terça-feira, junho 25, 2019

Sob Bolsonaro, coalizão foi trocada por trincheira - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 25/06


Tendo produzido um novo modelo de relacionamento com o Congresso, Jair Bolsonaro dedica-se a transformar a novidade que criou num problema. O capitão extinguiu o chamado presidencialismo de coalizão, eufemismo para o regime de cooptação no qual o Executivo comprava apoio parlamentar. Fez muito bem. O problema é que Bolsonaro colocou no lugar o presidencialismo de trincheira.

No novo modelo, o presidente da República não faz alianças, ele recruta súditos e elege inimigos. Entrincheirado no Planalto, Bolsonaro transforma ideias fixas em medidas provisórias e decretos. Manda publicar. E ponto. Começa a notar que sua estratégia esbarra num ponto fraco, pois numa democracia a decisão do presidente é ponto de partida, não ponto final. A vontade do soberano está sujeita ao crivo do Legislativo,

No Planalto, manda quem pode. No Congresso, manda quem tem mais votos. Para contornar a inanição legislativa, o presidente leva a edição de decretos às fronteiras da inconstitucionalidade. E os congressistas derrubam o que se imaginava decretado. Derrubam também artigos de medidas provisórias. O presidente os ressuscita na MP seguinte. E leva um corretivo do Supremo. Sobram tiros e falta diálogo no presidencialismo de trincheira.

Há uma montanha de problemas. Cavando de um lado, o Congresso ajeita a reforma da Previdência e tenta colocar em pé uma agenda própria. Cavando do outro lado da montanha, o governo também se equipa para lançar sua pauta. Se os combatentes se encontrarem no meio do caminho, farão um túnel. Se não se encontrarem, o que parece mais provável, cavarão dois túneis. Nessa hipótese, Executivo e Legislativo continuarão trafegando em duas vias, uma na contramão da outra. Se descobrissem o valor de um dedo de prosa, as trincheiras poupariam muito tempo.

Penélope e a previdência - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

MÃO VISÍVEL

Se eu já não tenho mais paciência com a discussão da reforma previdenciária, que dizer do coitado do leitor, assombrado pelas obsessões tanto do colunista como do mercado. Fazer o quê? É o principal tema da agenda política e econômica do país, e por boas razões.

Isto dito, tenho sérias ressalvas ao relatório do deputado Samuel Moreira, mas não as mesmas expostas, entre a histeria e a choradeira, pelo ministro Paulo Guedes. Em particular não desgostei da retirada da capitalização do texto da proposta por uma série de motivos. A começar porque em momento algum houve clareza acerca do que se pretendia nesta frente.

Aventou-se, por exemplo, a possibilidade de uma capitalização nocional (aos interessados recomendo o belo artigo de Pedro Nery a respeito em https://tinyurl.com/y4j3r5fw), que não seria uma má ideia, mas, por outro lado, o ministro frequentemente mencionou que as economias resultantes da reforma seriam utilizadas para bancar a transição para o regime de capitalização, proposição que, além de contrária ao regime “nocional”, desafia a contabilidade e a aritmética.

Podemos (e devemos) abrir esta discussão mais à frente, preferivelmente na forma de um complemento à repartição, como defendido por Paulo Tafner e Pedro Nery em seu indispensável Reforma da Previdência: Por Que o Brasil Não Pode Esperar, mas, nas condições de hoje, possíveis economias com a reforma serviriam apenas para estancar (ou reduzir levemente) o gasto previdenciário como proporção do PIB. Posto de outra forma, a proposta essencialmente evitaria a necessidade de corte ainda maior nos investimentos e demais gastos do governo.

Para ser curto e grosso, não me preocupa muito o abandono deste tópico, apesar do mimimi do ministro.

Ficaram de fora também as mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a aposentadoria rural, temas politicamente tóxicos. Contudo, de acordo com as estimativas oficiais, o BPC representaria menos de 3% do impacto da reforma, enquanto a aposentadoria rural equivaleria a pouco mais de 5% do total. No conjunto da obra seriam anéis pequenos na permuta pelos dedos, do ponto de vista das contas públicas.

Permanece, isto sim, um problema de tratamento desigual que deveria ser corrigido (os que não contribuem para a previdência se “aposentam” em condições similares a quem contribuiu, o que fere qualquer noção de justiça), mas que, novamente, pode ser objeto de discussão menos acalorada no futuro, sem grande prejuízo em termos de estabilização dos gastos.

O custo maior, do ponto de vista do governo federal, refere-se a regras de transição e manutenção de exceções aos princípios gerais em nome das especificidades de algumas carreiras (notadamente professores). De qualquer forma, a valer o relatório, o governo federal sairia da história com economias entre R$ 850 bilhões e R$ 900 bilhões em 10 anos: menos do que o objetivo inicial de R$ 1,2 trilhão, sugerindo a necessidade de voltar ao tema em 4 ou 5 anos, mas ao redor do que se imaginava ser o efeito da reforma quando do seu lançamento.

Se a coisa parasse por aí valeria uma comemoração discreta: daria para abrir uma boa cerveja (não um baita vinho) e brindar com gosto, principalmente considerada a alternativa de manutenção do status quo, uma receita para o desastre.

Ocorre que não paramos por aí. Estados e municípios foram excluídos da reforma e pelos motivos mais mesquinhos. Deputados não querem facilitar a vida de governadores e prefeitos, potenciais rivais em 2022 e 2018 respectivamente, que, com a reforma, teriam melhores condições de gestão sem incorrer no desgaste político de promover suas próprias mudanças. O cálculo político mais vil determinou a exclusão.

Isto não é tão relevante na perspectiva dos municípios; contudo, no caso dos estados é óbvio que o dispêndio com inativos é o principal problema, ainda mais considerados policiais e professores (que se aposentam mais cedo e têm peso maior nos gastos comparado ao governo federal). Algumas estimativas sugerem que a adoção da reforma para estados e municípios implicaria redução de gastos da ordem de R$ 300 bilhões em 10 anos na comparação com o cenário sem reforma.

A miopia não se restringe aos deputados. A experiência histórica é acachapante em demonstrar que, cedo ou tarde, o desequilíbrio dos governos locais termina nos cofres federais, sob forma de assunção e reestruturação de dívidas, pacotes de ajuda, etc. É, portanto, uma ilusão acreditar que não haverá repercussões sobre as contas do governo central num horizonte não muito distante, desfazendo à noite o que se tenta tecer de dia.

