesse ao Maranhão ventiladores adquiridos pelo Estado, abriu inquérito para apurar crime de racismo do ministro da Educação, Abraham Weintraub, contra chineses e, finalmente, o mais importante, deles, deu início à investigação sobre as denúncias de Moro contra o presidente. Tudo isso em uma semana.

Conservador nos ritos e na interpretação da norma constitucional e pouco afeito a abordagens emocionais, Celso de Mello parece determinado a deixar sua marca sobre o futuro do estado de direito nos seis meses que lhe restam de mandato. Um parlamentar viu na ênfase dada por Mello à responsabilidade do presidente da República, a minuta de um pedido de impeachment.

O PGR, alerta a constitucionalista Eloísa Machado (FGV), é o condutor da investigação, podendo, inclusive, procrastiná-la. O titubeante pedido de abertura de inquérito é sinal disso. Na opinião de um experiente procurador, porém, Mello pode se valer de medidas cautelares, como aquela incluída no inquérito para que Aras se pronuncie sobre a apreensão do celular da deputada Carla Zambelli, com o intuito de destravar a investigação.

Um ex-ministro do Supremo, que convive com Celso de Mello há décadas, antevê decisões que não deixarão alternativa ao procurador-geral da República, senão denunciar o presidente. Daí pra frente, é outra história. Até lá, a expectativa é de Celso de Mello, na comissão de frente, seja capaz de manter recuados cabos, soldados e, sobretudo, o capitão.


"E daí?" veio para substituir cinismo do "Eu não sabia" - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 30/04
Assim como a expressão "Eu não sabia" passou à história como uma espécie de frase-lema do Brasil de Lula, a interjeição "E daí?" tem potencial para descer ao verbete da enciclopédia como símbolo da era Bolsonaro. O cinismo é o mesmo. A diferença é que Bolsonaro, em vez de fingir que não sabia, deixa claro que não quer nem saber.

A crise do coronavírus confirma as mais sombrias expectativas. A pilha de cadáveres se aproxima da marca macabra de 6 mil almas. O ministro Nelson Teich, da Saúde, admitiu em videoconferência com senadores estar "navegando às cegas." E o presidente aperta a tecla do "E daí?"

Bolsonaro evoluiu da negação para a avacalhação. Pregava o fim do isolamento. Agora, insinua que a estratégia de trancar as ruas em casa é inútil. "A imprensa tem que perguntar para o (João) Doria por que mais gente está perdendo a vida em São Paulo. Tomou todas as medidas restritivas que ele achava que devia tomar. (...) Vocês não vão colocar no meu colo essa conta."

É como se Bolsonaro desejasse obter uma espécie de "E daí?" preventivo, capaz de isentá-lo de todas as culpas pelo que ainda está por vir. Capitão das aglomerações, pregoeiro da "volta à normalidade", ele pede aos brasileiros que façam como ele, fingindo-se de bobos pelo bem do presidente.

Numa semana em que virão à luz novas estatísticas sobre desemprego, Bolsonaro convida todo mundo a viver num país alternativo —um Brasil presidido por alguém que finge desconhecer o óbvio: não fosse o risco assumido pelos governadores de promover algum tipo de isolamento, a pilha de corpos seria ainda maior.

O ministro Teich, um oncologista "totalmente alinhado" com Bolsonaro, foi espremido pelos senadores a dizer o que pensa sobre o dilema shakespeariano que o atormenta desde que assumiu a pasta da Saúde —ficar ou não ficar em casa, eis a questão.

O doutor soou de forma clara como a gema: "...Você simplesmente perguntar se fica em casa o se não fica em casa é simples demais. É uma resposta simplista para um problema que é extremamente heterogêneo. (...) Não posso responder superficialmente perguntas complexas. Ficar em casa é genérico demais. Ficar em casa vai ser a melhor solução para algumas pessoas, não para todas. Vamos trabalhar isso de forma mais específica."

O estilo escorregadio irritou a plateia. Recordou-se a Teich que a adesão das pessoas à tática do isolamento vem caindo. Não é hora, portanto, para dubiedades. Imprensado, Teich viu-se compelido a reconhecer que nada mudou na orientação do Ministério da Saúde desde a saída do antecessor Henrique Mandetta.

Na contramão de Bolsonaro, que acusa os governadores de exagerar no isolamento, o doutor atribuiu aos Estados a volta gradativa das pessoas às ruas. "Essa orientação (de manter distanciamento social) vem sendo mantida (pela pasta da Saúde). E onde a gente está vendo uma alteração em relação a isso, é uma decisão dos governadores. Isso não é uma decisão nossa. Nossa orientação desde o começo é o distanciamento."

Na era do "E daí?", o presidente ignora recomendações do seu próprio governo. Se um ministro questiona o contrassenso, Bolsonaro troca de subordinado, não de discurso. "Não vou discutir aqui o comportamento (do presidente)", declarou aos senadores o sucessor de Henrique Mandetta. "Mas eu posso dizer que ele está preocupado com as pessoas e com a sociedade."

Um presidente que olha para os cadáveres fazendo cálculos eleitorais —"Vocês não vão colocar no meu colo essa conta"— está preocupado com sua candidatura à reeleição, não com as pessoas. Um médico que permite que seu prestígio técnico seja utilizado para envernizar uma pantomima eleitoreira corre o risco de ser infectado pelo vírus da desmoralização.

Depois, não adianta dizer "E dai?" ou "eu não sabia". Quem aceita ornamentar ministério confundindo certo presidente com presidente certo autoriza a plateia a a se perguntar se o país está diante de um ministro incapaz de todo ou capaz de tudo.

Decisão não é de um ministro, mas sim de um Poder - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 30/04

Em relação a Bolsonaro, a disposição no Supremo é de 11 x 0 quando se trata de temas relacionados a democracia e equilíbrio entre Poderes


A suspensão da posse do delegado Alexandre Ramagem na Polícia Federal, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, surpreendeu o mundo político, mas não é um fato isolado. Faz parte de um pacote de resistência do Supremo Tribunal Federal a um governo que acha que pode tudo, mesmo ultrapassando a linha do razoável. Em relação ao presidente Jair Bolsonaro, a disposição é de 11 x 0 quando se trata de temas relacionados a democracia e equilíbrio entre Poderes.

A nomeação de ministros e do próprio diretor-geral da PF é atribuição exclusiva de presidentes da República, mas Alexandre de Moraes - que foi secretário de Segurança Pública em São Paulo e conhece bem as polícias - recorreu a um princípio constitucional que vem se popularizando: o da impessoalidade e da moralidade pública.

Como delegado de carreira, não há reparo a Ramagem nem dentro nem fora da PF, muito menos no STF. O problema está nas circunstâncias: todas as credenciais dele se resumem à grande proximidade com Bolsonaro e seus filhos desde a campanha eleitoral de 2018, quando chefiou o esquema de segurança do então candidato do PSL. Ou seja: a suspeita é que Ramagem tenha sido escolhido não para trabalhar pela PF, mas para a família Bolsonaro.

Para reforçar a percepção, a nomeação veio no rastro da acusação do então ministro Sérgio Moro de que o presidente queria acesso direto ao diretor-geral, a superintendentes e a relatórios de inteligência da PF. Para, em tese, como muitos temem, poder manipular as informações a favor de aliados e filhos e contra adversários.

Nada contra o próprio Ramagem, mas, como Ernesto Araujo era “embaixador júnior” ao assumir o Ministério das Relações Exteriores sem jamais ter ocupado uma embaixada, ele foi nomeado para a direção geral da PF sem ter sido superintendente do órgão em nenhum Estado. A comparação de seu currículo com o do antecessor Mauricio Valeixo, demitido por Bolsonaro, é constrangedora.

O fundamental, porém, é que a decisão de Alexandre de Moraes tem respaldo dos seus pares de toga, atentos desde a inesquecível fase do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) - “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo” - e perplexos com o apoio explícito do já presidente Jair Bolsonaro a atos que pedem intervenção militar, com fechamento do Congresso e do STF.

Há na alta corte do País dois movimentos na mesma direção: a autopreservação e a garantia da democracia.

As sucessivas demonstrações do Judiciário têm a adesão da cúpula do Legislativo. A diferença é que o Supremo tem torpedos, mas o botão da bomba atômica - autorizar ou não um pedido de impeachment - está com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A ele, sobra uma nova alternativa: jogar parado. E, de preferência, calado. Afinal, batalhas têm sido inevitáveis, mas a ninguém interessa uma guerra. Resta esperar, agora, o contra-ataque de Bolsonaro.

Reação à crise - ZEINA LATIF

ESTADÃO - 30/04

Seria equívoco buscar atalhos e ceder a pressões que atrapalhem o crescimento


Os novos capítulos da política demandam capacidade de reação de Jair Bolsonaro. E o melhor antídoto para evitar uma crise de governabilidade é a economia arrumada.

Foi assim com Temer. A queda da inflação e a retomada, ainda que lenta, da economia foram suficientes para manter as ruas calmas, a despeito da baixa aprovação do governo.

É verdade que o ex-presidente precisou garantir apoio do Congresso nas votações das denúncias contra ele, com consequências na gestão orçamentária. No entanto, seu governo não perdeu de vista a necessidade de manter a política econômica nos trilhos e de dar continuidade à agenda de reformas, ainda que inviabilizada a da Previdência. Temer soube ouvir.

O mau desempenho da economia é algo esperado por conta da epidemia, o que contribui para conter a crítica ao presidente. No entanto, uma crise prolongada, causada por políticas públicas equivocadas, poderá testar a paciência da sociedade. Não basta colocar a culpa no isolamento social dos governadores, até porque parece clara a saturação do sistema de saúde.

As crises econômica e política tiram Bolsonaro de sua zona de conforto. O presidente deu sinal de que sabe que não pode descuidar da economia. Foi simbólico reafirmar a confiança em Paulo Guedes, cujo cargo parecia ameaçado.

Gestos não bastam, no entanto. Sua convicção sobre a importância de disciplina fiscal e medidas estruturantes – em contraponto a estímulos que beneficiam a poucos, mas prejudicam o crescimento sustentado de longo prazo – será testada, tendo em vista as pressões crescentes por socorro governamental.

Bolsonaro precisa arbitrar as divergências internas do governo, posto que cresce a defesa de políticas de estímulo econômico que lembram as do governo Dilma. As discussões sobre a agenda pós-pandemia iniciada pelo plano Pró-Brasil precisam estar conectadas à dura realidade fiscal e às novas prioridades que emergem com a crise: há diferentes cenários de demanda por cada tipo de infraestrutura; será preciso preparar o País para um mundo mais digital; e maior esforço será necessário para atrair o investimento privado.

O presidente precisa se comprometer com a combalida agenda de reformas. É nítida sua baixa disposição para enfrentar temas espinhosos.

Guedes também precisa arrumar a casa, com um plano de ação estruturado para enfrentar a crise e entregar oportunamente as reformas mais urgentes. Oportunidades foram desperdiçadas em 2019, em meio a promessas em demasia.

Do lado fiscal, aumentou a urgência de medidas que reduzam a rigidez orçamentária – principalmente os gastos com a folha –, pois a elevação adicional da dívida pública recomenda o reforço da perspectiva de ajuste fiscal futuro.

