segunda-feira, maio 20, 2019

O desabafo de Bolsonaro - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 20/05

Se o Brasil realmente não é para principiantes, tampouco é ingovernável sem ceder às corporações


Na manhã de sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro divulgou, em grupos de WhatsApp dos quais faz parte, um texto atribuído a um autor anônimo – depois identificado como Paulo Portinho, analista da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e filiado ao Partido Novo – que descreve as dificuldades que Bolsonaro vem encontrando para governar e para implantar as plataformas de campanha que a população escolheu em outubro de 2018. Um diagnóstico extremamente preocupante, menos pelo quadro deprimente que pinta e mais porque ele mostra uma compreensão bastante equivocada do jogo democrático e do que significa governar – e nos permite perguntar até que ponto o próprio Bolsonaro compartilha desse equívoco, apesar de suas décadas de experiência como parlamentar.

O texto, cuja íntegra também foi publicada pela Gazeta do Povo, tem todo um tom de denúncia contra o que Portinho chama de “corporações com acesso privilegiado ao orçamento público”, e que seriam as verdadeiras donas do país: “não só políticos, mas servidores-sindicalistas, sindicalistas de toga e grupos empresariais bem posicionados nas teias de poder”. A constatação é a de que qualquer presidente teria de se dobrar a esses grupos; sempre foi, é e sempre será assim, parece dizer o autor.

Está aqui o primeiro grande equívoco sobre como funciona uma democracia. Por esta visão, existiria apenas o povo, puro, imaculado, que deseja o melhor para o país, e, do outro lado, grupos de pressão com interesses sempre espúrios, que desejam apenas o melhor para si mesmos. Um erro primário e que desconsidera a própria dinâmica da democracia, que se constrói no embate civilizado entre interesses diversos e, na imensa maioria das vezes, legítimos. Quando um grupo de pessoas se une para defender uma ideia ou pleitear algo junto ao poder público, apresentando seus argumentos e elegendo representantes que deem força a essas ideias e plataformas, nada mais faz que colocar em funcionamento a máquina da democracia. É assim não apenas no Brasil, mas em qualquer país democrático.

Existem interesses e métodos espúrios? Sem dúvida que há. Quando políticos vendem sua consciência e seus votos em troca de cargos e privilégios, quando empresários se unem em esquemas de corrupção, estamos diante do quadro pintado pelo autor anônimo do texto compartilhado por Bolsonaro. Mas, quando servidores públicos se opõem a reformas que julgam prejudiciais, quando setores do empresariado pleiteiam determinada medida que os beneficie, até mesmo quando estudantes invadem uma escola para protestar contra alguma mudança no sistema educacional, as ideias podem estar equivocadas, as medidas que beneficiam alguns podem acabar prejudicando a maioria, os métodos podem ser profundamente condenáveis e antidemocráticos, mas não se pode, de forma alguma, igualar suas motivações às do primeiro grupo, como se todos agissem movidos apenas por razões inconfessáveis.

Ao colocar todos os grupos e interesses em um mesmo balaio, Bolsonaro desmente a própria trajetória e antagoniza até mesmo aqueles que o ajudaram a fazer dele o presidente do país. Quando buscou o apoio de bancadas temáticas para construir apoio parlamentar, logo depois da eleição, não estava lidando com pessoas unidas por uma plataforma? Quando assina importantes e necessárias medidas que tiram a carga estatal dos ombros do empreendedor, não está também respondendo a um pleito da parte de quem produz? E não são esses interesses totalmente legítimos, e até meritórios?