Se houvesse um mínimo de articulação política por parte do governo federal este monstrengo jamais deveria ter visto a luz da manhã. Os custos da inação e da fabricação de crises desnecessárias aparecem precisamente neste fato. A verdade é que o Congresso tem sido até mais colaborativo do que se esperava e Rodrigo Mais, frequentemente objeto da ira presidencial, é o responsável maior por este comportamento.

Falta, porém, a ação mais decidida do presidente e de seu ministro da Casa Civil (quem é mesmo?) para orientar o Congresso. O desleixo de ambos neste aspecto, em contraste com a frenética atividade presidencial para tratar de assuntos secundários na agenda de costumes, expõe de forma clara os preocupantes limites da atual administração.

A unanimidade burra - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 25/06

O mundo virou uma nova caricatura marxista, com novos opressores e oprimidos

Toda unanimidade é burra, já dizia o filósofo Nelson Rodrigues. Mas como resistir a modas que submergem a paisagem com violência apocalíptica?

Décadas atrás, o grande poeta Czesław Miłosz (1911-2004) escreveu a sua "Mente Cativa", uma meditação sobre a forma como os intelectuais poloneses se entregaram nos braços das sereias marxistas.

Contava Miłosz, então no exílio, que essa rendição era voluntária. Só raramente, muito raramente, havia violência estatal.

Os intelectuais marchavam pelo materialismo histórico e engoliam todo o jargão correspondente ("luta de classes", "falsa consciência", "forças de produção" etc.) porque sentiam o medo da irrelevância. Não no sentido mais prosaico de não terem como publicar os seus livros se persistissem no erro do pensamento livre.

Esse medo da irrelevância era de outra ordem: se o marxismo, enquanto teoria científica da história, representava a última palavra na explicação dos assuntos humanos, ninguém queria ficar para trás. Ninguém queria perder esse trem.

No fundo, ninguém queria devotar a vida inteira tentando provar que a Terra era redonda quando Marx e Engels tinham garantido que ela era plana.

Hoje, relendo a prosa que os "intelectuais orgânicos" nos deixaram, percebemos que foram eles os verdadeiros perdedores da história: as suas páginas são monumentos ao vazio, à irrelevância e à estupidez.

Mas é um erro pensar que as sereias da unanimidade burra desapareceram depois da queda do Muro de Berlim. Que o digam Tyler Cowen e Alex Tabarrok, dois professores da Universidade George Mason, que partilharam no seu site Marginal Revolution vários estudos estatísticos sobre as palavras ou expressões que passaram a dominar o New York Times nos últimos anos.

Alguns dos termos são óbvios porque exprimem realidades geopolíticas incontornáveis (ex.: China). Outros foram decrescendo de importância porque a "destruição criativa" do capitalismo não perdoa (ex.: General Motors).

Mas o que mais impressiona na contabilidade são palavras ou expressões que literalmente não existiam --e que explodiram de um dia para o outro, passando a deter uma importância hegemônica.

Anote, leitor: masculinidade tóxica; racismo sistêmico; transfobia; ableísmo; islamofobia; discurso de ódio; "mansplaining"; apropriação cultural; microagressões; "safe space"; "fat shaming"; identidade de gênero; interseccionalidade.

À primeira vista, nada de anormal: novas realidades implicam novos nomes para compreensão e estudo. Sempre assim foi: a história da ciência é também a história da terminologia científica.

O que é anormal, porém, é a predominância de conceitos ou categorias que remetem para fenômenos vitimários, como se o mundo se tivesse transformado numa nova caricatura marxista, com novos opressores e novos oprimidos.

Fato: o proletariado já não existe como sujeito histórico (mentira, claro, o proletariado continua a existir, mas agora vota na extrema direita porque foi abandonado pela esquerda tradicional).

Mas, no seu lugar, existem as mulheres, os negros, os muçulmanos, os gordos, os trans —novas classes de vítimas que sofrem às mãos dos homens, dos brancos, dos cristãos, dos belos, dos hétero.

O fato de essas palavras ou expressões aparecerem em força com o novo milênio, ou seja, depois do colapso do comunismo, só reforça a velha ideia de que nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma. É o mesmo roteiro maniqueísta interpretado por atores diferentes.

E quem fala em marxismo fala em "intelectuais orgânicos": como no passado, e tendo o New York Times como cobaia, eles pensam e escrevem com a cartilha ideológica do momento.

Um filme que não tenha um compromisso com a "inclusividade" é tão herético como era o "sentimentalismo burguês" para os censores do realismo socialista. Um livro com personagens sexistas ou misóginas é tão intolerável como era o formalismo para os sacerdotes da estética moscovita.

Sim, as notícias da morte do marxismo foram manifestamente exageradas. Mas, se a história ensina alguma lição, é que aqueles que marcham com o "espírito do tempo" acabam por desaparecer quando esse espírito desaparece também.

Um dia, olharemos para os dogmas mentais do presente com o mesmo espanto com que olhamos para os dogmas pseudocientíficos do passado.

E a pergunta, inevitável, será semelhante: "Como foi possível escrever e acreditar em tanto lixo?".

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

O capitão bate na mesa - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 25/06

Bolsonaro mostra aos generais quem manda e imobiliza adversários de 2022


Enquanto novas pesquisas de popularidade não vêm, o presidente Jair Bolsonaro bateu na mesa, mostrou aos generais quem manda, manteve seus filhos nomeando pessoas-chave e, engrenando uma segunda, na contramão do que dissera na campanha, deixou claro que vai disputar a reeleição.

Os ambientes e a oportunidade do lançamento à reeleição foram escolhidos a dedo: na cidade onde cresceu, a pequena Eldorado (SP), e na Marcha para Jesus, na capital paulista. Dos 57 milhões de votos que Bolsonaro teve, em torno de 22 milhões são atribuídos aos evangélicos. As imagens só poderiam ser o que foram: festa, aplausos, apoio emocionado.

Quanto à oportunidade: quando o governador João Doria começa a botar as manguinhas de fora, o ministro Sérgio Moro está na palma da mão do presidente e o vice Hamilton Mourão anda quieto como nunca. Detalhe: Bolsonaro falou em reeleição dele, não da chapa dele. Assim, demarcou território, botou os potenciais adversários nos devidos lugares e jogou a isca para seus eleitores e seu rebanho.