Será necessário redefinir prioridades da agenda de crescimento. Se, por um lado, será difícil avançar na reforma tributária e nas privatizações, diante das dificuldades do setor produtivo e de tantas incertezas, por outro há espaço para remover obstáculos ao crescimento sustentado.

Guedes precisa aumentar a interlocução com os demais ministérios e com o Congresso. Um exemplo de dificuldade é o lento avanço do projeto de lei de licitações.

A mudança no Ministério da Justiça poderá ser uma oportunidade para se discutir a redução da insegurança jurídica, que inibe o investimento. Como ensina Carlos Ari Sundfeld, há excessos da ação estatal assentados no direito público brasileiro, o que requer o diálogo com o sistema judiciário e a revisão de normas legais e exigências nas licitações e a redução da ingerência de órgãos de controle.

Na área tributária, Bernard Appy aponta a necessidade de maior qualidade das normas tributárias, uniformização e consolidação da jurisprudência entre os tribunais e maior transparência por parte dos órgãos fiscalizadores na interpretação e aplicação das leis.

Há muito a ser feito para reduzir disfuncionalidades da ação estatal. Seria um equívoco buscar atalhos e ceder a pressões que atrapalham o crescimento sustentado.

Ainda há tempo para corrigir rumos.

CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP

Guedes reassume trono da economia, mas pode não governar - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 30/04

Ministro está agora ameaçado

A campanha para que Paulo Guedes reassumisse o controle da política econômica parece ter chegado ao fim e ao cúmulo nesta quarta-feira. O ministro-general Braga Netto (Casa Civil) fez juras de amizade, Jair Bolsonaro disse repetidas vezes que o ministro da Economia está prestigiado no cargo, os ministros que supostamente sabotavam o reformismo desapareceram ou foram a cerimônias em que precisavam ouvir que Guedes é quem manda.

Na verdade, era uma campanha contra um espantalho agigantado pela ideia histericamente caricata de que estava em curso um “resgate do Estado”, um avanço do “desenvolvimentismo da ala militar”, um novo PAC ou um plano “Dilma 3”. Mas campanha houve para colocar Guedes de volta no trono ou para garantir a continuidade do programa de reformas, que andava mal das pernas antes da epidemia e vai ficar sem uma delas depois do colapso econômico e fiscal provocado pela doença.

Decerto havia política nessa disputa, uma tentativa de ocupar espaço, dado o exílio temporário do ministro e o barata-voa dos gastos extras em tempos de epidemia, de pegar carona na crise. Havia política e haverá mais: uma tentativa de dar um nome-fantasia qualquer, “Pró-Brasil Verde Amarelo”, aos gastos necessários para conquistar e apaziguar aliados no Congresso em tempos de risco de impeachment.

O vago, vazio e nebuloso programa anunciado na semana passada não tinha nem fumaça de virada desenvolvimentista, como se dizia nas reações liberalóides estereotipadas, até por se tratar de muito pouco dinheiro. Embora fumaça, havia algum fogo ali. Mais importante, pode haver mais chamas.

Jair Bolsonaro terá de desfazer promessas de acabar com a velha política e com “o sistema”, gastando prestígio com suas bases eleitorais por voltar a ter mensaleiros como confrades. Terá de gastar dinheiro a fim de fazer amigos no centrão. Não deve parar por aí.

Mais adiante, Bolsonaro vai ter de lidar com o problema de manter o teto de gastos tendo de fazer agrados ao Congresso e outras freguesias, a fim de afastar o risco de impeachment.

A julgar pela trajetória provável das contas públicas, vai ser um problema muito difícil de resolver. Guedes sabe do risco de que o teto pode desabar se não forem tomadas medidas como, pelo menos, uma contenção radical dos gastos com servidores federais, pelo que já tem se batido.

Deve ser insuficiente. O crescimento da despesa obrigatória e o aumento mínimo da despesa permitida pelo teto (a inflação vai ser baixa) vão asfixiar o resto da despesa ainda “livre”. O investimento público “em obras” será ainda mais achatado, se sobrar algum, justamente aquela despesa que alguns ministros quereriam aumentar em uma dezena de bilhões por ano —troco, na atual situação.

Como conciliar a manutenção do teto de gastos com as necessidades de sobrevivência operacional do governo (gastos essenciais de funcionamento da máquina), com alguma despesa inevitável em infraestrutura, com a satisfação de necessidades dos novos aliados e com socorros econômicos que ainda serão necessários em 2021?

Talvez com reformas profundas da despesa pública (talhos enormes), o que é muito improvável. Não há apoio político e o Congresso está dedicado a outros assuntos urgentes, haverá eleição municipal e a baderna política causada por Bolsonaro é imensa, para citar os motivos mais nobres.

Com o risco de o teto cair e de as reformas escorrerem pelo ralo, Guedes pode até ficar no trono. Mas governa?​

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Os homens do presidente - ASCÂNIO SELEME

O GLOBO - 30/04

Suas ligações com criminosos profissionais sempre foram conhecidas


Um gabinete do ódio foi instalado no governo para dar vazão ao maior de todos os sentimentos de um presidente movido pelo desejo permanente de retaliação. Ele se disse perseguido e sempre odiou todos aqueles que identificava como inimigos ou que imaginava um dia poderem se transformar em inimigos. Por isso, destilou sua ira contra políticos de oposição, aliados que não mostravam firmeza, ex-aliados, juízes, desembargadores, ministros da Suprema Corte, jornalistas ou qualquer outro tipo de gente que não pensasse como ele ou que se interpusesse entre ele e seu projeto político.

O gabinete usou todos os instrumentos que conseguiu dispor para construir constrangimentos aos inimigos do chefe. Espionou, divulgou notícias falsas, impediu acesso a documentos oficiais, criou barreiras entre o presidente e a imprensa, proibiu veículos de informação de entrar na sede do governo, mentiu para o Congresso, privilegiou amigos. Suas ligações com criminosos profissionais, milicianos que trabalhavam por dinheiro, sempre foram conhecidas. Recursos do fundo partidário eram usados para pagar por serviços prestados por esses indivíduos, de resto tão inescrupulosos quanto os membros do gabinete do ódio e o próprio presidente da República.

Acossado pelo Congresso que ameaçava instalar um processo de impeachment, o presidente demitiu sumariamente o chefe das investigações sobre crimes cometidos por pessoas do seu círculo mais próximo, inclusive os assessores que dentro do governo davam substância à ira presidencial. A demissão foi o último passo de sua corrida vertiginosa em direção ao abismo. Sabe-se que ele também cometeu crimes de responsabilidade e que não conseguiria escapar do julgamento do Congresso. O presidente deveria renunciar, ou então seria impedido pela vontade da maioria absoluta de deputados e senadores.

Embora se pareça muito com a história em curso de Jair Bolsonaro, esta conta a saga do presidente Richard Nixon no escândalo da invasão da sede do Partido Democrata no edifício Watergate, em 1972. Nixon, que foi um trambiqueiro mas não era bobo, resolveu renunciar ao cargo dois anos depois para não sofrer o impeachment. Foram condenadas e presas 49 pessoas, inclusive membros do gabinete do ódio, como H. R. Haldeman, secretário-geral da Casa Branca, John Mitchell, ministro da Justiça, e os assessores John Ehrlichman e John Dean III. Os cinco bandidos que arrombaram o escritório do partido adversário também foram presos. Dois eram ex-agentes da CIA e do FBI e os outros três eram anticastristas de Miami.

Os assessores do presidente foram presos por instrumentalizar o bando que invadiu o escritório no Watergate, por mentir sobre o episódio, e por sonegar informações. O dinheiro do fundo partidário para a eleição usado na operação agravou o caso. Nixon, que tentou obstruir a Justiça e também mentiu, só não foi condenado e preso porque, antes de se afastar, negociou com o vice-presidente Gerald Ford um perdão pelos crimes que cometeu. Ford cumpriu a promessa, e o trambiqueiro nunca foi chamado para prestar contas.

Em Watergate, Nixon mandou demitir Archibald Cox, promotor especial designado para investigar o escândalo. No Brasil, Bolsonaro mandou demitir Maurício Valeixo da PF. Nixon só obteve sucesso quando o terceiro da hierarquia da Procuradoria-Geral aceitou encaminhar a encomenda, depois que se demitiram o titular do cargo e seu substituto imediato. No Brasil, o presidente teve que fazer ele mesmo o serviço sujo, uma vez que o ministro Sergio Moro se negou a afastar Valeixo e se demitiu.

Bolsonaro também tem um gabinete do ódio no Palácio, da mesma forma ataca parlamentares, juízes e jornalistas. Mantém laços sólidos com milicianos, chegando a empregar alguns e a homenagear outros. Na campanha, recursos do fundo eleitoral foram usados para financiar a máquina de propaganda de Bolsonaro baseada na distribuição de fake news. São muitas as semelhanças, mas, apesar delas, é claro que Nixon e Bolsonaro não são iguais em tudo. Como Bolsonaro, Nixon também desprezava a democracia, mas pelo menos fingia o contrário.

Bolsonaro é o culpado - CARLOS ALBERTO SARDENBERG

O GLOBO - 30/04

Presidente trata de atacar os que considera seus inimigos, mesmo que isso prejudique o combate à epidemia


É claro que governadores e prefeitos têm enorme responsabilidade no combate ao novo coronavírus, conforme foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Cabe a eles, por exemplo, a decisão crucial de abrir ou fechar o comércio, colocar mais ou menos ônibus nas ruas, voltar ou não às aulas.

Mas isso não os torna “culpados” pelas mortes, como atacou o presidente Bolsonaro. Culpa é diferente de responsabilidade. E esta, no caso de governadores e prefeitos, tem uma limitação importante: dinheiro.

A crise apanhou a maioria dos estados com déficits em suas contas e dívidas elevadas. A paralisação de boa parte das atividades leva a uma queda de receita, de modo que a tempestade é perfeita: menos dinheiro diante da necessidade de gastar mais.

Aqui entra uma primeira responsabilidade enorme do governo federal. Só este pode, digamos, inventar dinheiro, tomando dívida e mesmo imprimindo reais. Junto com o Congresso, cabe ao governo federal decidir quanto dinheiro vai gerar, como será distribuído e para quais finalidades.

É nesta tarefa crucial que o presidente Bolsonaro, se fosse um dirigente minimamente adequado, deveria estar empenhado. Como, aliás, fez seu ídolo Trump. Agindo em combinação com o Congresso, inclusive com a Câmara controlada pela oposição, o presidente aprovou pacotes de trilhões de dólares para socorrer pessoas, empresas e administrações públicas estaduais.

Sim, o governo brasileiro tem feito parte desse serviço. Mas aos trancos e barrancos — basta observar as filas nas agências da caixa, as queixas de empresas que não têm acesso aos recursos prometidos, as filas no pedido de auxílio-desemprego, os equipamentos que não chegam.

Neste momento, em que o mundo disputa desde máscaras até respiradores, o Itamaraty deveria estar negociando mundo afora para importar esse tipo de material. Em vez disso, o chanceler Ernesto Araújo decide combater o isolamento social com a bárbara comparação com os campos de concentração de Hitler. Como pode a ignorância e a insensibilidade chegarem a nível tão desprezível?

Não é de espantar, entretanto. Se o chefe dele sai com um “E daí?” quanto lhe perguntam sobre as 5 mil mortes...