Mas não é apenas sobre a própria natureza dos interesses que movem a política que o desabafo compartilhado por Bolsonaro se equivoca. O presidente também parece ter subestimado a reação que ele despertaria. Bolsonaro se elegeu com uma série de plataformas necessárias ao país – as reformas econômicas, a redução do tamanho do Estado e de sua interferência sobre a vida do cidadão e do empreendedor, a proteção da vida e da família, o combate à criminalidade. Prometeu também levar esse ideário adiante sem recorrer ao toma-lá-dá-cá que marcou os governos de seus antecessores. A própria campanha eleitoral já havia mostrado que haveria resistências vindas de todos os lados – da imprensa, da intelectualidade, de grupos políticos, ideológicos e identitários – a esse projeto. Uma oposição legítima, baseadas em ideias e reivindicações próprias da democracia, e também a resistência espúria de quem perderia privilégios. Porventura Bolsonaro não imaginava que os setores contrários ao seu programa não usariam todas as armas à disposição? Se agora ele se queixa, como o texto parece fazer, do tamanho do desafio, é porque o subestimou grosseiramente, mesmo quando tudo já indicava que sua tarefa não seria nada simples e apesar de Bolsonaro ter passado boa parte de sua vida no mesmo Congresso que agora lhe impõe dificuldades.

E, diante disso, o que fazer? Como, então, manter a coerência com o programa assumido nas urnas – algo que o texto de Portinho alega não ser possível, usando exemplos de FHC, Lula e Dilma? Menos mal que o autor rejeite a opção da ruptura institucional, com “o Brasil sendo zerado”. Isso nos levaria a um destino como o de vizinhos falidos, citando a Argentina e a Venezuela. O autor poderia ter citado o próprio caso brasileiro, em que Jânio Quadros quis contornar as instituições confiando nos “braços do povo”, e acabou lançando o país na confusão que resultou no golpe militar de 1964. Mas Portinho também não vê saída. Segundo o texto, se a ruptura não é um caminho possível nem desejável, restaria apenas conformar-se com governar contentando os grupos de pressão de sempre, passando reformas cosméticas que manterão o país respirando por aparelhos, mas sem de fato mudar o Brasil.

Ora, isso é de uma pequenez impressionante. Se o Brasil realmente não é para principiantes, como na famosa frase atribuída a Tom Jobim, tampouco é ingovernável sem ceder às corporações, como defende Portinho. É possível, sim, governar sem recorrer aos conchavos e ao toma-lá-dá-cá. Para isso, o que o Brasil exige de um governante é sabedoria para compreender que uma democracia é movida por interesses legítimos, mesmo que opostos; sagacidade para identificar quais são os interesses e métodos espúrios; coragem para enfrentar os interesseiros e fisiológicos; e liderança para conversar e negociar com todos os demais, aqueles que se movem de boa vontade no tabuleiro político e ideológico. São características que ainda não se manifestaram plenamente em Bolsonaro, que tem se guiado pelo pensamento binário em que as únicas opções são ceder ou buscar o enfrentamento com todas as forças contrárias. Tampouco seus ministros responsáveis pela articulação política e suas lideranças no Congresso parecem capazes de cumprir suas tarefas a contento, suprindo o que falta em seu chefe.

O ideário que elegeu Bolsonaro tem o potencial de mudar o Brasil. E pode ser colocado em prática, desde que o presidente pare de reclamar das dificuldades e resistências – que são grandes, sim, mas nunca foram desconhecidas de ninguém – e comece a agir com a liderança que a população espera dele."

Afinal, o que é ser um especialista? - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 20/05

Pergunte a um especialista de internet quantas horas ele se dedicou ao tema


Dentre as características dos tempos que estamos vivendo atualmente, está um ataque ferrenho à ideia de especialistas. Em muitos círculos o termo virou palavrão.

Afinal, a única opinião que importa seria do povo, mesmo quando “povo” seja definido como as pessoas (e robôs) que frequentam as redes sociais. Os especialistas, por sua vez, seriam uma opinião de segunda classe quando comparada a essa “sabedoria popular”.

Mas o que seria, afinal, um especialista? Uma das melhores definições existentes é a do escritor Malcolm Gladwell, no seu livro “Outliers” (traduzido no Brasil como “Fora de Série”), de 2008. No livro, Gladwell debate o que seria necessário para que uma pessoa se torne um especialista em um determinado campo.

É nesse contexto que ele oferece uma regra simples: especialista é todo aquele que investiu ao menos 10 mil horas de prática em um determinado assunto. Por exemplo, essa é a média de tempo a que um violinista de talento reconhecido globalmente se dedica sozinho antes da fama.