Demite um general daqui, outro dali, o capitão presidente está preocupado mesmo é com sua base eleitoral, incluídas as tropas, não os chefes militares. Quando o general Santos Cruz (defenestrado da Secretaria de Governo) acusou o governo de ser “um show de besteiras”, muitos concordaram plenamente, mas Bolsonaro deu de ombros.

Personagem central já na campanha, o também general Augusto Heleno tinha a missão de dar conselhos, segurar os excessos e corrigir erros do presidente como a tal base militar dos EUA. Era assim. Agora, Bolsonaro manda, Heleno escuta. Para completar, Bolsonaro empurrou o general Floriano Peixoto para os Correios e pôs no seu lugar na Secretaria-Geral da Presidência o major PM Jorge Oliveira, amigão da família e ex-assessor do gabinete do “03”, deputado Eduardo Bolsonaro. Trocar um general do Exército por um major da PM na mesma função é esquisito, mas o presidente deu o seu recado: o governo é dele, ele faz o quer.

Outra mudança curiosa foi na articulação política: sai o deputado e chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, entra o general de quatro estrelas da ativa Luiz Eduardo Ramos, outro amigão do presidente. Ninguém aposta um tostão furado na permanência de Onyx por muito tempo no Planalto.

O ministro, porém, não tem do que reclamar. Diferentemente do general Juarez Cunha e do economista Joaquim Levy, ele não foi demitido pela imprensa. E, diferentemente dos generais Santos Cruz e Franklimberg de Freitas, ex-Funai, nem mesmo foi demitido. Vai ficando, comemorando a troca da articulação política pelo PPI, o programa de parceria de investimentos, bem estruturado, com cronograma definido e bilhões de reais à mão. A troca foi boa? Há controvérsias.

De toda forma, Onyx se livrou de um abacaxi, porque, seja um deputado, seja um general da reserva, seja um da ativa, não adianta. O problema da articulação política não é do titular, mas no presidente, que passou 28 anos na Câmara, mas se recusa a fazer política, a boa política.

No Congresso, a pergunta que não quer calar é: por que o presidente descarta o “banco de talentos” indicado por parlamentares, mas um só deputado, o “03”, já nomeou o chanceler, o primeiro e o segundo ministro da Educação, o presidente do BNDES e, agora, o secretário-geral da Presidência?

Câmara e Senado trabalham a pleno vapor, como, justiça seja feita, algumas áreas técnicas do governo. Enquanto isso, o presidente está no palanque, com criancinhas no colo, fazendo flexões, envolto por multidões e metido em camisas do Flamengo. Se a economia se recuperar, pode até dar certo. Se não, parece pouco para garantir a reeleição.

Robin Hood revisitado - FERNÃO LARA MESQUITA

ESTADÃO - 25/06

A desesperança acabou empurrando a latinidade para o pensamento mágico


Robin Hood jamais roubou dos ricos para dar aos pobres. Essa é uma releitura “marxistizada” do herói arquetípico inglês. Robin Hood roubava do Estado para devolver aos pobres o que o Estado lhes tinha roubado. João Sem Terra, o usurpador do trono, e seu odioso coletor de impostos, o xerife de Nottingham, é que eram os seus alvos recorrentes.

Não é um pormenor sem importância. É precisamente aí que os caminhos da humanidade se dividem para nunca mais se reencontrar.

Não é só por questão de gosto que na Inglaterra os castelos (e as igrejas) são de pedra e madeira e os franceses, russos, espanhóis ou portugueses (assim como suas igrejas) são de ouro. Desde a Carta Magna de 1215, o rei inglês vem sendo mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do Parlamento para manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de recursos foi negociado em troca de uma garantia a mais de proteção da propriedade de quem só tinha de seu a força de trabalho contra o poder do rei de tomar para si o produto dele até que, a partir de 1680, o Parlamento já tivesse alcançado a supremacia que tem hoje.

Ao contrário das culturas latinas que da submissão à Igreja saltaram diretamente para a submissão ao absolutismo monárquico onde a propriedade é a peça-chave de um sistema totalitário de opressão, na cultura saxônica o direito de propriedade decorre da luta quase milenar entre os representantes dos despossuídos e um déspota e transforma-se na principal ferramenta de libertação do indivíduo pelo trabalho. Vem com ela a responsabilidade individual, pois, onde a propriedade não é um privilégio dos protegidos do rei, quem a detém é compelido pelo mercado a voltá-la para a melhor satisfação do consumidor, sob pena de perdê-la se for lento ou inepto no processo.

Foi por nunca ter tido vitórias contra o poder estabelecido “por deus” ou pelo sangue que ele tivesse “tornado azul” que a desesperança acabou empurrando a latinidade para o pensamento mágico, moeda da qual são as duas faces o conformismo que se abriga na religião ou as revoluções para “criar uma nova humanidade” depois de afogar a velha em sangue, único meio de atingir “o impossível” com o concurso de um “herói” que leve o povo a superar sua impotência. Inversamente, foi por tê-las obtido sempre, passo a passo e usando instrumentos prosaicos de tão objetivos, que o pensamento saxônico entronizou o “senso comum” como baliza suficiente para referir tudo na vida.

A sorte também é um fator decisivo. A história da Inglaterra teria sido outra, não fossem a libido exacerbada de Henrique VIII e a inflexibilidade da Igreja com o pouco-caso dele para com “o sacramento” do casamento. Ao proibir a religião católica e liberar todas as outras, Henrique VIII atraiu todos os perseguidos da Europa (sempre a gente mais interessante) e, desavisadamente, proporcionou pela primeira vez na História a uma sociedade humana a experiência de conviver pacificamente com a diferença, o que, a par de abrir caminho para a ciência moderna tirando o dogma da frente da experimentação, levou os pensadores ingleses a elevar a tolerância a fundamento básico e inegociável das relações humanas, do que acabou por resultar, quando encontraram um território virgem de privilégios multicentenários para resistir-lhe, mais uma caminhada da democracia sobre a Terra.