Eis o ponto. Enquanto governadores e prefeitos tentam cumprir suas responsabilidades — uns vão bem, outros, mal —, o presidente se dedica a sabotar os esforços dos outros. Como não consegue nem um argumento para desclassificar o isolamento — nem o novo ministro da Saúde, perdidaço, topa isso —, Bolsonaro trata de atacar os que considera seus inimigos, mesmo que isso prejudique o combate à epidemia.

Há aí uma contradição que bloqueia o processo. O isolamento faz sentido se as pessoas puderem ficar em casa. Muitas podem porque têm dinheiro, conseguem manter seus empregos, trabalham de casa. Outras não podem — e estas precisam de socorro para ficar em casa. Esse socorro é a renda mínima (os 600 reais), o aumento do seguro-desemprego, o adiamento de obrigações financeiras.

O mesmo vale para empresas. Algumas aguentam paradas. Outras precisam de socorro, na forma de financiamentos ou mesmo aportes de capital.

Este socorro, para pessoas e empresas, cabe essencialmente ao governo federal. Membros deste governo sabem disso e tentam. Mas como a coisa pode fluir se o presidente não aceita o conjunto dessa política, nem se empenha para implementá-la? E, ao contrário, se empenha em desmoralizar essas ações.

Além disso, o governo federal tem o SUS, que deveria coordenar todo o programa sanitário. Coisa que o ex-ministro Mandetta estava tentando.

Ignorância e autoritarismo formam uma combinação explosiva.

Vamos falar francamente: o presidente e seus filhos já cometeram erros demais. Só não cometeram mais porque foram contidos ou pelo STF ou pelo Congresso. Mas as barbaridades que já praticaram são suficientes para que sejam apanhados nos diversos inquéritos em andamento no Supremo e, logo, logo, no Congresso.

O presidente é, pois, irresponsável. Como não se trata “apenas” de um mau administrador, torna-se também culpado. Sim, as mortes estão no “colo” dele.

Despreparo - CELSO MING

ESTADÃO - 30/04

Passada esta pandemia, risco é de que governos voltem a ignorar ameaças biológicas


Esse vírus mostra coisas graves. Mostra, por exemplo, como a construção da sociedade ocidental – e não só a brasileira – é frágil e despreparada.

Para proteção de todos, foram criadas instituições e grandes pactos de defesa mútua, fronteiras rigorosamente demarcadas e fiscalizadas, acordos comerciais para presidir o fluxo de mercadorias e serviços, regras para defesa da propriedade e dos capitais, leis sobre mobilidade de pessoas e veículos. Tudo isso parece abalado por um inimigo invisível.

O mundo se preparou durante mais de 60 anos para enfrentar ataques nucleares, criou abrigos, sistemas antimísseis e avançadas redes de radares e de satélites de rastreamento de informações. Mas nada disso serviu para conter a covid-19.

Desde há muito tempo vêm sendo discutidos os riscos de ataques de vírus e bactérias. Os sistemas de inteligência vêm perscrutando laboratórios ao redor do Planeta que estivessem criando armas biológicas, que a qualquer momento pudessem ser disponibilizadas e manipuladas por Estados ou por organizações extremistas, capazes de causar destruições milhares de vezes maiores do que a produzida por ataques de aviões sequestrados, como no 11 de Setembro. Foram estudadas defesas contra armas químicas, como de gás sarin e de antrax. E, em 2018, os Estados Unidos publicaram um programa estratégico de biodefesa.

No entanto, na hora de proteger os humanos do coronavírus, faltou não só uma estratégia racional de contra-ataque, mas faltaram até mesmo produtos essenciais, destituídos de sofisticação tecnológica, como máscaras de tecido comum, álcool em gel e kits de testes.

Grande número de governos – e não só o brasileiro – reagiu à pandemia de maneira tão caótica que, em vez de defender, vem desorganizando a economia, dizimando empregos e renda. Deve aumentar a pobreza, desestruturar as relações de poder e pode produzir consequências imprevisíveis.

A ordem mundial construída em meados do século 20, que vinha sofrendo ataques por parte de grupos populistas e totalitários, agora corre ainda mais riscos, como se a pandemia apressasse o desmonte. Até mesmo antes do alastramento do vírus, o presidente do país líder do mundo começou o processo de desvalorização das instituições criadas depois da 2.ª Grande Guerra para estabelecer a ordem do mundo a partir de então. Trump ataca a Otan, a ONU, a OMC, a OMS, como se estivesse no lado oposto, no lado do antigo Pacto de Varsóvia ou no dos inimigos da democracia. As instituições da União Europeia vêm recebendo de Trump o tratamento de força inimiga ou de quase isso. O multilateralismo que construiu as alianças do Ocidente desde os anos 40 vai sendo desarticulado por iniciativas unilaterais.


Enfermaria do hospital provisório da Escola Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, durante a gripe espanhola Foto: ACERVO: BIB. GUITA E JOSÉ MINDLIN - 2/11/1918

Alguns preferem dizer que nada será como antes, que o mundo tratará de se reorganizar sob novos paradigmas. Pode ser. Mas será que essa covid-19 é um ser tão poderoso, capaz de desmantelar o que grandes guerras não conseguiram ao longo de décadas?

A vacina, que parece próxima, se encarregará de salvar vidas. Mas o que será das instituições e da remontagem do sistema de convivência entre nações depois que se comprovou tanto despreparo, tanta desorganização e tanta incompetência dos líderes mundiais?

A tragédia maior é a de que a humanidade não aprende. O mundo já passou por pandemias até mais letais do que esta parece ser. A peste negra matou cerca de 100 milhões na Europa entre 1347 e 1742. A sífilis matou 50% das pessoas infectadas. A gripe espanhola matou 40 milhões entre 1918 e 1919. E houve o estrago causado pela febre amarela, pelo tifo, pela malária, pelo cholera morbus, pela gripe aviária, pela sars, pelo ebola. São episódios que vêm, vão embora e voltam, com suas mutações, sempre a indicar que o ser humano está mergulhado num caldo de bactérias, vírus e micróbios sempre em desenvolvimento.

Ainda existe quem acredite que essas pandemias são castigo de Deus ou obra do diabo, como certos religiosos pregaram recentemente. Essa abordagem, comum no passado, é hoje residual. Mas, apesar do avanço da ciência, a humanidade continua pouco empenhada em se preparar para ataques desse tipo. E não se trata apenas de doenças infecciosas. Os sismólogos não se cansam de advertir que grandes metrópoles, como Tóquio e São Francisco, deverão sofrer terremotos arrasadores, os big ones. Só não sabem quando. No entanto, as pessoas continuam vivendo normalmente, como se seu futuro estivesse garantido.

O risco é o de que, uma vez, passada esta pandemia, os governos voltem a ignorar ameaças desse tipo.


Dentro do alçapão - WILLIAM WAACK

ESTADÃO - 30/04

A crise tripla que Bolsonaro enfrenta é inédita e não permite dizer o que vai acontecer


Com a vivência de 28 anos de política em Brasília, provavelmente Jair Bolsonaro sabe ou pelo menos intui que está, agora, nas mãos de profissionais. Os do Centrão e os do STF. Na linguagem militar, trata-se de um formidável movimento de pinça, do qual o presidente tem poucos recursos para escapar.

O alçapão armou, Bolsonaro está dentro dele e ali ficará debatendo-se em limites muito estreitos, salvo o imponderável (o número de mortos da crise de saúde pública e um impeachment são hoje os imponderáveis). Mantida a situação atual de precário equilíbrio, suas opções são reduzidas.

Ele criou a armadilha para si mesmo agindo por medo e com muita pressa. Bolsonaro é um personagem político autêntico e de extraordinária transparência. Faz questão de reiterar publicamente que se sente sempre o alvo de uma grande conspiração, integrada por membros da velha política, imprensa, juízes e ministros do STF, comunistas, ministros com alta popularidade, governadores – a lista é longa.

Por algum tempo o “cerco” urdido por conspiradores era apenas uma distorcida percepção da realidade. Hoje, de fato, o presidente está cercado. Pelos profissionais do Centrão, que dispõem de tempo e de circunstâncias inesperadamente favoráveis para extrair do presidente o preço máximo em troca de apoio político.

E pelos profissionais do Judiciário, sobre os quais Bolsonaro tem pouco ou nenhum tipo de controle. A judicialização da política na era Bolsonaro assumiu contornos muito semelhantes aos da era Dilma, quando uma liminar proferida por um integrante do STF a impediu de nomear Lula como ministro. Desvio de finalidade – o mesmo tipo de figura jurídica da liminar que bloqueou a nomeação por Bolsonaro de um novo diretor-geral da Polícia Federal.

Os perigos para Bolsonaro estão hoje no STF – uma instituição contra a qual seus apoiadores foram mobilizados com a ferocidade e irresponsabilidade típicas de redes sociais nas quais o presidente acredita residir seu maior capital político. A figura do presidente já seria lateralmente atingida por investigações em curso nas quais se pretende apurar quem e como organizou e financiou campanhas contra o Judiciário, mas, agora, está no centro do inquérito que o procurador-geral da República requereu “sem apontar A ou B”. O STF apontou para o B de Bolsonaro.

Salvo imponderáveis, o Centrão não tem o apetite para tocar adiante um processo de impeachment. Os parlamentares não enxergam nenhuma vantagem prática em derrubar o presidente neste momento, e se consideram bem situados do ponto de vista político em assegurar “governabilidade” que, nestes dias de enorme crise de saúde pública, significa sobretudo abrir os cofres públicos para ver como é que fica depois. O movimento para moer Bolsonaro está vindo do STF.

A preciosa intuição que Bolsonaro exibiu na campanha eleitoral faltou-lhe agora. Sem que nenhum de seus opositores precisasse se esforçar, ele mesmo acabou solapando os pilares da sua imagem e está perdendo rapidamente o apoio em camadas de eleitores que não são tão numerosos, mas têm peso na propagação e formação de opinião. E, em vez de evitar comoções, Bolsonaro se esmera em criá-las constantemente. Seu jeito “autêntico” de ser (como ao dizer “E daí? Que quer que eu faça?” diante de um recorde de mortos pelo coronavírus) é visto com repulsa em círculos cada vez mais amplos.

Como tudo na atualidade, a situação que Bolsonaro enfrenta também é inédita. Dilma tinha de lidar com uma dupla crise, econômica e política. A situação de Bolsonaro é de uma tripla crise: a terceira é a pandemia. Mas não há parâmetros históricos para dizer o que vai acontecer.

Bolsonaro busca brinquedos antigos para distrair suas bases - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 30/04

Com fracasso no coronavírus, presidente revive segurança e cartilha ideológica

Jair Bolsonaro deve ter se cansado de cometer erros na crise do coronavírus. Depois de prever só 800 mortes no país, de insistir no poder milagroso de um remédio e de atazanar governantes que tomaram medidas de isolamento, o presidente decidiu fingir que não tem mais nada a ver com isso.

A curva de mortes está em disparada, mas Bolsonaro afirma que o problema é de governadores e prefeitos. Já o ministro da Saúde admitiu que está "navegando às cegas" e que ninguém sabe quando vai ser o pico da contaminação, embora seu chefe tenha dito há pouco mais de duas semanas que estava "começando a ir embora a questão da pandemia".