O próprio Gladwell estima que os Beatles teriam ensaiado ao menos 10 mil horas antes de tocar em Hamburgo no começo dos anos 1960. Ou, ainda, esse teria sido também o tempo que Bill Gates teria dedicado ao ofício de programação antes de finalmente desenvolver o Windows.

Da mesma forma, esse número é uma boa régua para dividir quem se declara especialista em um tema ou não. Se você se dedicou mais de 10 mil horas sobre um assunto, pode se considerar um especialista. Se não fez isso, é ainda um amador.

No entanto, em um livro de 2016, os professores Anders Ericsson e Robert Pool defendem uma versão revisada dessa “regra das 10 mil horas”. No livro (traduzido no Brasil como “Direto ao Ponto: Os Segredos na Nova Ciência da Expertise”), os autores dizem que essa regrinha é útil, mas não é universal.

Outros fatores, como o campo de atuação, podem ser influentes. Em algumas áreas, mais tempo seria necessário. Em outras, menos. Esse seria o caso dos próprios Beatles. Em um estudo feito em 2013, Mark Lewisohn, biógrafo da banda, estimou depois de uma detalhada análise que na verdade eles teriam ensaiado por volta de 1.100 horas antes de tocar em Hamburgo (e não 10 mil).

Além disso, a forma como essas horas são aplicadas também importa. Ficar só na teoria não é suficiente. Os autores defendem que a melhor forma de criar especialistas é colocando as pessoas para treinar suas especialidades na prática, especialmente de forma competitiva com outras pessoas.

É o que os autores chamam de método “Top Gun” (em homenagem à escola da Marinha americana, tornada famosa pelo filme dos anos 1980). Qual a melhor forma de formar bons pilotos de caça? Colocá-los para competir uns com os outros e selecionar os melhores.

De nada adiantaria investir 10 mil horas na teoria da aviação de caça sem a possibilidade de colocá-la em prática.

Toda essa discussão é útil. No mínimo ela ajuda a distinguir o joio do trigo. Da próxima vez em que você encontrar um especialista na internet, pergunte quantas horas ele se dedicou àquele tema. Pergunte também como ele gastou essas horas. Depois de fazer isso, você terá uma baliza melhor para levar ou não a opinião da pessoa em consideração.

READER
Já era Monopólio da opinião por parte de alguns poucos especialistas

Já é Desvalorização generalizada da opinião de especialistas

Já vem Renascimento do valor da opinião dos especialistas, de forma mais diversificada

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Empoderamento feminino e santidade - CARLOS ALBERTO DI FRANCO

O Estado de S.Paulo - 20/05

Beatificada uma mulher à frente do seu tempo, que soube viver a aventura do ordinário



Aqueles que acompanham meus artigos sabem que com grande frequência utilizo este espaço para refletir sobre o trabalho da imprensa. Costumo apontar condutas que, a meu ver, põem em xeque o brilho da profissão e contribuem para rebaixar a credibilidade da mídia. Não poucas vezes procurei refletir sobre os desvios de alguns profissionais que, contaminados pelo vírus da preguiça digital, trocam a rua e suas histórias incríveis pelas entrevistas telefônicas express ou por aqueles depoimentos obtidos pelas redes sociais. O jornalismo é movido pelo extraordinário, pelo curioso, pelo episódio inusitado que não raro grita ao nosso lado. Mas para ouvi-lo é preciso descer à arena, ir ao combate à procura dos fatos que merecem ser contados.

A vida, felizmente, é mais rica e muitas vezes, aí, o espetacular não é definido unicamente pelos critérios de noticiabilidade. Ao nosso lado todos os dias transita incalculável número de heróis anônimos que, sem receberem uma fagulha da pirotecnia midiática, luzem por si sós. Suas histórias permanecem ocultas, desconhecidas do grande público. Mas ao seu redor a vida prospera. Sem que percebam, cumprindo com fidelidade seus compromissos cotidianos, tocam e deixam por herança algo realmente esplêndido.