O “povo sem rei” da América do Norte pós 1776 veio juntar-se, como únicos exemplos dessa característica desde sempre, aos suíços, que, graças à geografia, nunca tiveram um. Vivendo nas temíveis montanhas entre dois pedaços da Europa cujas passagens só eles conheciam, que aos reis de ambos os lados interessava atravessar a toda hora, foram deixados em paz e passaram ao largo do absolutismo. Inventaram seu sistema federalista a partir de 1291 e, como toda comunidade de iguais, desaguaram naturalmente na democracia para resolver – no voto – os problemas cotidianos da comunidade. Vieram bem até as invasões napoleônicas, quando ficaram sob o jugo da França. Foram, então, beber no modelo americano para restabelecer sua democracia. Desde aí estes dois povos – o suíço e o norte-americano – vêm “trocando figurinhas” para aperfeiçoar suas democracias nos momentos de crise. É na Suíça que, graças à ação concertada de patriotas e jornalistas (que foram em caravana à Europa para entender o sistema de democracia direta praticado por eles e vendê-lo em seu país), os Estados Unidos vão buscar a chave que os levaria a transformarem-se na maior potência do planeta. Já na virada do século 19 para o 20, tão corrompida e desmoralizada junto à opinião pública quanto está a brasileira hoje, a “velha política” americana sofreu um golpe fatal quando um atentado matou o presidente eleito William McKinley nos primeiros dias de seu mandato, tirando Theodore Roosevelt do “exílio” da vice-presidência em que o tinha metido um golpe articulado pelas velhas raposas do Partido Republicano. Foi com ele que as ferramentas de democracia direta puderam ser apresentadas ao país de cima de sua tribuna mais alta e ganhar o impulso que as fez avançar por todo o século 20 e até hoje.

Dividido desde sempre entre sua “americanidade”, vivida ao longo dos quatro séculos em que não fomos mais que vilas isoladas cujas câmaras municipais eleitas tinham de prover todas as necessidades da comunidade, de que são filhas a Conjuração Mineira, as rebeliões federalistas pernambucanas, a República sonhada do “Manifesto” de Itu e o curto interregno de Prudente de Morais e Rui Barbosa, em que foi plantado o precário arcabouço jurídico em que se agarra até hoje a livre iniciativa no Brasil, e a corrupção sistêmica dos últimos estertores do absolutismo decadente que invadiu o Rio de Janeiro em 1808 de que são filhos a República Real, golpeada ao nascer pelos positivistas, o getulismo que o entronizou no poder, o lulismo e a terra arrasada que aí está.

Distante quanto possa parecer hoje, o DNA brasileiro é democrático. Tem-nos faltado a ajuda decisiva da sorte.

 FERNÃO LARA MESQUITA É JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

O espírito do tempo lavajatista - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 25/06

A vida pública entre nós foi arrestada pela cultura do denuncismo


Não há dúvida de que o material sob posse do site Intercept tem de ser periciado. Como acusar suspeição de alguém — no caso, o ex-juiz Sergio Moro — sem comprovar a integridade do arquivo que se quer como fundamento à imputação? A chancela de autenticidade do conjunto é de interesse público tanto quanto o conteúdo dos diálogos; e a incerteza a respeito é mais um elemento a agravar o ambiente de insegurança, de instabilidade, que refreia a capacidade produtiva do país.

Até que a veracidade das mensagens seja confirmada, sobre seu manuseio editorial — e editorializado — sempre pairará o senão que decorre da possibilidade de fraude.

Tampouco se pode absorver as informações ora publicadas sem antes refletir sobre a natureza de um jornalismo cuja atividade se confunde com o ritmo de um folhetim. Qual a ideia? Liberar capítulos até conseguir abalar o governo, como se o tremor deste não fosse também do Brasil? A falta de transparência no manejo do pacote autoriza essa indagação.

Não se deve tapar os olhos para o que já configura um padrão: divulgações ministradas a conta-gotas e de modo reativo, como resposta mesmo aos movimentos dos agentes da operação Lava-Jato, tal qual fossem não objetos de uma reportagem impessoal, mas adversários na cancha da política. Incomoda-me a ideia de o jornalismo ser exercido como um jogo, e um em que o blefe, talvez a ameaça, seja recurso editorial.

Ressalva nenhuma, porém, mitigará — não nesta coluna — a leitura do que vai nas conversas entre Moro e Deltan Dallagnol. Não é bom. E não pode ser recebido como surpreendente. Há uma história aí. Escrevo com tranquilidade a respeito: nunca relativizei a gravidade de haver o então juiz Moro, ainda em 2016, levantado o sigilo de telefonemas entre Dilma Rousseff e Lula para deliberadamente interferir no processo político. Aquilo fora uma exorbitância. Glenn Greenwald decerto concordava. Havia já um padrão — também um padrão — nos procedimentos da Lava-Jato. Um paradigma de militância sob o qual, para o fim de combater a corrupção, seria normal um magistrado, falando a um procurador, referir-se à atividade da defesa, parte numa ação que julgava, como “showzinho”.

A circunstância de haver bandidos pretendendo se beneficiar das revelações não torna os fatos inexistentes nem transforma erros em acertos. Mais do que evidenciar a inquestionável ascendência de um magistrado sobre membros do Ministério Público, como se houvesse hierarquia entre eles, o exame dos diálogos mostra um juiz que tomara lado. É inequívoco. Não me sinto apto, contudo, para avaliar quais as possíveis consequências jurídicas dessa constatação.

Interessa-me, neste artigo, olhar para o terreno em que tudo isso, como se fosse um avanço civilizacional, desdobrou-se. Trato, aqui, do espírito do tempo — o que anima tanto a força-tarefa de Curitiba quanto a do Intercept. O fenômeno lavajatista, subproduto jacobinista da Lava-Jato, é um marco revolucionário, impositivo, nas relações sociais do Brasil. Não faço elogio. Sob o discurso influente do hiperativismo, abriu-se — institucionalizou-se — a janela para a anarquia de meios em prol de uma causa, o vale-tudo justiceiro, aquele que aponta para o estado policial, não raro avalizado pelo Supremo e com histérica defesa de certo jornalismo.

Como já escrevi: se um togado pode extrapolar, se um procurador pode, todo mundo pode. Sempre haverá um hacker para desbravar nova fronteira. Porque causa, ora, todo mundo tem uma... Greenwald tem. Impossível prever onde isso vai parar.