Bolsonaro comprovou sua incompetência para lidar com a crise e, agora, resolveu abrir um baú de brinquedos antigos para distrair suas bases.

Como se não existisse uma doença devastadora, ele voltou a acenar a redutos conservadores com uma pauta voltada à segurança pública e sua conhecida cartilha ideológica.

Na semana passada, depois de acertar a demissão do diretor da Polícia Federal, Bolsonaro pegou carona numa manifestação de grupos evangélicos e publicou um vídeo em que crianças diziam ser contra o aborto. O tuíte teve mais de 85 mil interações entre seus seguidores.

O presidente ainda tentou reviver a ameaça fantasma da esquerda na educação. Em dois eventos sem relação com a área, Bolsonaro elogiou o ministro Abraham Weintraub e reclamou da "doutrinação de décadas" nas escolas brasileiras.

A ideia é mudar de assunto e reforçar seu vínculo com grupos que poderiam ficar perturbados com a escalada de mortes ou a saída de Sergio Moro do governo. Para isso, vale buscar também seu adormecido discurso linha-dura na segurança.

Nesta quarta (29), o novo ministro da Justiça exagerou na propaganda e disse que o presidente é "um profeta no combate à criminalidade". O deputado Bolsonaro jamais aprovou um projeto de lei sobre o tema. No Planalto, não desenvolveu nenhuma política pública relevante na área.

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Caminho pedregoso - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 30/04

Há políticos que chegaram ao poder pelo voto, como na Venezuela, e conseguiram controlar as instituições

Jair Bolsonaro está cumprindo uma espécie de via-Crucis a que é obrigado todo presidente que enfrenta um processo de impeachment sem que haja, no entanto, condições práticas de transformá-lo em realidade, embora todas as premissas estejam dadas.

A Covid-19, que o presidente tanto desdenhou, impede que o Congresso se reúna presencialmente para discutir o tema, e também faz com que as ruas vazias não reverberem o sentimento majoritário.

Bolsonaro deveria ser a favor do distanciamento social, que faz com que manifestações populares pedindo sua saída se transformem em panelaços quase diários. Simbólicos, porém ineficazes.

Se não houvesse esses obstáculos impostos por uma trágica pandemia, as ruas explodiriam diante do “E daí?” dito pelo presidente sobre as mais de cinco mil mortes de brasileiros, todos sem direito a velório, muitos enterrados em covas rasas.

A busca de apoio no Congresso, que todos os que sofreram impeachment fizeram e apenas Michel Temer concretizou, é uma dessas etapas, e nessa Bolsonaro tem desvantagem, pois sai de quase zero para conseguir uma maioria defensiva que evite o impeachment. Vai sair muito mais caro, e não há certeza de final feliz.

A cada bolsonarice que diz ou faz, abala a confiança que por acaso ainda exista em setores da classe média que o apoiou em 2018. Agora mesmo está fazendo mais uma de suas bravatas para agradar seu núcleo duríssimo de apoiadores quando diz que vai insistir no nome do delegado Alexandre Ramagem para chefiar a Polícia Federal.

De nada adiantaria recorrer, porque o recurso cairia para o mesmo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que suspendeu a nomeação por desvio de finalidade. Além disso, depois que a nomeação foi tornada sem efeito pelo próprio presidente, que devolveu Ramagem para a chefia da Abin, não haveria do que recorrer.

Se não encontrar um substituto ideal para Ramagem, Bolsonaro tem duas opções: ou deixa como interino o delegado Disney Rossetti, que Moro gostaria de ver substituindo Mauricio Valeixo, ou tenta encontrar alguém que aceite o cargo, o que está sendo difícil.

Há na corporação o temor de que qualquer delegado que seja nomeado terá pela frente um presidente ávido por informações sobre inquéritos em andamento, especialmente os que se referem a membros de sua família. Ou forçar uma nova investigação sobre o atentado que sofreu, como se uma grande conspiração estivesse protegendo os supostos mandantes do crime.

Provavelmente somente depois que o inquérito aberto a pedido do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, sobre interferência de Bolsonaro na Polícia Federal denunciada pelo ex-ministro Sérgio Moro terminar é que poderá novamente nomear Ramagem para o cargo, caso não exista nenhuma denúncia contra o presidente da República.

O presidente Bolsonaro manteve a nomeação de Ramagem para a Polícia Federal, mesmo sabendo que havia o risco de ela ser barrada, porque quer um delegado no cargo de diretor-geral da Polícia Federal que passe informações para ele. Mas a PF não é órgão da presidência da República, precisa ter autonomia para as investigações.

Mas enquanto as instituições estiverem funcionando e puderem barrá-lo, a democracia está preservada, apesar de todo o tumulto que ele provoca. É preciso ficar atento, porque há casos de políticos autoritários que chegaram ao poder pelo voto, como na Venezuela, e conseguiram controlar as instituições.

Boa parte do aumento das mortes pela Covid-19 deve-se ao comportamento do presidente, que vai para a rua desmoralizar o distanciamento social, entra em disputa com o ministério da Saúde e quer impor a adoção de remédios dos quais não se sabe o efeito. Bolsonaro vive num mundo próprio, paranóico, isolado da realidade.

O que obriga seus ministros a fazerem papeis ridículos como o atual da Saúde, Nelson Teich, que só faz repetir, como disse ontem, que “estamos navegando às cegas”. Não é culpa dele, é a verdade que se repete em todos os países. O problema é que Teich fica impossibilitado de terminar sua frase, dizendo aos brasileiros: “Porque não sabemos nada, a única coisa a fazer é ficar em casa”.

Presidente desrespeita famílias dos mais de 5 mil mortos pela Covid-19 - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 30/04

Bolsonaro também tem responsabilidade no combate à pandemia do novo coronavírus


Na terça-feira, quando o Brasil registrou 474 mortes em 24 horas e ultrapassou a China em número de baixas pela Covid-19 (5.017 contra 4.643), o presidente Jair Bolsonaro não só se eximiu de responsabilidades como ainda desdenhou das mortes. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

Ontem, Bolsonaro culpou governadores e prefeitos. Afirmou que, por decisão do STF, estados e prefeituras têm autonomia para determinar medidas de contenção. “Questão de mortes, a gente lamenta as mortes profundamente. Sabia que ia acontecer. Agora, quem tomou todas as medidas restritivas foram governadores e prefeitos”.

Além do inconcebível desrespeito com as famílias de mais de 5 mil brasileiros que perderam suas vidas pelo novo coronavírus — muitos deles sem sequer receber atendimento —, Bolsonaro cometeu equívocos em seus argumentos. Evidentemente, governadores e prefeitos têm responsabilidade. Mas ela é compartilhada com a União.

O que fez Bolsonaro desde que os primeiros casos de Covid-19 foram registrados no país, levando governadores e prefeitos a decretarem o isolamento? Criticou a quarentena, a que já se referiu várias vezes como exagero. Está preocupado com o impacto na economia, que pode afetar seu projeto de reeleição. Sua ação mais visível foi a imprudente troca de Luiz Henrique Mandetta por Nelson Teich, na Saúde, em plena fase de aceleração da epidemia.

O presidente se equivoca também ao culpar as medidas de restrição pelas mortes. O isolamento não é uma invenção brasileira. Foi adotado em praticamente todos os países, em alguns de forma bem mais rigorosa. Não há outra maneira de conter a doença. Se não está dando melhores resultados é devido ao discurso dúbio num país em que governadores e prefeitos falam uma coisa e o presidente diz outra, incentivando a quebra das quarentenas.

Numa fase crítica da epidemia, o ministro Nelson Teich passa a ideia de imobilidade. Precisa apresentar logo o seu plano e resultados, mesmo que prévios, inclusive de medidas em curso, como o rastreamento da doença em todo o país. A sensação de inércia que as entrevistas do Ministério — acertadamente mantidas — têm passado não ajuda a população, e nem o ministro.

Enquanto Bolsonaro prega incessantemente o fim do isolamento, em São Paulo a prefeitura faz bloqueios educativos no trânsito. Caminha-se, de forma correta, para um lockdown. Nada muito diferente de outras metrópoles.

Ainda que Bolsonaro os rejeite, os números contundentes da Covid-19 no Brasil serão inexoravelmente colocados também em sua conta. Não por governadores, prefeitos ou pela imprensa, como diz. Mas pela História.

A ética triunfa - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 30/04

O ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da PF. Nem é preciso ser jurisconsulto para desconfiar das intenções de Bolsonaro


O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação do delegado Alexandre Ramagem para a direção da Polícia Federal (PF), atendendo a pedido do PDT. Em seu despacho, o ministro escreveu que, “em tese, apresenta-se viável a ocorrência de desvio de finalidade do ato presidencial” de nomear Alexandre Ramagem, “em inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.

Nem é preciso ser jurisconsulto para desconfiar das intenções do presidente Bolsonaro ao nomear Alexandre Ramagem para chefiar a Polícia Federal. Segundo o próprio presidente da República, seu objetivo era ter alguém de sua confiança na PF para obter informações – sabe-se lá quais e com que objetivos.

Ora, mesmo que o presidente Bolsonaro não tivesse alguns de seus filhos sob suspeita em casos investigados pela PF, a nomeação de um diretor da PF com a intenção explícita de ter acesso a informações já configuraria, em si, um atentado às leis e aos dispositivos constitucionais que obrigam a polícia a conduzir suas diligências de forma sigilosa – seja para impedir que os investigados destruam provas, seja para resguardar a imagem dos investigados. Ademais, o fato de que se trata da mais alta autoridade da República a requisitar informações não obriga nenhum servidor público a fornecê-las, se essa ordem for claramente ilegal, como seria o caso.

Todas essas limitações estão expressas de forma clara nos diversos códigos legais do País, e espanta que o presidente da República, que jurou respeitar a Constituição ao tomar posse, não veja nada demais em violá-las. Quando questionado a respeito da nomeação de um amigo pessoal para dirigir a PF, reagiu, com ares de indignação: “E daí?”.

Mais do que isso: Bolsonaro deixou claro, também, que quer fazer da PF sua polícia particular. Depois de anunciar a nomeação do amigo Alexandre Ramagem, o presidente exigiu que a PF reabrisse a investigação sobre a facada que sofreu durante a campanha eleitoral de 2018. O caso está encerrado há tempos – a PF concluiu, depois de exaustiva apuração, que o autor da facada, Adélio Bispo, agiu sozinho, e a Justiça Federal o considerou inimputável, em razão de graves transtornos mentais. Bolsonaro simplesmente não se conforma com esse resultado e acredita que há um mandante do crime: “Eu não tenho provas, tenho sentimento. O que for possível a Polícia Federal fazer, dentro da legalidade, para apurar quem pagou Adélio para me matar, vai fazer”.

Se o presidente está insatisfeito com o resultado das investigações, deveria, como qualquer cidadão nas mesmas circunstâncias, recorrer à Justiça para demandar novas diligências. O que não pode, como já está claro, é obrigar a PF – que, como lembrou o ministro Alexandre de Moraes, não é “órgão de inteligência da Presidência da República”, mas sim “polícia judiciária da União” – a encontrar o tal “mandante”, que só existe nas delirantes teorias bolsonaristas segundo as quais o presidente foi vítima de um complô “comunista”.