Esplêndida assim foi a vida de Guadalupe Ortiz de Landázuri, uma mulher que, movida pela consciência sobre o papel feminino na sociedade, se colocou à frente de seu tempo. Fiel do Opus Dei falecida em 1975, ela é a primeira entre os membros leigos da prelazia a subir aos altares. A cerimônia de beatificação foi realizada dia 18 em Madri, sua cidade natal.

A história de Guadalupe parece-me ganhar maior relevância num momento em que a bandeira do empoderamento feminino tremula alto e ali, com razão, deve permanecer. Seu vigor vanguardista a fez buscar novos desafios em ambientes geralmente pouco favoráveis. Na década de 1930, quando as vozes feministas ainda não ressoavam nas ruas da tradicionalíssima Europa, ela ingressou na universidade. Um projeto em si ousado, dado que na época as mulheres representavam apenas 14% do total de alunos matriculados em cursos superiores na Espanha. Mas o arrojo de Guadalupe foi além. Escolheu a graduação em Ciências Químicas, quando mais da metade das estudantes optavam pelo curso de Filosofia e Letras. Estava numa turma predominantemente masculina, na qual, dos 70 inscritos, apenas 5 eram mulheres.

Para as moças que terminavam os estudos superiores, as estatísticas escancaravam uma estrutura social ainda mais impiedosa: em 1940 apenas 8% delas permaneciam no mercado de trabalho. Guadalupe abriu esse caminho por picadas. E deixou a clareira para que outras pudessem transitar por ali. Finalizou o doutorado em 1965, foi docente, pesquisadora e catedrática.

Sua convicção acerca do papel da mulher encontrou plena sintonia nos projetos de São Josemaría Escrivá. Em 1944, quando um grupo de amigos lhe apresentou o fundador do Opus Dei, Guadalupe sentiu-se atraída pelo ideal da busca da santidade no exercício do trabalho profissional. Abriu-se então um surpreendente panorama. Entendeu que ela mesma deveria ser vetor para uma profunda transformação social. Desenvolveu intenso trabalho com as comunidades mais carentes de diversas cidades da Espanha e do México, país onde viveu por dez anos.

Nessa época, quando a perspectiva da emancipação feminina causava estranheza e desconfiança em alguns, São Josemaría já sonhava e fazia sonhar com o dia em que as mulheres da prelazia estariam à frente de escolas agrícolas onde se ensinariam ofícios às trabalhadoras do campo, de clínicas médicas, de editoras de livros, de instituições universitárias. Insistia também que a seção feminina do Opus Dei deveria ter autonomia para dirigir suas próprias iniciativas apostólicas.

Em entrevista publicada em 1968 pela revista espanhola Telva, o fundador do Opus Dei esclareceu aspectos importantes desse empoderamento que Guadalupe soube compreender, viver e difundir. “Para cumprir essa missão a mulher tem de desenvolver sua própria personalidade, sem se deixar levar por um ingênuo espírito de imitação que – em geral – a situaria facilmente num plano de inferioridade”.

A beatificação nos ensina sobre a eficácia de uma mulher revolucionária, mas ao mesmo tempo muito comum. Guadalupe soube viver a aventura do ordinário. Em emblemática homilia, São Josemaría Escrivá resumia essa realidade, um dos pilares do espírito próprio do Opus Dei. “Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir”. Guadalupe descobriu.

Não há como negar que vivemos num mundo doente. Construímos – você e eu – uma sociedade movida pela aparência, pelo postiço. O êxito pessoal passou a ser aferido pelo número de curtidas de uma postagem em rede social. Enaltecemos as grandes performances, condecoramos aqueles que atingem altos patamares de prestígio. Precisamos ser os melhores em tudo, ou pelo menos aparentar ser os melhores, simular uma vida perfeita ao lado de pessoas perfeitas. E nunca estivemos rodeados de tanta depressão e angústia, de tanta amargura e desgosto. Gente de todas as idades atingida pela praga moderna de uma vida sem sentido.

Arrisco-me a dizer que o remédio para a imensa maioria dos casos é aterrissar na vida real. É saudável entender que nossas jornadas não estão, e nunca estarão, recheadas de momentos e feitos espetaculares. O amor ao ordinário nos abrirá o caminho para o extraordinário. Como fez Guadalupe Ortiz de Landázuri.