A vida pública entre nós — está dado — foi arrestada pela cultura do denuncismo, que prospera facilmente numa sociedade em que o ressentimento é categoria de pensamento e a figura do vingador, modelo de conduta moral. A marcha é pública. O advento positivo da ferramenta conhecida como delação premiada, por exemplo, logo deturpou-se em máquina moedora de reputações — a palavra de um bandido confesso, sujeito em busca de se safar, de repente convertida em prova per se contra outrem não raro nem sequer investigado. A ascensão fulminante da indústria do vazamento seletivo de dados sigilosos alimentou a forja de linchadores, amolou a adaga do justiçamento nas redes e, banalizando, até criminalizando, o devido processo legal, antecipou-se para condenar indiscriminadamente ao mesmo tempo em que esculpia — elegia — heróis e mitos.

Mas, repito, sendo impossível prever onde isso parará, acrescento que era previsível supor, com o mínimo de prudência, que não haveria poupados —nem os heróis nem os mitos, e nem os filhos dos mitos. Aqui estamos. E quem se deliciava quando a rajada da barbárie enchia a própria vela ideológica agora que rebole para reclamar e disfarçar a cara de pau do oportunismo.

A vertigem do lulismo - JOEL PINHEIRO DA FONSECA

FOLHA DE SP - 25/06

Corrupção, fraude contábil e recessão foram a receita perfeita para a derrota

Não chorei assistindo a “Democracia em Vertigem”. Senti pena por todos os que compram a fantasia ali vendida. A voz lamuriosa da narradora dá a medida de sua impotência perante a ascensão da direita. A história trágica do Lula-herói que foi obrigado a ceder a práticas corruptas da velha política para levar adiante um projeto inclusivo de país, sendo impedido por uma mutreta da malvada elite, simplesmente não cola. E enquanto a esquerda insistir nela seguirá incapaz de se reinventar.

O PT não era um partido puro que, uma vez no poder, se deixou corromper para ter alguma governabilidade. Já nos anos 1990 o partido comandava o esquema de propina de empresas de transporte no ABC Paulista, numa relação entre políticos e empresários em tudo igual ao que tantos outros partidos fazem Brasil afora. Em seus anos no poder, o PT elevou esses esquemas de propina à escala internacional. Trouxe uma nova ordem de grandeza e profissionalismo ao que já era prática corrente. Nisso, o discurso ideológico radical foi uma ferramenta perfeita, capaz de cegar militantes e apoiadores (como Petra Costa, que dirige o filme).

Há duas possibilidades de “leitura” dos abusos da Operação Lava Jato, que pôs fim ao esquema: uma é a de que se direcionaram contra a classe política como um todo, passando por cima de regras e garantias legais para prender poderosos e alimentar a vaidade (e, quem sabe, a ambição política) de juízes e procuradores que se veem como heróis numa missão divina. A outra é que a Lava Jato é um projeto político da direita para extirpar a esquerda do poder. Essa segunda visão, obrigatória nos meios petistas, não é ajudada pelo fato de que cada um daqueles que antes era apontado como o grande beneficiário da operação (Aécio, Cunha, Temer, o PSDB) foi, por sua vez, também alvo de investigações e até prisão.

Para defender essa segunda versão, é necessário acreditar que o governo Dilma de fato trabalhava pelos pobres, enquanto a oposição defendia o interesse dos ricos. Assim, é imperdoável discutir os anos PT e a queda do governo Dilma sem olhar de frente sua política econômica.

Crédito subsidiado, proteção estatal e isenção fiscal a grandes empresas. Políticas sociais midiáticas mas de pouco efeito prático, como o Ciência Sem Fronteiras e a expansão descontrolada do Fies, que também serviu para engordar o caixa de empresários. Gastos públicos fora de controle, gerando déficits crescentes (em resposta aos quais vieram as pedaladas). Aposta no consumo e na redução dos juros na marra, ao mesmo tempo em que negligenciou o investimento de longo prazo em educação, infraestrutura, produtividade e a necessidade de melhorar o ambiente econômico. O resultado foi a maior crise econômica da nossa história, chegando a 13 milhões de desempregados.

O PT não foi o inventor da corrupção nem é o único mal do país. Teve erros e também acertos (o Bolsa Família, o Mais Médicos). No entanto, não entender como seus desvios éticos e econômicos ajudaram a produzir a crise econômica e política, e a reação popular a ela, é escolher o conforto impotente da fantasia.

Bancos e Fiesp deitaram e rolaram nos anos Dilma. O amor só acabou quando a fonte secou. Corrupção, fraude contábil e recessão foram a receita perfeita para a derrota não apenas nos tribunais, mas também nas urnas. Dilma não conseguiu nem sequer se eleger senadora. Enquanto a esquerda fingir que foi golpeada pela elite, será incapaz de conquistar o povo.

Joel Pinheiro da Fonseca
Economista, mestre em filosofia pela USP.

A Bíblia ou a lei? - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 25/06

Não dá para sustentar a tese de que as regras morais são eternas e imutáveis

“Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticaram um ato repugnante. Terão que ser executados, pois merecem a morte.” Isso é provavelmente o mais perto que a palavra escrita pode chegar da incitação ao crime. Constitui, a meu ver, uma clara violação ao artigo 20 da Lei Antirracismo (7.716), que, por decisão recente do STF, passou a punir também o preconceito contra homossexuais, e não só em relação a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, como constava da redação anterior.

O problema da passagem acima é que ela está na Bíblia, mais especificamente em Levítico 20:13. E não é só a crimes contra homossexuais que o “livro bom” incita. Ele também manda matar quem tenha mudado de religião (Deuteronômio 13:7) e quem apenas pertença à etnia errada, caso dos amalequitas (1 Samuel 15:1). Diga-se em favor das Escrituras que elas são ecumênicas em seus preconceitos.

Como devemos agir? Aplicar a ferro e fogo as determinações da lei exigiria censurar a Bíblia ou, pelo menos, impedir pregadores de ler certas passagens em público. Seria engraçado ver o Supremo decidindo quais os trechos legais e quais os ilegais da chamada palavra de Deus.

Outra saída é buscar uma conciliação entre o texto bíblico antigo e a moralidade contemporânea. É o que tentam fazer grupos religiosos como o Gente de Fé Contra a LGBTfobia, que esteve na Parada Gay do último domingo. É por certo a posição mais razoável, mas ela cria algum ruído, à medida que exige que finjamos que certas passagens da Bíblia não existem. E não convence àqueles que insistem numa leitura literal das Escrituras.