Mas a menção insistente de Bolsonaro a Adélio Bispo serve somente para animar a claque bolsonarista e desviar a atenção do fato, incontornável, de que a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da PF com o objetivo de franquear informações do órgão ao presidente fere os princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público – e já é objeto de investigação, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, para apurar possíveis crimes de advocacia administrativa e prevaricação, entre outros.

Depois dos reveses no Supremo, o presidente Bolsonaro decidiu afinal anular a nomeação de Alexandre Ramagem. No entanto, a julgar por seu comportamento desde a posse, há pouco mais de um ano, não será surpresa se Bolsonaro voltar à carga, testando a disposição do Congresso e do Judiciário de fazer valer os limites constitucionais ao poder presidencial. É preciso deixar claro para o presidente que seus desejos não adquirem automaticamente o status de lei, como é nas ditaduras; em uma democracia, o presidente deve demonstrar, de forma cristalina, que suas escolhas são voltadas para a preservação do bem comum, e não movidas por inconfessáveis interesses privados.

quarta-feira, abril 29, 2020

A revolução do corpo - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 29/04

Viva Isadora Duncan e Anitta! Viva todo ser que diz que o corpo pode expressar, protestar e ser


No dia 29 de abril, segundo determinação da Unesco, celebra-se o Dia Internacional da Dança. Foi escolhida a data por ser aniversário do professor, coreógrafo e bailarino francês Jean-Georges Noverre (1727-1810). Noverre representou a passagem do ballet formal de corte e de teatro para o estudo da gestualidade das ruas para uma “dança em ação”. Assim, o ato de dançar seria mais natural e expressivo. Era admirado pela elite londrina, por Maria Antonieta e por Frederico da Prússia. Foi amigo de Voltaire e de Mozart. Era uma celebridade em toda a Europa.

Leio com admiração biografias como a de Noverre. Vim ao mundo sem habilidades de desenho e de dança. Na minha família, o mal é coletivo e corre, entre nós, o adágio que “se um Karnal souber desenhar ou dançar, é bastardo”. Mais de uma vez, disse que só dançava para acasalamento, ou seja, na fase da conquista e, depois, revelava minha inaptidão absoluta para o bailado. Das musas que presidem ao ato artístico, Terpsícore (da dança) foi a que se recusou a assistir ao meu nascimento. Admiro o corpo falando pela dança, admiro a técnica e a expressividade daquelas mulheres e homens que exibem um ato árduo de trabalho prévio parecer leve. No aniversário de 80 anos da minha mãe, fiz o último e debalde esforço: treinei uma valsa. Felizmente, não foi filmada a pantomima. Os mais generosos diziam que eu parecia aqueles bonecos de posto de gasolina com vento que os ergue e, imediatamente, os derruba. Existe certa honra em reconhecer limites. Dançar e desenhar são limites pétreos meus.

Um dia, usei a imagem de um pé de bailarina em uma palestra. Estava machucado, com entorses e hematomas. Era o fruto de horas pesadas de treino e de muita dor, choro e sacrifício. Quando vemos a graciosa bailarina voando, delicada e ágil, poucos imaginam que a estrada até ali seja tão complicada. A dança é de uma exigência enorme. É verdade, sei como músico amador, que o estudo prolongado de piano causa dor nas costas, cansaço visual e até exaustão das mãos. A dança demanda a dor nas costas, nas mãos, nos pés, no pescoço e na alma. O ato de se entregar a um público é sublime e... exaustivo.

Falei de dança clássica, porém, admiro todas as formas de movimento de corpo. Os passos desconstruídos da street dance, o gingado do samba, os maracatus ritmados, a sensualidade do tango e a coreografia da valsa (não dançada por mim, claro). Nas cortes antigas, saber dançar um minueto e outras formas coreografadas era tão importante quanto a boa conversação e o uso dos talheres. Dançar, para homens e mulheres, era parte da educação formal que se exigia para o convívio.

Admirei imagens ou vídeos de Márcia Haydée e de Mikhail Baryshnikov. Assisti ao vivo à força cigana da dança de Joaquin Cortés. Vi ballets tradicionais (O Lago dos Cisnes, O Quebra-Nozes, Dom Quixote, etc.) no Alla Scala de Milão, em Nova York e em São Paulo. Minha incapacidade pessoal aumenta minha admiração pela sincronia e pelo domínio de cada fibra do corpo com elegância e arte.

Vou ultrapassar algumas fronteiras e chocar os mais pudicos. Admiro, também, as dançarinas de funk em trios elétricos. Sim, sei que muitos colegas intelectuais dirão que é uma coisificação do corpo feminino. Discordo. Acho um empoderamento expressivo uma mulher como Anitta dirigir um cortejo com centenas de milhares de pessoas mesmerizando com um gesto de se abaixar e balançar o quadril. Podem existir excessos em bailes funk? Tenho certeza que sim, como podem existir em sofisticados apartamentos que ouvem jazz melódico e se locupletam de drogas. Há um traço de demofobia no julgamento do funk. O corpo livre vira um manifesto político e o corpo é a área por excelência para o exercício da repressão. Isso vai da barriga gestante de Leila Diniz à minissaia de Mary Quant; da liberdade da primeira-dama Nair de Tefé dançando o Corta-Jaca no palácio presidencial ao ritmo empreendedor de Larissa, mais conhecida como Anitta. O corpo livre incomoda as mentes acorrentadas. O corpo livre da mulher é ainda mais escandaloso. Faz milênios que se ouve o mesmo brado: “As mulheres de hoje em dia estão cada vez mais peladas e mais fáceis. No meu tempo, elas sabiam ter decoro”. Essa é uma frase encontrável no Baixo Império Romano, no Renascimento, ao longo do século passado e no carnaval de 2020.

Dançar pode ser libertador. Escrevo e imagino se me inscreverei na desconfiança da bastardia da família. Aprenderei a dançar tão próximo à data em que poderei utilizar fila especial de melhor idade nos aeroportos? Talvez sim. No meu caso, trata-se de questão pessoal de relevância discutível. No caso da sociedade em geral, enquanto houver um corpo voando no Lago dos Cisnes ou agitando um trio elétrico, haverá esperança de que ainda exista vida, disciplina da liberdade e projetos vitoriosos. Viva Isadora Duncan! Viva Anitta! Viva todo ser que diz que o corpo pode expressar, protestar e ser sem depender do azedume alheio. Esperança sempre! A esperança faz dançar.

Da nossa conta - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 29/04

Podemos pagar pelos que não abrem mão do lazer e continuam a sair às ruas


Minha empregada está em casa no subúrbio, com marido, filhos e netos. Amigos meus fecharam seus escritórios, ateliês ou pequenos negócios, e também estão em casa. Atores e músicos que conheço estão igualmente parados, e em severa quarentena. Muitas dessas pessoas vivem em apartamentos modestos, que lhes bastavam quando podiam sair à vontade. Confinadas, as paredes começam a pesar-lhes. Elas gostariam de dar um pulo lá fora. Mas, conscientes que são, sabem que, enquanto as mortes pelo vírus não chegarem ao pico e só então declinarem, não é hora de abrir a guarda.

Em contrapartida, de minha janela, vejo jovens e velhos caminhando no calçadão da praia, pedalando ou correndo na ciclovia e até indo mergulhar. Sei pelo noticiário que em São Paulo também é assim. Uma coisa são os prestadores de certos serviços, que não podem parar de trabalhar. Outra são os que decidiram não abrir mão do lazer --nem querem privar disso seus garotos, a julgar pelos festivos playgrounds que também vejo daqui.

Não conheço a cor política dessas pessoas, mas quem continua a flanar, contra as recomendações dos agentes da saúde, está repetindo, até sem saber, o gesto de Jair Bolsonaro, para quem ninguém cerceará o seu direito de ir e vir. Por mim, Bolsonaro pode ir até para o diabo que o carregue, nem é da minha conta a saúde de quem sai em carreatas ou com ele partilha celulares, abraços e perdigotos.

Mas é da conta de todos nós, que estamos em casa, a saúde dos que continuam nas ruas como se tivessem passaportes de imunidade. O passeio de um deles, hoje, pode render uma internação só daqui a 15 dias. O problema é o que, por uma cadeia perversa, esses 15 dias custarão a quem ficou em casa.

Um amigo paulista, pioneiro da quarentena, está muito mal. Pode ter sido infectado pelo netinho assintomático. Não haverá tragédia maior para uma família.


O pessoal contra o impessoal - ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 29/04

A divergência entre Bolsonaro e Moro é uma reedição de nossas dificuldades de aceitar o poder discreto e autônomo dos regimes republicanos

Somos editados por nossas culturas e sociedades. Por nossas épocas, moralidade e – eis um óbvio ululante sempre olvidado – por nossos idiomas que inventam a nossa realidade. Ter consciência do mundo, como ensina Shakespeare, é saber que se entra num drama que existia antes de nós, que nele atuamos e que um dia vamos deixá-lo.

Para variar, eis mais uma crise: o presidente usou mais uma vez contra si mesmo o seu bacamarte. Eu já sugeri nesta coluna como o suicídio político faz parte do inconsciente brasileiro. Sua data oficial é 1808, quando a corte portuguesa fugiu de Napoleão e aqui consolidou um estilo de vida aristocrático e escravista, mas a isso se seguiram outras “renúncias” e impedimentos.

A divergência entre Bolsonaro e Moro é uma reedição de nossas dificuldades de aceitar o poder discreto e autônomo dos regimes republicanos. Nas monarquias absolutistas, como a de d. João VI e a do modelar Luiz XIV, o Rei Sol, estado e sociedade estão integrados. O governo é uma família: ser rei não é um cargo disputado, é um papel predestinado. Na realeza, o legal e o circunstancial se fundiam no “sangue azul” e num indiscutível “direito divino”. Reis e nobres eram donos do reino. Não se governava por consentimento eleitoral, mas através de um elo com o sagrado.

O republicanismo mudou tudo. Como revela Tocqueville na sua etnografia da América, a democracia criou uma sociedade movediça e consciente de si mesma. As motivações pessoais entram em óbvia colisão com as demandas dos cargos públicos. Nos Estados Unidos, cargos públicos não podem ser acumulados e são vistos como serviços – quem os aceita deve abrir mão de sua vida privada.

Nas repúblicas, cada papel público tem sua área de decisão protegida de interferências. Foi essa igualdade livre de pessoalíssimos que tanto assombrou o lado nobre de Tocqueville quanto o meu lado relacional e familístico de brasileiro branco, machista e de classe média quando vivi a experiência americana. Chocou-me saber que era bom ficar sozinho e que o ideal era ter sua própria opinião e não ser um papagaio de sabedorias alheias. Assustou-me, igualmente, a vivência rotineira do limite e, sobretudo, do concordar em discordar. Algo inédito, mas que – espero – esteja nascendo no Brasil.

Não sei quantas vezes um presidente interferiu com superintendentes da PF. Noto, porém, que foi esse diálogo espúrio entre Estado e empresas que inventou a Operação Lava Jato, conduzida impecavelmente por Sérgio Moro. As interferências corroem a igualdade e o anonimato relativo, mas crítico das democracias. Quando ele é obscurecido ou ideologizado, como foi o caso dos governos petistas, viu-se que constituem o tumor de protagonismos escusos e o berço da corrupção.