Beatificada uma mulher à frente do seu tempo, que soube viver a aventura do ordinário

Explicando a cacofonia - MARCUS ANDRÉ MELO

 Folha de S. Paulo - 20/05

Por que o Bolsonarismo não pratica moderação se isto lhes traria ganhos?


O que explica a intensa cacofonia do bolsonarismo considerando que o governo em tese poderia aumentar sua popularidade e as chances de implementar sua agenda se praticasse moderação? Como já observei neste espaço, palanque permanente e barganha legislativa são substitutos não complementos. Bolsonaro rejeita esta última, compensa com o ativismo. Mas isso não é tudo.

Candidatos situados nos extremos do continuum ideológico tendem a deslocar-se ao centro (mediana). Isto se deve ao fato que em um confronto entre um candidato extremista de direita e de esquerda, o primeiro poderá conquistar novos eleitores moderados de direita, e vice-versa.

Os ganhos do deslocamento ao centro seriam claramente maiores do que as perdas junto aos setores à direita: estas seriam pequenas devido ao fato de que este grupo é menor do que o grupo mais ao centro e tende a exibir elevada taxa de lealdade política. Mas a chave da questão é que o bolsonarismo não busca aumentar a sua influência horizontalmente sobre setores centristas, mas aumentar a coesão e ativismo no seu grupo.

Eis a resposta para o paradoxo da campanha perpétua: embora represente apenas um quinto do eleitorado, o núcleo duro do bolsonarismo foi suficientemente coeso e militante para garantir a ida ao segundo turno. É imperativo para o bolsonarismo evitar sua desmobilização. Se Já deu certo antes, por que mudar o rumo?

A cacofonia então é subproduto do esforço para evitar a desmobilização nas redes. O ativismo confrontacional é ingrediente essencial desse esforço, embora seja inescapável, confundindo-se com a própria identidade dos atores. Embora aliene setores do centro, o saldo líquido acaba sendo positivo se não ultrapasse certos limiares, mas isto tem ocorrido.

Para além da dinâmica do apoio do eleitorado ao governo as tensões internas envolvendo sobretudo militares têm engendrado clivagens que podem revelarem-se irreconciliáveis. E mais: um vice-presidente militar cria incentivos para que este setor ao fim e ao cabo retire seu apoio. Por sua vez, o apoio do empresariado ao governo não é incondicional: depende de sua capacidade de aprovar a agenda de reformas.

No longo prazo este estado de coisas assenta-se em duas condições estruturais: que o centro continue fragilizado e não tenha candidato competitivo, e a hiperfragmentação partidária persista. Mas tudo irá depender de quem será o opositor nas futuras eleições majoritárias. A escolha é binária, o bolsonarismo aprendeu a lição. Embora perdure o intenso desgaste de seu líder, o eleitor de centro voltará a apoiá-lo se a rejeição a seu rival for maior do que a ele próprio. Se ele chegar até lá, bien entendu.

Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

Segurança para gastar - SAMY DANA

O GLOBO - 20/05

Estudo recente alerta: quem se sente de bem com a vida gasta mais e poupa menos para o futuro


RIO — Duas pessoas vão ao mesmo shopping e, por coincidência, acabam na mesma loja. Ambas escolhem peças bem parecidas, e caras. Mas só uma se decide pela compra; a outra prefere poupar. Qual delas é a mais segura, a que comprou ou a que desistiu? E qual a mais insegura?

Gastar ou poupar é um conflito básico da nossa vida econômica. Em princípio, todo mundo deveria poupar para o futuro, pensando em uma viagem, em uma emergência, na aposentadoria etc. Mas, como já apontei em outra coluna, só 4% dos brasileiros poupam para a aposentadoria. Aqui há o problema da crise, mas esse fenômeno não se restringe ao Brasil. Nos Estados Unidos, na Alemanha, França e Austrália, o comportamento é parecido.