O fulcro da questão é que não dá, hoje em dia, para sustentar a tese de que as regras morais são eternas e imutáveis. Mas, quando deixamos de fazê-lo, enfraquecemos bastante a ideia de um Deus onisciente —algo que boa parte dos religiosos não tolera.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…

Nos negócios com Cuba, Brasil ficou sem o dinheiro e os charutos - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 25/06

Critérios bancários foram manipulados

Foi numa quarta-feira de fevereiro, véspera do carnaval de 2010. Em Brasília, seis ministros se reuniram para referendar uma “decisão de Estado” tomada no Palácio do Planalto. Em pouco mais de meia hora, aprovaram um socorro de US$ 4,9 bilhões a Cuba, o equivalente a 10% do Produto Interno Bruto do país na época.

Foi uma das maiores operações de “apoio financeiro” a governo estrangeiro com subsídios do Tesouro brasileiro. Da memória desse crédito, restou apenas a ata (Camex/LXX) assinada por ministros do Itamaraty, Planejamento, Indústria e Comércio, Agricultura, Desenvolvimento Agrário e um representante da Fazenda.

Não existe registro de qualquer fato que motivasse, nem sequer uma justificativa jurídica dessa “decisão de Estado” — concluíram técnicos do Tribunal de Contas da União depois de vasculhar a papelada de seis organismos governamentais envolvidos.

Há outras 140 operações de crédito externo similares, entre 2003 e 2015, em benefício dos governos de Venezuela, Angola, Moçambique, Bolívia e Guiné Equatorial, entre outros. Seguiu-se um padrão: critérios bancários foram manipulados, para “adequar” a capacidade de pagamento dos governos beneficiários; financiamentos concedidos “sem prévios estudos técnicos”, ou quaisquer justificativas jurídicas.

Sempre havia uma empreiteira brasileira interessada, quase sempre a Odebrecht, que na semana passada recebeu proteção judicial contra a cobrança de US$ 26 bilhões em dívidas não pagas — um dos maiores calotes domésticos.

Foram 12 anos de vale-tudo, como ocorreu com os US$ 800 milhões para o Porto de Mariel, em Cuba, erguido pela Odebrecht. O crédito subsidiado brasileiro teve prazo de 25 anos, o dobro do permitido. O governo de Cuba apresentou uma única garantia: papéis (recebíveis) da indústria local de tabaco depositados num banco estatal cubano.

O Brasil deu US$ 4,9 bilhões a Cuba. Financiou até um porto no Caribe e aceitou em caução o caixa da venda de charutos. Acabou sem o dinheiro e sem os “Cohiba Espléndido”, “Montecristo Nº 2”, “Partagás 8-9-8”...

BNDES, o que fazer? - GUSTAVO LOYOLA

Valor Econômico - 25/06
Há espaço para atuação do banco, desde que para complementar o papel do mercado privado de crédito


A ruidosa saída de Joaquim Levy da presidência do BNDES pôs a nu a ausência de estratégia do governo Bolsonaro em relação à instituição. Até aqui, como exceção, o único objetivo explicitado pelo Ministério da Economia em relação ao banco é o de obter o máximo de devolução dos recursos que lhe foram emprestados pelo Tesouro durante a tenebrosa gestão petista. Além disso, Bolsonaro e seu entorno querem a abertura da "caixa preta" da instituição, seja lá o que isso significa.

Deve ser reconhecido que na administração de Michel Temer houve avanços importantes em relação ao banco, com a correção de algumas das distorções acumuladas nas gestões anteriores. Além do início da devolução de recursos ao Tesouro, a criação da TLP em substituição à TJLP e a cessação de linhas de crédito a taxas prefixadas subsidiadas praticamente eliminaram as principais fontes de subsídio nas novas operações da instituição.

Como consequência, os desembolsos do banco caíram do pico de R$ 190 bilhões em 2013 para cerca de R$ 70 bilhões no ano passado, o menor nível nominal desde 2007. Tais ajustes nas condições das operações do BNDES e a queda da taxa básica de juros tornaram o mercado de capitais uma opção mais favorável notadamente para as grandes empresas, como indica o expressivo aumento das emissões de debêntures e outros títulos privados de renda fixa no biênio 2017-2018.

Em razão disso, o novo governo encontrou o BNDES em melhores condições para contribuir de maneira responsável para o crescimento sustentado da economia brasileira, exercendo um papel complementar ao mercado de crédito privado, e não mais o substituindo e inibindo como ocorria durante o interregno petista. A indicação do ex-ministro Levy pareceu um bom começo, tendo em vista as qualificações do economista. Infelizmente, a ele não foi dada a oportunidade de reposicionar o banco no contexto de uma agenda econômica liberal patrocinada pelo ministro Paulo Guedes.

A nomeação recente do secretário adjunto de desestatização, Gustavo Montezano, para a presidência do BNDES parece sinalizar a intenção do governo de que o banco desempenhe um papel de relevo na política de privatização do governo federal, nos moldes de sua atuação durante os governos Collor, Itamar e FHC. Entendo que o uso da instituição como agente do processo de privatização seria uma opção acertada, haja vista a qualidade e experiência de seu corpo técnico vis-a-vis outros setores da burocracia federal. Porém, numa visão de médio e longo prazos, o banco necessita ter outros objetivos estratégicos, tendo em vista o caráter exaustivo e temporalmente limitado da venda de ativos produtivos do setor público.

Nesse sentido, cabe ao novo presidente da instituição aportar ao BNDES uma perspectiva mais de longo prazo, que vá muito além da devolução dos recursos emprestados pelo Tesouro e da participação do banco no processo de desestatização, sem minimizar, é claro, a importância desses objetivos para a gestão macroeconômica e para a reforma do Estado.

Numa visão liberal mais extrema, não haveria espaço para a existência de um BNDES. Bastaria, no máximo, uma correta (e módica) regulação do Estado para que o mercado financeiro e de capitais desempenhassem bem suas funções alocativas, maximizando o retorno social e alavancando o crescimento da produtividade. Mas no mundo real existem falhas de mercado e externalidades que continuarão a justificar a existência de uma instituição como o BNDES, ainda que uma "revolução liberal" atinja a economia brasileira na próxima década.