Eu fiz um estudo pioneiro do “você sabe com quem está falando?”. Lívia Barbosa analisou o seu contraponto: o “jeitinho” que tudo resolve. Tais brasileirismos rejeitam o impessoal e o anonimato imprescindíveis numa república.

O conflito do magistrado com o presidente tem a ver não com a intenção de mudar. Não há como esconder que o projeto intenta “blindar” as investigações dos filhos de um presidente eleito para liquidar privilégios, mas que insiste em governar de modo absolutista.

Numa república nada é mais delicado do que os cargos ligados aos limites da liberdade. Se as polícias sofrem interferências e têm elos extraoficiais com os poderosos, cria-se uma democracia selvagem, muito pior que o capitalismo que nasceu sem pai e, principalmente, sem mãe. Mas cujos abusos são corrigidos pela fidelidade à igualdade contra a sua brutal e constitutiva impessoalidade. A crise reitera esse combate do pessoal e de um aberto familismo, contra a impessoalidade estruturante das democracias.

Assistir em pleno século 21 a um enredo já equacionado no século 19, um filme protagonizado por um presidente referendado com a promessa de liquidar esse personalista pilar da “velha política”, contra o ministro sem o qual ele jamais teria sido eleito, já que ambos queriam o controle do familismo aristocrático e ilegal, não é apenas ofensivo e deprimente. É uma merda!

Bolsonaro sobre 474 mortos: "E daí?" E o tédio mortal do ministro Teich - REINALDO AZEVEDO

UOL - 29/04


"E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre".


Essa foi a reação do presidente Jair Bolsonaro nesta terça ao ser informado do número de mortes por Covid-19.

Como viemos parar nesse buraco moral? O fato é que estamos nele.

O Brasil registrou nesta terça um recorde de mortes em razão da doença: 474. Já são 5.017 os mortos contabilizados pelo Ministério da Saúde, que reconhece uma lista de apenas 1.156 óbitos em investigação. A subnotificação, no entanto, é brutal e autodemonstrável, por exemplo, no caos que enfrentam os sistemas de saúde e funerário de cidades como Manaus e Belém. Na capital fluminense não há mais leitos disponíveis. Belo Horizonte mandou abrir 1.900 covas. Estão começando a se popularizar os contêineres frigoríficos para estocar carne humana, essa carne brasileira que tem sido tão barateada.

Assistimos a cenas inéditas, com caixões sendo empilhados em covas coletivas, a exemplo do que se vê na capital do Amazonas. O país da "gripezinha", como Bolsonaro chamou a doença, ocupa o 9º lugar no ranking de mortos — já superou a China (4.512) nesse particular — e o 14º em número de contaminações: 71.886. E, no entanto, as autoridades federais, entre perplexas e raivosas, não conseguem nem mesmo se solidarizar com as famílias atingidas.

Além da Covid-19 e das outras moléstias que já matavam no país, há uma doença ainda mais grave que anda por aí a nos assombrar e que, esta sim, pode nos inviabilizar porque nada de útil sairá de uma vivência assim: a impiedade, a falta de empatia, o desrespeito com a vida, o alheamento, a alienação. Já vimos grandes correntes de solidariedade se formar no país em momentos de tragédia. Hoje, no entanto, assistimos a uma espécie de suspensão coletiva do juízo e do padrão mínimo de decência.

É claro que não é um sentimento generalizado. Talvez nem seja majoritário. Mas é escandalosamente perceptível para que não seja apontado. Assim como os pulmões do doente de Covid-19 assumem, nos exames de imagem, o aspecto de um vidro fosco, parece que os espíritos também estão se deixando ofuscar pela estupidez, pelo dane-se, pelo "quer que eu faça o quê?"

No caso da indagação de Bolsonaro, a resposta é bastante simples. Bastaria que não tivesse ideologizado a questão, insistindo numa insana e homicida exortação a que as pessoas saíssem do isolamento social. Bastaria que não tentasse convencê-las de que deveriam levar uma rotina normal em nome da economia porque, afinal, "todo mundo vai morrer um dia". Bastaria, na condição de chefe de Estado, a expressão de alguma solidariedade, de algum compadecimento genuíno, de alguma, enfim, empatia.

Mas o presidente que temos parece incapaz de se colocar um pouco que seja no lugar do outro que sofre. Por isso justificou e defendeu a tortura em reiteradas declarações. Para o torturador ou para quem faz a apologia de tal prática, o que é o torturado? É uma "coisa" da qual se deve arrancar uma confissão. Assim como os corpos empilhados em Manaus. É claro que Bolsonaro está também fazendo história e escrevendo a sua biografia. As vítimas potenciais do caos, no entanto, não têm como esperar pelo ajuste de contas.

Os sistemas de saúde de todos os grandes centros estão sob pressão. Não era uma gripezinha. A cada dia, descobrimos que sabemos ainda pouco sobre a doença. Todas as teses de Bolsonaro estavam erradas. Só não nos tornamos um vale de desgraçados de dimensões continentais porque a sua pregação não triunfou — embora ele certamente tenha prejudicado em parte a eficácia do isolamento horizontal. A doença atrapalhou os seus planos. E, por isso, parece que ele não perdoa os doentes.

Na entrevista desta terça, o ministro Nelson Teich, com o aspecto de burocrata de funerária de filme B, afirmou, como um autômato, que as mortes cresceram, contrariando sua expectativa, e tratou do assunto, ele também, com a compaixão que a gente sente por um bloco de gelo. Ninguém espera certamente de um médico que se deixe tomar de emoção quando está examinando um paciente ou fazendo uma cirurgia. Tudo o que esperamos dele é racionalidade, técnica, frieza, apego à ciência, ao saber firmado, à memória científica de casos afins etc. Não é fácil. Por isso mesmo, é preciso ter um espírito especialmente talhado para a função.

Ocorre que, além de médico, Teich é agora um homem público, que lida com a saúde e o destino de milhões de pessoas. Seu despreparo para exercer a função — que não é a de estatístico, ainda que ele fosse bom nisso, mas não parece ser — é de tal sorte evidente que chego quase a me compadecer do da sua falta de identificação com a condição humana. Nem se trata de acusá-lo de desprezo olímpico, o que se exerceria com retórica agressiva. Não! Acho que devemos temer o seu tédio diante dos corpos empilhados.

Todos terão, fiquem certos, suas respectivas histórias contadas.

Há, sim, uma guerra contra o vírus. E haveremos de identificar os generais da morte.

Entre chiquês e glacês - ROSÂNGELA BITTAR

O Estado de S.Paulo - 29/04

Integrantes do Centrão podem bandear-se para o inimigo antes que o galo cante três vezes



Sai o impeachment, temporariamente retirado das hipóteses de trabalho da oposição (PSDB, MDB, DEM), entra a denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro, medida que, antes de chegar ao Congresso, ganha arrazoado no Supremo Tribunal Federal.

A aposta de solução para içar o País da crise, agora, é judicial. Informado, o governo intensifica a articulação de defesa, cuja operação mais radical, que abalou instituições como a Polícia Federal e o Ministério da Justiça, foi a investida sobre o controle dos inquéritos e relatórios policiais.

Diante disso, a oposição reage, apressando-se em definir sua forma de atuação.

Os processos que se seguiram às denúncias do procurador-geral da República contra o ex-presidente Michel Temer, todos derrubados pelo Congresso, são os modelos na expectativa de governo e oposição.

Esta é a principal inspiração na mudança do pensamento do presidente quanto às alianças políticas. O caminho das pedras é a conquista do Centrão, grupo de partidos que fazem as votações do Legislativo penderem para o norte ou para o sul, sem explicações.

Cerca de 70 votos, se tanto, é a avaliação da atual bancada de Bolsonaro na Câmara, como demonstrou recente votação do interesse dos Estados e municípios. A oposição formal ou eventual, contando com os partidos que há décadas dominam de fato o jogo no Parlamento, somados a alguns da esquerda, poderá chegar a pouco mais de 100. Ficariam os demais, em torno de 200 das duas Casas, sob a liderança do Centrão. Que não é um só, são muitos.

Dividem-se os parlamentares centristas em muitas alas. O forte eixo Nordeste é liderado por Ciro Nogueira (PI), Arthur Lira (AL) e Aguinaldo Ribeiro (PB), e a sigla dominante é o PP. Embora o alagoano Lira seja atualmente o mais citado por estar em campanha para a sucessão de Rodrigo Maia, é Ciro Nogueira quem organiza o movimento e orienta o carnaval.

Há o “Centrão Chic”, do paulista Gilberto Kassab (PSD), que fala pouco e opera muito. Tanto que, embora formalmente aliado do governador João Doria, negocia com o presidente Jair Bolsonaro. Está caracterizado até mesmo um “Centrão Glacê”, ala que contribui com nuances da esquerda, na qual se situa, por exemplo, o deputado Orlando Silva (PCdoB). Sem aceitar cargos no governo, os parlamentares deste grupo evitam o isolamento, articulando-se com os mais numerosos para fazer política no Congresso.

O ex-deputado Valdemar Costa Neto (PR-SP) foi, durante muito tempo, uma espécie de logotipo do Centrão. Ainda controla seu partido com firmeza e tem fama de cumpridor de acordos. O PRB, “Centrão dos Bispos”, saiu um pouco da cena depois do revés do grupo na CPI dos Sanguessugas, mas se recuperou com Bolsonaro.

Já o DEM, agora um caso à parte, é o “Centrão Sofisticado”. Criou uma boa imagem e persegue a posição que já teve um dia, de legenda com um projeto político próprio.

Os motivos do governo para obter o apoio do Centrão, todos sabem: criar um lastro de apoio no Congresso para, em alguns momentos, aprovar projetos do seu interesse. Em outros, como agora, evitar a queda.

E o Centrão? Oferecer aos seus membros meios de sobrevivência. Um lema-síntese, colecionado por político criativo para fugir ao clichê, revive um refrão do cancioneiro do cangaço: “o Centrão é ‘tu me ensina a fazer renda que te ensino a namorar’”.

O governo se obriga a entregar a mercadoria negociada. Por exemplo, o Centrão sempre está de olho em duas casas bancárias da Esplanada dos Ministérios, a Funasa, na Saúde, e o FNDE, na Educação.

Não existe a hipótese de enganar o Centrão. Diante dos dribles, seus elementos de significativa base parlamentar podem bandear-se para o inimigo antes que o galo cante três vezes.

Símbolos de uma República em crise - FERNANDO EXMAN

Valor Econômico - 29/04

Trégua entre as alas do governo não deve ser duradoura


Nas cortes, aprende-se nos livros de história e manuais de cerimonial, os gestos têm tanta força quanto as palavras. É o que ocorre em Brasília, onde frequentemente as mensagens não são passadas de forma explícita por meio de sentenças completas, frases com sujeito, verbo e predicado.

O simbolismo é um costume político e as autoridades usam atos públicos para, mesmo sem abordar diretamente um assunto, enviar recados. Auxiliares são prestigiados ou colocados no ostracismo, dependendo dos lugares que ocupam à mesa ou no palco. Destinos são definidos muito antes das nomeações ou das exonerações chegarem ao “Diário Oficial da União”. Em alguns momentos, contudo, os gestos são feitos tarde demais ou não apresentam a naturalidade necessária para ganharem credibilidade. As aparições públicas do presidente Jair Bolsonaro e de alguns ministros de Estado nos últimos dias estão repletas desses exemplos e, por isso, merecem atenção.