Para os economistas que acreditam que nossas decisões são racionais, gastamos porque o benefício compensa, já que pesamos custos e ganhos. Mas, por décadas, psicólogos e outros economistas têm demonstrado que gastar pode ser consequência de diversos fatores, sem relação com a racionalidade econômica. Entre esses fatores, dois pesquisadores, Yael Steinhart, da Universidade de Tel-Aviv, e Yuwei Jiang, da Universidade Politécnica de Hong Kong, apontam a autoestima.

Eles fizeram sete experimentos, com 2.410 voluntários dos EUA e de Israel. E acessaram os dados de um pesquisa feita na Holanda com 1.240 pessoas. Os resultados saíram no Journal of Personality and Social Psychology.

Economia patina: Projeções para o PIB caem, e analistas veem espaço para corte de juros

Em um dos experimentos, 200 estudantes jogaram no computador, sendo depois classificados em melhores, médios e piores. Em seguida, os pesquisadores colocaram a questão: “Imagine que você receba agora US$ 1.250. Quanto estaria disposto a guardar?”

Alguém que é apreciado por alguma coisa, sugere o trabalho, sente-se bem e por isso tende a ser mais otimista com o futuro, em todos os aspectos da vida. Ou seja, se nos sentimos bem, achamos que iremos bem em tudo. Com isso, caímos mais em tentações de consumo.

Já alguém com baixa autoestima fará o contrário. Imagina um futuro mais incerto. Assim, o grupo dos piores jogadores estava disposto a poupar 72% do valor, enquanto o dos melhores pretendia guardar 60%.

Essa pouca vontade de gastar entre as pessoas de baixa autoestima foi ainda menor em outro experimento, com 60 estudantes. Foi pedido a metade do grupo que se recordasse de algum fracasso; à outra metade, não. Depois, foi perguntado quanto guardariam se recebessem US$ 2,5 mil.



Se você ganhasse uma quantia inesperada, quanto guardaria?

Baixa autoestima

Maior autoestima

72%

Estudo 1

60%

65%

Estudo 2

50%

68%

Estudo 3

54%

Fonte: Securing the Future: Threat to Self-Image Spurs Financial Saving Intentions
Os participantes que se recordaram de um fracasso eram mais pessimistas sobre o futuro. Eles disseram que gastariam apenas 35%. O outro grupo pretendia gastar 50%.

O curioso é que os efeitos mudam se a percepção de segurança muda. Quando os pesquisadores testaram outros 188 voluntários, também pediram que metade se lembrasse de um fracasso do passado; a outra metade, não. Em seguida, perguntaram a todos quanto achavam que se deve economizar por mês para o futuro.

Queda na renda: Crise empurra 1 milhão de famílias para classes D e E

Numa segunda fase, foi apresentado aos pessimistas um estudo que dizia que o futuro pode ser mais positivo. Os otimistas leram outro texto, de que o futuro pode ser pior. E repetiu-se a pergunta sobre a economia mensal. Desta vez, a resposta dos dois grupos foi quase igual.



Quanto do salário você pensa em guardar para o futuro?

Baixa autoestima

Maior autoestima

42%

Estudo 1

30%

35%

Estudo 2

37%

Fonte: Securing the Future: Threat to Self-Image Spurs Financial Saving Intentions
Todos nós queremos o máximo de bem-estar. Mas o estudo mostra que, de maneira contraditória, o bem-estar de agora pode nos levar a colocar o futuro em risco. Inseguro ou seguro, importante é não exagerar nos gastos.

Apatia política de Bolsonaro leva a parlamentarismo forçado - JULIO WIZIACK

FOLHA DE SP - 20/05

Presidente insinua ser alvo de impeachment mas Congresso só toma rédea das pautas de governo


O presidente Jair Bolsonaro insinuou que sua sentença de morte está pronta no Congresso. Começou dizendo que a pressão contra o bloqueio de verbas foi uma tentativa de fazê-lo incorrer em um crime de responsabilidade.

Depois, seu filho Carlos conseguiu ver um golpe na medida provisória que mudou a estrutura dos ministérios e pode caducar.