Nessas condições, um bom programa para o BNDES nos próximos anos deveria focar a atuação da instituição em situações em que sejam identificadas falhas de mercado, ao tempo que o banco deveria deixar definitivamente de representar um peso e um risco adicional para as finanças públicas. Com esses balizamentos, o BNDES não teria o gigantismo patológico que adquiriu durante a gestão do PT, mas poderia contribuir de maneira muito mais efetiva para o crescimento econômico do país.

Do lado de seu "funding", deveria ser expressamente vedada a captação de recursos, sob qualquer modalidade, pelo banco junto ao Tesouro Nacional, assim como a concessão de garantias deste nas operações da instituição (como ocorreu no malfadado financiamento a Cuba). Caberia ao Tesouro apenas assegurar a capitalização adequada do banco, que deveria obedecer integralmente às normas prudenciais fixadas pelo Banco Central para as instituições bancárias. Nesse contexto, não vejo como negativa a proposta do relator da reforma da previdência de cessar os repasses do FAT ao banco; o equívoco é considerar que o desvio de tais recursos para a previdência seja substituto da reforma dos regimes de benefícios.

Quanto a suas operações de crédito, é possível identificar várias situações em que a atuação do BNDES pode adicionar valor e contribuir para melhorar o desempenho da economia e reduzir as desigualdades. Um exemplo é o setor de saneamento, onde há claras externalidades positivas no campo da saúde pública. A participação em operações de financiamento a investimentos em infraestrutura também deveria estar no foco do banco, muito embora aqui especialmente se deva ter atenção para não se desestimular o fluxo de recursos do mercado de crédito privado.

Em suma, há espaço de sobra para a atuação do BNDES nas próximas décadas, desde que focada em complementar o papel do mercado privado de crédito, abandonando de vez a veleidade de o substituir, como vimos na sua mal-sucedida experiência recente.


Não está no mundo - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 25/06


Bolsonaro só tem a ganhar com o apoio à Lava-Jato. Montou-se novamente o clima de combate à corrupção


O argumento para o adiamento do julgamento na Segunda Turma do STF do habeas corpus a favor do ex-presidente Lula, baseado na suspeição do então juiz Sérgio Moro, não parece plausível. A alegação de que não haveria tempo para o julgamento, pois o processo de Lula estava em último numa fila de mais 10 processos, não corresponde ao cotidiano das Turmas do Supremo, que analisam às vezes até 30 processos num dia.

O fato é que ministros estão incomodados com a ilegalidade das novas provas, diálogos publicados pelo site Intercept Brasil entre Moro e o chefe dos procuradores de Curitiba Deltan Dallagnol. A questão é tão difícil que nem mesmo a defesa de Lula apensou os diálogos ao pedido anterior, havendo uma interpretação de que provas ilegais podem ser usadas para beneficiar o réu.

É possível que, quando retomarem o julgamento, no segundo semestre, algum ministro proponha à Segunda Turma levar o caso para o plenário do STF. O ministro Facchin, como relator, pode decidir monocraticamente, mesmo já tendo votado.

Várias vezes o STF, e também o Superior Tribunal de Justiça (STJ), negaram pedido semelhante, embora por motivos diferentes. Desta vez, a alegação da defesa de Lula é que, ao aceitar ser ministro de Bolsonaro, Moro havia demonstrado sua parcialidade. Os diálogos não estão nos autos. E o que não está nos autos, não está no mundo, como diz um provérbio jurídico com origem no Direito romano.

Antes das revelações do Intercept Brasil, o ministro Edson Fachin considerou que a defesa deveria ter apresentado o pedido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ressaltando que o Supremo já havia negado o habeas corpus em outras ocasiões.

A ministra Cármen Lúcia, que hoje preside a Segunda Turma, afirmou que o fato de Moro ter aceitado o convite para o novo governo não pode ser considerado, por si só, prova suficiente de sua parcialidade.

O julgamento está cercado de fatores políticos, à revelia dos ministros do STF, que o tornam mais delicado do que normalmente já é, por tratar-se de um ex-presidente da República.

Embora o ministro Sérgio Moro tenha sido atingido pelas suspeitas lançadas pelos supostos diálogos, mesmo que não tenham comprovação de veracidade, a Operação Lava-Jato não perdeu o apoio popular, e Moro é o ministro mais popular do governo.

O presidente Bolsonaro desde o início bancou o apoio a seu ministro, visto como um Super-Homem pelas ruas. Esse é um trunfo político que Moro tem, no momento em que a definição do caso parece ser mais política do que jurídica.

Bolsonaro, por sua vez, só tem a ganhar com o apoio à Lava-Jato. Montou-se novamente na sociedade o clima de combate à corrupção contra o petismo. Nesse contexto, a libertação do ex-presidente pode ser interpretada pela maioria da população como leniência com a corrupção.

O general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, que indicou dois generais para assessorar o presidente do STF, Dias Toffoli, voltou ao Twitter fazer defesa enfática de Sergio Moro assim que os primeiros diálogos foram publicados. Como tinha feito anteriormente, antes do julgamento pelo pleno do STF de um habeas corpus para Lula.

“Momento preocupante o que estamos vivendo, porque dá margem a que a insensatez e o oportunismo tentem esvaziar a Operação Lava Jato, que é a esperança para que a dinâmica das relações institucionais em nosso país venha a transcorrer no ambiente marcado pela ética e pelo respeito ao interesse público. Expresso o respeito e a confiança no Ministro Sergio Moro.”

Dias depois, o general Augusto Heleno, Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) deu uma declaração pública contra Lula em um café da manhã que Bolsonaro oferece a jornalistas no Palácio do Planalto. Com direito a soco na mesa e à afirmação de que Lula merecia pegar prisão perpétua, pena que não existe no Brasil.

Toffoli nomeou seu assessor o general Fernando Azevedo e Silva, que depois foi chamado por Bolsonaro para ser ministro da Defesa. Na posse, agradeceu ao presidente do Supremo e à Procuradora-Geral da República Raquel Dodge “a disposição de atuar como catalisadores da estabilidade institucional de que o país tanto precisa".

O substituto no STF é o general Ajax Porto Pinheiro, um dos ex-comandantes das tropas da missão de paz da Organização das Nações Unidas no Haiti, como tantos outros militares que atuam no governo Bolsonaro.

É essa “estabilidade institucional” que está em jogo no julgamento do Supremo.