Depois de praticamente ceder o Palácio do Planalto para o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta retomar sua carreira política em grande estilo, com entrevista e discursos de despedida, Bolsonaro forçou a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. Houve desgaste com sua base eleitoral, mas o cálculo parece outro. O ex-juiz da Lava-Jato é odiado por grande parte da classe política tradicional, a mesma que o presidente sempre criticou e agora tenta se aproximar num momento em que está isolado.

Um isolamento que a própria Presidência tentou relativizar ao cercar Bolsonaro de todos os demais ministros, quando ele foi fazer um pronunciamento para se defender das acusações de Moro. Os ministros que podiam tentavam se esconder atrás dos mais altos e os que ocupavam a primeira fila da tropa de choque, olhavam para o infinito. O governo perdia um dos seus pilares. Um ato que seria para demonstrar força acabou evidenciando as fragilidades e as preocupações do ocupante do principal cargo da República.

Esse é o tipo de comportamento que foge ao controle dos membros do cerimonial, encarregados de garantir que seja observado todo um roteiro previamente estabelecido para as festas oficiais, as solenidades ou as visitas ao chefe do governo. Uma missão desafiadora quando o presidente costuma negligenciar protocolos de segurança e expor a vida palaciana nas redes sociais.

A internet é o ecossistema em que Bolsonaro conseguiu deixar de ser um deputado do baixo clero para emergir como uma das principais forças políticas de um país dividido. Um ambiente praticamente sem regras de etiqueta. Propício a discursos radicais e à proliferação de notícias falsas, ou seja, o lugar perfeito para que um outro gesto de aproximação fosse executado.

Após atacar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), Bolsonaro surpreendeu até os ministros mais próximos e apareceu ao vivo, vestindo bermuda e chinelos, em seu perfil nas redes sociais. Assistia a uma transmissão feita pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ).

O tema da “live” era um suposto golpe parlamentar em curso. E o espectador não estava em um local qualquer, mas em uma sala da residência oficial, o que deu ainda mais dramaticidade ao episódio. A imagem transmitida pelo presidente o mostrava acompanhado apenas de seguranças, todos em silêncio. A apatia dos presentes só era quebrada quando um garçom, também devidamente uniformizado, oferecia pães de queijo ou algum sanduíche.

O pivô do escândalo do mensalão voltava ao Palácio do Planalto, desta vez virtualmente, para prometer apoio incondicional a um presidente que aparecia nas telas de computadores e telefones celulares praticamente sozinho. Uma prévia de como será o relacionamento do presidente com os partidos do Centrão: sem intimidade, uma troca de interesses que ninguém sabe ainda aonde vai chegar.

Bolsonaro e os líderes do Centrão se conhecem muito bem. Em seus 28 anos na Câmara, o presidente passou por algumas dessas siglas e pode-se dizer sem medo de errar que não há confiança entre os lados. O então deputado nunca seguia as orientações de bancada, mas também não fazia exigências. Pedia apenas que o ajudassem a ter espaço na tribuna semanalmente para fazer seus discursos. Queria também ser indicado como membro titular da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.

Bolsonaro era bom nas urnas e não atrapalhava o relacionamento desses partidos com o governo da ocasião. Nunca foi de agregar, talvez por isso não tenha percebido a relevância simbólica da ausência de integrantes da ala que diverge do ministro da Economia, Paulo Guedes, no ato de desagravo que promoveu ao chefe da equipe econômica nesta semana. Com isso, se por um lado reafirmou a autoridade de Guedes, por outro ficou explícito agora quem de fato pode ser considerado aliado de primeira hora do ministro.

Diante de um próximo choque entre desenvolvimentistas e liberais, existe o risco concreto de antecipação de um processo de desembarque de autoridades desiludidas com os rumos do governo. Não é o caso dos militares, que servem o Estado e possuem o senso de missão e o compromisso com a hierarquia como princípios. Mas nada impede que funcionários de carreira tirem licença para trabalhar na iniciativa privada, aproveitando para ganhar dinheiro num momento em que seus conhecimentos são valiosíssimos.

É difícil acreditar que a trégua será permanente. O armistício terá um fim quando o próprio presidente começar a impacientar-se com os resultados da economia, o colapso do sistema de saúde em algumas regiões metropolitanas e o aumento da miséria. Teme-se pelo pior, o caos social, mas muito antes disso já haveria quem defendesse a necessidade de reformulação da política econômica.

A ala derrotada sairia do governo dizendo que tentou fazer o melhor para o Brasil, mas foi impedida. Os que ficarem precisarão dos cerimonialistas para promover uma solenidade em que a coesão e o otimismo do governo serão de novo apresentados à sociedade, mas rapidamente depois colocados à prova pelos fatos.

Fernando Exman é chefe da redação, em Brasília

Bolsonaro: 'Quer que faça o quê?' Simples: Presida - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 29/04


Já se sabia que o homem evoluiu do macaco. Graças a Jair Messias Bolsonaro, descobre-se que alguns já fazem o caminho de volta.

Uma repórter pediu ao presidente que comentasse a notícia mais impactante do dia: o Brasil ultrapassou a China em número de mortes por coronavírus.

E Bolsonaro, de chofre: "E daí? Lamento. Quer que faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre."

Se estivesse vivo, Cacaso, como era conhecido o poeta Antonio Carlos de Brito, diria que Bolsonaro já realiza milagres, só que às avessas.

Ficou moderno o Brasil do messias Bolsonaro. Nele, a água já não vira vinho, vira direto vinagre.

Bolsonaro e a sensatez são duas coisas inconciliáveis. Mas o capitão exagerou. É como se quisesse avisar aos seus devotos que quem ama o feio leva muito susto.

O presidente do Brasil decidiu desrespeitar o luto dos brasileiros. Fez isso num dia em que chegou a 5.017 o número de cadáveres do coronavírus.

"Quer que faça o quê?", indagou Bolsonaro. Talvez seja inútil. Mas vão abaixo algumas sugestões:

Cale a boca:
Os problemas de Bolsonaro estariam resolvidos se ele seguisse o seguinte conselho: Nunca deixe para amanhã o que você pode calar hoje.

Feche o cercadinho:
O cérebro de Bolsonaro começa a funcionar no momento em que ele acorda. E não para até que ele converse com a plateia do cercadinho do Alvorada. Se passar direito, será mais feliz.

Saia da bolha:
Sempre que estiver prestes a arrancar a carótida de algum governador pró-isolamento ou chupar o próprio sangue, saia das redes sociais e converse um pouco.

Suma com a fila:
Se Deus criasse um socorro de R$ 600, Ele não se atreveria a aparecer para os pobres em outra forma que não fosse o dinheiro. Fila na Receita é covardia. Na Caixa, é tortura.

Aprenda matemática:
Candidato que belisca 57,7 milhões de votos num universo de 147 milhões de votantes chega ao Planalto carregado por 39% dos eleitores.

Os números pedem humildade. Quem acha que pode salvar a pátria sozinho, revela-se incapaz de todo. Acertando com o centrão, mostra-se capaz de tudo.

Numa palavra: presida, presidente. Não há de ser tão difícil. O horário é civilizado, o salário é razoável, viaja-se muito...

E há sempre a possibilidade de demitir o Abraham Weintraub e o Ernesto Araújo, o que deve proporcionar uma grande sensação de alívio.

Se de todo modo não for possível governar, há sempre a possibilidade da renúncia. É melhor bater em retirada do que sapatear sobre lápides.

Epidemia voltou a piorar no Brasil? - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 29/04

Ritmo de aumento do número de novos casos vinha caindo até a semana passada; não mais



O número de mortes por Covid-19 no Brasil e em São Paulo parecia crescer mais devagar até o começo da semana passada, por aí. Até então, com todas as ressalvas de praxe, parecia haver uma despiora, como vinha acontecendo em países grandes da Europa, no que diz respeito à redução do ritmo do avanço do número de casos e mortes, considerados dias equivalentes de duração da epidemia.

Desde a semana passada, embatucamos. O ritmo parou de diminuir.

O que houve? Há mais registros de casos e mortes porque há mais testes ou notificações mais rápidas? Ou há um problema na contenção da doença, programa que mal e mal parecia funcionar?

Como está claro, epidemiologistas e outros estudiosos da doença estão com dificuldades ou indisposição de avançar opiniões, que dirá análises ou projeções. Mas alguns deles dizem temer que a desordem no distanciamento social possa ter abalado a tendência de despiora no ritmo de avanço da doença. Mas esperariam mais uma semana, pelo menos, antes de assinar o comentário.

As medições disponíveis de isolamento caíram, cidades reabrem a atividade econômica ou jamais as fecharam de fato, há propaganda federal contra o isolamento. Pessoas mais pobres, sem auxílio, procuram meios de ganhar vida, as pessoas em geral começam a se cansar do isolamento e fogem. Para piorar, ainda estamos muito longe de ter um sistema amplo e ágil de rastreamento de doentes e possíveis contaminados.

Temos ainda problemas com os dados mais elementares. Não sabemos quando as pessoas ficaram doentes (com sintomas) ou morreram. As notificações diárias são de confirmações de casos que podem ter ocorrido faz dias.

O problema vai, pois, muito além da subnotificação, que sempre há e haverá. E subnotificação do quê? De infecções em geral, de doentes leves, de casos hospitalares, de mortes? De resto, uma subnotificação mais ou menos constante permite que se acompanhe o ritmo da progressão da doença, embora não o nível do número de casos.

Há agora uma corrida para saber da subnotificação _é útil, ajuda a pressionar os governos a fornecerem dados melhores. Vários dados indicam subnotificação, mas não dizem muito mais do que isso.

No estado de São Paulo, o número geral de mortes em março de 2020 superou a média dos últimos quatro anos em 1.481. O número oficial de mortes por Covid-19 naquele mês foi de 731, mas várias mortes ainda estavam pendentes de confirmação ainda em abril (os dados de mortalidade de abril ainda são imprestáveis, por vários motivos).

O que podemos concluir? Nada além do óbvio. Existem mais casos, não se sabe bem quantos, quando e em que ritmo de notificação ou sub.

Além do risco do fetiche do número da subnotificação, falta qualidade nos dados elementares da doença. Parece que o país se cansou de falar no assunto, saiu de moda, embora o problema esteja explodindo. Ainda não temos informação precisa de UTIs, ventiladores, testes, detalhamento da gravidade dos casos e da evolução desses números.

Compramos mais, produzimos mais, temos mais equipamentos?

Deveria haver equipes supervisionando isso com precisão, de modo a tentar evitar mais desgraça. Que essas informações não existam ou que os governos se recusem a divulga-las, COMO TEM FEITO, é um escândalo que deveria ser objeto de campanha, talvez campanha do Ministério Público.

É uma zorra criminosa.

Guedes herdou a carta branca de Sergio Moro - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 29/04

Ministro poderá ser descartado com a mesma argumentação usada contra o ex-juiz



Fica combinado que "o homem que decide a economia" no Brasil é Paulo Guedes.

Afinal, Sergio Moro tinha carta branca e a política do toma-lá-dá-cá com o centrão era coisa dos passado. Cartas brancas não existem e as tais bancadas temáticas que substituiriam as negociações com os partidos eram um delírio.

