Nas democracias ocidentais, a lei foi invadindo todos os aspectos da vida humana
Vive e aprende, João. Leio na revista Time que o Reino Unido decidiu banir propaganda publicitária que perpetue "estereótipos de gênero". O leitor conhece: imagens de homens lendo o jornal no sofá da sala enquanto a mulher limpa a casa.
Esses estereótipos, segundo a Advertising Standards Authority, promovem a desigualdade entre os sexos (ou entre os gêneros, sei lá) e podem afetar negativamente a autopercepção das pessoas.
O mesmo vale para publicidade com crianças: rapazes sonhando com uma carreira na engenharia ou meninas sonhando com uma carreira no balé são possibilidades interditas. Imagino que o inverso já não seja problemático.
Angelo Abu/Folhapress
À primeira vista, a minha reação instintiva seria escrever que a lei se vergou à demência. Um homem, ou uma mulher, que se sente atingido na sua dignidade por causa de uma campanha publicitária está a precisar de tratamento, não de chamar a polícia.
Mas é preciso olhar para este caso anedótico como expressão de uma tendência mais vasta: a forma como, nas democracias ocidentais, a lei foi invadindo todos os aspectos da vida humana, produzindo uma forma de tirania que, no limite, põe em risco a própria democracia liberal.
Já tinha pensado no assunto várias vezes, sobretudo em questões de liberdade de expressão. Mas Jonathan Sumption, juiz da Suprema Corte no Reino Unido, pensou melhor: proferiu as famosas Reith Lectures de 2019, que podem ser escutadas no canal 4 da BBC, e foi direto ao ponto.
Até o século 19, argumentou Lord Sumption, grande parte das interações sociais eram governadas pelo costume e pela convenção. A lei, para seguirmos a formulação de John Locke, ocupava-se dessa trilogia sagrada que dá pelo nome de "vida, liberdade e propriedade".
Sim, seria ingenuidade pensar que, atendendo à complexidade da vida moderna, a fúria legislativa ficasse por aí.
Mas havia pelo menos um entendimento básico de que a criminalização de algo implicava um consenso moral sobre certos comportamentos. A maioria era contrária ao estupro, ao roubo, ao homicídio. A lei era a expressão desse entendimento majoritário.
Hoje, o império da lei mete o nariz em tudo que mexe. E, quando não existe consenso para que a lei tome forma, ela própria cria e impõe esse consenso.
Para regressarmos ao episódio dos "estereótipos de gênero", nada autoriza que os mesmos sejam criminalizados. Não apenas porque isso representa um ataque à liberdade de expressão; mas porque esses estereótipos não são sentidos pela esmagadora maioria como um problema moral de primeira ordem, comparável ao estupro ou ao homicídio.
"Estereótipos de gênero", como qualquer estereótipo, podem ser uma questão de mau gosto, grosseria, estupidez. Mas exigir que a lei intervenha em questões de gosto ou educação tem consequências nefastas.
Duas, segundo Jonathan Sumption. Para começar, as nossas sociedades, que gostam de se imaginar muito pluralistas e tolerantes, estão a regredir moralmente no tempo: fazem lembrar as sociedades pré-modernas na sua demanda por absolutismos morais.
A busca desesperada, dir-se-ia até histérica, de soluções legais para todos os problemas, todos os dilemas, todas as discórdias que existem no espaço público está em perfeita sintonia com o "ethos" das sociedades arcaicas ou teocráticas. O horror à dissensão é o mesmo. A idolatria do dogma e do tabu também.
Por outro lado, essa busca de uma segurança legal ilimitada é um convite para que o espaço público invada todo o espaço privado.
As ditaduras eram ótimas nesse abuso. A "ditadura legalista" em curso cumpre o mesmo propósito ao silenciar os indivíduos em nome da coletividade. Isso pode ser útil em certos casos?
Jonathan Sumption, um herdeiro de John Stuart Mill (1806-1873), admite que sim. Mas são casos em que existe um perigo claro para terceiros --por exemplo, discursos que incitam à violência direta contra grupos ou pessoas específicos.
Meras opiniões, por mais indigestas ou ofensivas que sejam, não cumprem esses mínimos olímpicos.
As palestras de Jonathan Sumption são um prodígio de racionalidade, erudição e coragem.
E são sobretudo um aviso: quando pedimos ao Estado para fazer sempre mais e mais e mais —"deveria haver uma lei para isso", eis o tique mental do nosso tempo— é a liberdade dos cidadãos que recua mais um pouco.
Até o dia em que desaparece da paisagem.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.