A preciosa segurança cambial - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 25/06

Em vez de liquidar ativos cambiais, convém cuidar do poder de competição da produção nacional, aumentar a integração global e acelerar o crescimento econômico

O vigor do agronegócio, a confiança do investidor estrangeiro e também a estagnação do País continuam garantido a segurança das contas externas, uma bênção para um governo forçado a executar complicados ajustes e reformas. O mais visível é o segundo fator. Os US$ 96,57 bilhões de investimento direto cobririam quase sete vezes o buraco de US$ 13,92 bilhões aberto, nos 12 meses até maio, nas transações correntes do balanço de pagamentos. Aplicado em projetos e empresas, aquele dinheiro é a fonte mais produtiva e mais segura de financiamento desse tipo de déficit. O investidor de fora continua, portanto, apostando na reativação brasileira e no retorno à prosperidade, provavelmente depois da reforma da Previdência.

O outro fator positivo, o sucesso do agronegócio no mercado internacional, também garante o ingresso de muito dinheiro. O setor acumulou US$ 33,85 bilhões de superávit comercial entre janeiro e maio deste ano e US$ 86,66 bilhões em 12 meses. Isso assegurou um sólido resultado no comércio de mercadorias, suficiente para compensar em boa parte os saldos negativos das contas de serviços e de rendas, tradicionalmente deficitárias.

Somadas essas contas, chega-se ao déficit de US$ 13,92 bilhões acumulado em 12 meses nas transações correntes, ou de US$ 7,58 bilhões nos primeiros cinco meses de 2019. Em maio, esta conta mais ampla foi fechada com superávit de US$ 662 milhões, mas esse é um resultado sazonal, explicável principalmente pelas grandes exportações de produtos do agronegócio no segundo trimestre de cada ano.

O último dos três fatores, o único negativo, também é facilmente explicável. A economia estagnada, com cerca de 13 milhões de desempregados e níveis baixos de consumo e de investimento em máquinas e equipamentos, funciona como freio das importações de bens e serviços. Além disso, o câmbio desvalorizado desestimula os gastos em viagens.

Portanto, também esse dado negativo é parte da explicação de um fato muito conveniente, a segurança das contas externas. O déficit em transações correntes equivale a 1% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para os primeiros cinco meses de 2019. O investimento estrangeiro direto corresponde a 4,64%. A folga foi até maior nos 12 meses até maio, quando o déficit ficou em apenas 0,75% do PIB e o investimento direto alcançou 5,19%.

O bom resultado nas transações correntes tem permitido preservar, e ocasionalmente aumentar, o volume de reservas internacionais. O País dispunha em maio de US$ 386,16 bilhões, suficientes para pagar 56,8% da dívida externa, se a rolagem ficasse difícil e fosse necessário recorrer a reservas para uma liquidação em prazo muito curto – uma situação altamente improvável. Mas é imprudente menosprezar mesmo os perigos pouco prováveis, quando o quadro internacional é inseguro, as finanças públicas vão mal e a atividade econômica já é muito baixa.

De vez em quando alguém sugere vender moedas fortes e usar a receita para liquidar parte da dívida pública. Essa proposta já foi ensaiada por gente do atual governo. O custo de manutenção de um grande volume de reservas também é mencionado, ocasionalmente, como argumento. É mais prudente esquecer recomendações como essas.

Reservas cambiais volumosas são uma segurança especialmente importante para um país em precária situação fiscal e com enormes desajustes econômicos. Além disso, vender ativos – de qualquer natureza – está longe de ser uma solução para a dívida pública enquanto faltarem outros ajustes. Nesse caso, a dívida simplesmente voltará a crescer.

Em vez de liquidar ativos cambiais, convém cuidar do poder de competição da produção nacional, para tornar as contas externas mais seguras, aumentar a integração no mercado global e acelerar o crescimento econômico. Isso envolve muito mais que a reforma das aposentadorias e o ajuste das contas públicas, medidas essenciais, mas insuficientes para dinamizar o País. O governo continua devendo um plano claro, detalhado e bem articulado para a construção de uma prosperidade duradoura.

Por conta própria - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 25/06

Cresce no país ingresso de mais escolarizados no trabalho autônomo


As estatísticas do emprego no Brasil mostram expressiva quantidade de trabalhadores por conta própria, o que no mais das vezes descreve situações de precariedade laboral e baixa qualificação. Entretanto há sinais de mudança no perfil desse contingente.

São quase 24 milhões de autônomos —à falta de palavra melhor para definir uma miríade de casos tão diferentes quanto os de profissionais liberais de renda elevada, motoristas de aplicativos de transporte e vendedores ambulantes que operam na informalidade.

Trata-se de mais que o dobro do número de empregados no setor público, por exemplo. Na iniciativa privada, os assalariados com e sem carteira assinada somam pouco mais de 44 milhões, naturalmente o maior segmento do mercado.

Com a recessão de 2014-16 e o período posterior de quase estagnação da economia, caiu a participação de celetistas e elevou-se substancialmente o desemprego. Um outro fenômeno, a demandar estudo mais detalhado, é o aumento da escolaridade dos trabalhadores por conta própria.

Conforme noticiou esta Folha, um levantamento feito por Sergio Firpo e Alysson Portella, do Insper, revelou que, nesse grupo, a parcela dos profissionais com nível superior saltou de 9,6%, no início de 2012, para 17,7% neste 2019.
Cresceu também a fatia dos que cursaram o ensino médio, de 26,3% para 35,6% no mesmo período.
Parece intuitiva a hipótese de que boa parte da elitização desse estrato se deva a uma espécie de empreendedorismo forçado: dada a piora da oferta de trabalho assalariado, mais pessoas escolarizadas trataram de criar seu próprio negócio —ou tiveram de migrar para algum ofício com menor exigência de qualificação.
Infelizmente ainda não há como quantificar esses casos e os de profissionais que em qualquer cenário optariam por não ter um patrão e assumirem sozinhos os riscos e os ganhos de sua atividade.

Certo é que o Brasil precisa proporcionar a todos um ambiente mais favorável à livre iniciativa. A despeito de relevantes progressos recentes, o país ainda ocupa a 109ª colocação, entre 190, no ranking do Banco Mundial que avalia a facilidade para empreender.

Há uma medida provisória em tramitação no Congresso que busca, entre outros objetivos corretos, reduzir a burocracia para a abertura de empresas. A agenda se mostra crucial, mas o uso de MP, que expira se não for votada em quatro meses, põe em risco a análise aprofundada que a proposta merece.