Assustado com a ruína de seu governo, Bolsonaro bateu à porta do centrão. Repete Dilma Rousseff e Fernando Collor.

A fé de Bolsonaro em fantasias é inesgotável. Pena que a capacidade de Paulo Guedes de criar debates inconsequentes seja incontrolável.

Diante de uma epidemia, de uma recessão e do teatrinho do lançamento do Pró-Brasil, Paulo Guedes resolveu encrencar com os servidores: "Precisamos também que o funcionalismo público mostre que está com o Brasil, que vai fazer um sacrifício pelo Brasil, não vai ficar em casa trancado com geladeira cheia e assistindo a crise enquanto milhões de brasileiros estão perdendo emprego".

Boa ideia. Que tal um programa de sacrifícios gradativos, começando pelos magistrados e procuradores que embolsam acima de R$ 30 mil por mês? O general da reserva Augusto Heleno já disse que tinha vergonha do seu salário de R$ 19 mil líquidos.

Guedes tomou uma bolada nas costas e partiu do oficialismo a pecha de que ele é um "inimigo dos pobres". Teria surgido até uma banda "desenvolvimentista" no Planalto. Isso é falso por três razões.
Primeiro, porque o Pró-Brasil é apenas teatralista, como o foram seu pai, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e seu avô, o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND).

Também porque esse desenvolvimentismo seria encarnado pelo ministro Rogério Marinho. Como secretário para Previdência e Trabalho de Guedes, o doutor teve a ideia de taxar os desempregados que recebem um seguro do governo. Justificando a tunga, disse que com isso o desempregado continuaria na Previdência Social. Só não explicou por que a medida seria compulsória. Se fosse voluntária, tudo bem.

Finalmente, porque o teatrinho do Pró-Brasil nunca foi coisa nenhuma. Revela apenas um governo desorientado. Quando Bolsonaro diz que Paulo Guedes é "o homem que decide a economia", isso significa que, quando for o caso, poderá ser descartado, com a mesma argumentação usada para defenestrar Sergio Moro.

Até o mês passado, Paulo Guedes queria reformar a economia brasileira com 40 milhões de invisíveis e 11 milhões de desempregados.

Na segunda-feira, ele reafirmou a vitalidade de seu projeto e encrencou com a geladeira dos servidores.
Na recessão americana de 1929 o secretário do Tesouro Andrew Mellon também viu um renascimento a partir da ruína e propôs ao presidente Herbert Hoover: "Liquide os sindicatos, liquide o papelório, liquide os fazendeiros, liquide o mercado imobiliário. Isso purificará a podridão do sistema. (...) As pessoas trabalharão mais e levarão uma vida com mais moral". Felizmente, Hoover não o ouviu.

Em 1933, Franklin Roosevelt assumiu a Presidência, olhou para o andar de baixo e mudou a cara dos Estados Unidos.

Em tempo, o andar de cima americano nada tem a ver com o de Pindorama: Andrew Mellon doou ao povo o prédio da National Gallery de Washington e mais de mil peças de sua coleção. Coisa de dezenas de bilhões de dólares em dinheiro de hoje.

Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Sombras sobre Jair Bolsonaro - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 29/04

A nomeação de um amigo para a PF ajuda Bolsonaro a se proteger de investigações, mas sombras cercam seu mandato

Três investigações cercam o presidente da República e pessoas próximas pessoal ou politicamente. Todos os inquéritos passam pela Polícia Federal. Ele nomeou um delegado, amigo dele e dos seus filhos, para a diretoria-geral. E daí? Daí que o Brasil é uma democracia e uma república em que somos todos súditos da lei, lembrou o ministro Celso de Mello. Há muitas portas pelas quais o presidente pode escapar. Uma é ter um amigo na PF, outra é ter um ministro submisso no Ministério da Justiça, outra é contar com os favores do procurador-geral da República . E se nada disso funcionar ele pode comprar apoio no Congresso. Bolsonaro está blindando os quatro cantos do campo para terminar seu mandato.

O PGR Augusto Aras foi se encontrar com o presidente logo no dia em que o ministro Celso de Mello estava decidindo a instauração do inquérito. Podem ter conversado sobre assuntos outros, mas esse encontro é indevido. Aras chegou à PGR contornando a lista tríplice e com ofertas explícitas de uma procuradoria com a qual o presidente pudesse contar. Tem cumprido a sua parte. Até no pedido de abertura de inquérito para apurar as denúncias contra o presidente fez de tal forma que investigasse também quem denunciou os fatos.

Bolsonaro e seu entorno são alvos do inquérito aberto pelo STF sobre fakenews, de outro, sobre os atos antidemocráticos, e agora, pelas suspeitas de ter pressionado pela demissão do diretor-geral da Polícia Federal, porque queria ter notícias de investigações em andamento. O da fakenews pode chegar nos seus filhos e no “gabinete do ódio”. O dos atos antidemocráticos pode investigar deputados bolsonaristas, como contou Merval Pereira. O último inquérito é direcionado a Bolsonaro mesmo.

O que o ministro Celso de Mello fez foi vigoroso. Segundo a definição de um colega: “O relator reafirmou o império da lei. Proclamou a todos os ventos que à Constituição todos estão submetidos.” Essa é a causa que faz Celso de Mello se agigantar e ele fez isso numa peça forte. O problema é que dificilmente o inquérito termina antes de ele deixar a toga em novembro. O tempo começa com 60 dias para se intimar o ex-ministro Sergio Moro. Mello também pediu que avaliasse o pedido do senador Randolfe Rodrigues e periciasse o celular da deputada Carla Zambelli.

O ministro Celso de Mello deixou claro que nem a imunidade do presidente, prevista no artigo 51, nem a cláusula de exclusão do artigo 86 impedem que ele seja investigado para se buscar “elementos de prova” e apurar “materialidade”. Quem fará isso? A Polícia Federal. E daí? Daí que o amigo dele estará lá no posto-chave de diretor-geral.

Depois da investigação, ele só será denunciado se o procurador da República assim decidir. E, depois, a Câmara terá que autorizar. Durante o governo Temer, duas denúncias foram negadas. Se Celso de Mello chegar ao fim do seu período no STF e o inquérito não tiver terminado, quem herdaria seria o ministro que Bolsonaro vai indicar. Quando Teori Zavascki morreu, o então presidente Temer avisou que só nomearia depois de o STF decidir o relator da Lava-Jato. Dessa forma, poupou o país de qualquer constrangimento. Não se espera de Bolsonaro a mesma atitude. No STF, um ministro me contou que, se Celso de Mello se aposentar antes do fim do inquérito, ele deve ser distribuído imediatamente, sem esperar o novo ministro, “já que o envolvido é aquele que indica o novo juiz”.

Sombras cercam o presidente Jair Bolsonaro e ele trata de abrir as portas para escapar ileso. Há muitas portas. Mas a opinião pública pode fechar algumas delas. A pesquisa DataFolha trouxe péssimas notícias para o presidente: só 20% acreditam na versão de Bolsonaro na briga com Moro — o ex-ministro convenceu 52% —, 56% acreditam que ele queria interferir na PF. Em 11 dias, subiu de 38% para 45% os que reprovam sua condução da crise do coronavírus. Caiu 21 pontos a avaliação positiva do Ministério da Saúde, depois que ele demitiu Luiz Mandetta. O governo prefere olhar a avaliação geral dele, que subiu de 30% a 33%, apesar de todas as crises que provocou. Os sinais de piora, contudo, estão em todas as outras perguntas. Jair Bolsonaro pode passar o resto do seu mandato lutando contra sombras.

Sem saída imediata - VERA MAGALHÃES

ESTADÃO - 29/04

Curva de casos mostra que não será simples reativar a economia


É muito mais deletério do que conseguimos mostrar em texto de análise política o efeito que pregações irresponsáveis como as do presidente Jair Bolsonaro contra as estratégias de distanciamento social provocam no efetivo combate à pandemia do novo coronavírus.

Essa influência perniciosa não só atiça a natural e justificável ansiedade das pessoas por retomar suas vidas “normais”, como se fosse possível prever qual será o novo normal a partir de agora. Ela também, é possível perceber agora, acabou por criar nos governadores e prefeitos, mesmo naqueles conscientes dos riscos reais da pandemia, uma pressão para dizerem quando e de que forma reabririam comércio, escolas e outros estabelecimentos, o que se deu, desde a semana passada, de forma claramente irrefletida, precipitada e inócua.

Os casos de contaminação e as mortes continuam em ritmo acelerado, sem que nenhuma das condições necessárias para que se comece a falar em saída das quarentenas esteja dada. Não começamos a testar de forma mais sistemática e massiva, para ter números mais fiéis a refletir em que momento da epidemia estamos, a ocupação dos leitos de hospitais e de UTIs não está em curva decrescente na maior parte do País, os casos (mesmo esses que conseguimos confirmar, uma fração ínfima do total) não estão estabilizados e, mais assustador de tudo, mesmo os países que fizeram tudo certo e começaram a abrir estão experimentando más notícias.

É ilusório imaginar que em São Paulo, que na terça-feira, 28, conheceu um novo e sinistro recorde de casos e de mortes, 224 em 24 horas, perfazendo mais de 2 mil óbitos em pouco mais de um mês, vai voltar a funcionar, ainda que parcialmente, a partir de 10 de maio.

Se a ocupação dos leitos e a progressão do contágio continuarem no ritmo dessas duas semanas, ao contrário, é muito provável que o governador João Doria Jr. e o prefeito da capital, Bruno Covas, tenham de anunciar restrições ainda mais severas, e não relaxamento do distanciamento social. Foi assim em Milão, Nova York e outras cidades com as características de São Paulo.

Mesmo lugares de populações e circulação mais restritas e controláveis, como Brasília, talvez tenham relaxado as regras cedo demais. Afinal, basta que a capital do País volte a receber fluxos de viajantes, a começar dos políticos, de outros Estados para que uma nova onda de contaminação seja não apenas possível, como provável.

Basta ver que países que chegaram a ser citados como exemplos de combate à covid, como Cingapura (que testou massivamente) e Alemanha (que tinha proporção confortável de leitos de UTI por milhões de habitantes e fez um isolamento social rigoroso), tiveram ou terão de anunciar a volta de medidas restritivas porque os casos voltaram a subir.

Diante de um quadro tão grave e imprevisível, é ainda mais bizarro que o presidente do Brasil esteja dedicado única e exclusivamente a aparelhar ministérios e cargos públicos, demitir ou desautorizar os poucos ministros que passariam num psicotécnico e em confronto aberto com as instituições.

Desde que trocou Luiz Mandetta pelo desarvorado e desanimado Nelson Teich, Bolsonaro parece ter esquecido que há um vírus matando seus governados aos milhares. Não fala mais sobre coronavírus (o que pode até ser bom, dado o nível de patacoada que ele costuma dizer a respeito) nem cobra ações efetivas para achatar uma curva que ameaça colapsar o País tanto no plano médico-sanitário quanto no tão temido aspecto econômico.

Não vai dar para reabrir o Brasil na marra, como a essa altura até Teich já deve ter conseguido se dar conta. Que os governadores parem de ficar com medo do bafo quente das ruas e ajam com responsabilidade. De irresponsável já basta um.