Bolsonaro terminou a semana endossando um texto que defende a tese de um país “ingovernável” sem conchavos. Parlamentares leram a mensagem como um atestado de incompetência ou um apelo para que seus “eleitores-raiz” sigam para as ruas em defesa de seu governo.

Se existe uma arma contra Bolsonaro no Congresso, é a investigação do Ministério Público do Rio sobre o suposto envolvimento de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, uma espécie de faz-tudo da família, e milícias.

Uma saída seria Bolsonaro indicar o próximo Procurador-Geral da República. Mas isso só ocorrerá em setembro. Até lá, ele tende a continuar nessa agonia pública.

Lideranças partidárias consideram que o presidente criminalizou a política e, portanto, qualquer conversa agora pareceria toma lá dá cá. Fazem o feiticeiro provar de seu feitiço.

Em tempo recorde, o presidente conseguiu o impensável: manifestações pelo país, uma bandeira para o engajamento da oposição, e o descrédito do mercado com a alta do dólar e a queda da Bolsa.

O país flerta com a recessão ou a depressão. Tanto faz. Nem sua mais promissora medida, a reforma da Previdência, serve mais de alento porque não trará empregos.

Existem hoje travas contra o impeachment. Ninguém sabe direito quem é o vice, o general Hamilton Mourão, e levar o processo adiante agravaria a pasmaceira econômica.

O Congresso preferiu tomar as rédeas do governo, se apoderando das agendas importantes, em uma espécie de parlamentarismo forçado. Mas a política é como um rio. Sempre flui para o mesmo lado. Nunca com a mesma água.

O BC e a volta da recessão - LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Valor Econômico - 20/05

Sinais que o BC recebe desde a greve dos caminhoneiros são claros e fazem uma ação sobre os juros mandatória



A atuação da nova diretoria do Banco Central já está sob pressão por conta de sua falta de ação neste início de novo mandato. O Monitor do PIB-FGV recém divulgado aponta, na série com ajuste sazonal, retração do PIB no primeiro trimestre, em comparação ao último trimestre do ano passado (- 0,1%) e, na comparação interanual, a atividade econômica cresceu no trimestre 0,5%, mas caiu 1,7% no mês.

Para uma sociedade asfixiada por uma taxa de desemprego inaceitável e um desânimo deletério que domina os empresários, a notícia da volta da recessão não faz bem a ninguém. Como sempre os investidores em ações nas Bolsas de Valores foram os mais rápidos e corrigiram em quase 10% os preços das principais ações negociadas na B3. Mas outros setores já responderam também a esta má noticia, como mostra o índice de confiança do consumidor da Fecomércio com uma queda de mais de 3% em abril.

Meu irmão Jose Roberto fez um comentário pessimista - mas totalmente pertinente - sobre a situação de hoje ao dizer que o espirito animal dos empresários - como dizia Keynes muito tempo atrás - toma um terceiro tombo em apenas dois anos. Ele se referia ao início da recuperação cíclica, em meados de 2017, e que foi violentamente abortada pelas delações da JBS e a um outro espasmo de crescimento, em 2018, jogado novamente ao chão pela greve dos caminhoneiros. Agora, outro momento da volta do espírito animal que se deu após a vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais - e principalmente com a chegada de Paulo Guedes ao comando da economia - chega ao fim com o retorno da recessão econômica.

O risco desta nova decepção é o de criar um desânimo nos empresários e consumidores de uma forma mais profunda e perene. O economista Carlos Kawall revelou em entrevista recente que é possível que o brasileiro médio esteja aumentando sua taxa de poupança pessoal, talvez em função do desânimo de nova recidiva no crescimento. Se isto acontecer, realmente podemos nos preparar para dias ainda mais difíceis ao longo do restante do ano.

Um dos culpados pela volta da recessão terá sido a própria equipe do Ministério da Fazenda que, na ânsia de promover uma verdadeira revolução liberal na nossa sociedade, negligenciou a gestão de curto prazo da economia. Lembro-me de ter acompanhado os discursos de posse dos presidentes dos três bancos
públicos, em que colocavam como primeira prioridade reduzir o tamanho de suas instituições, corrigindo os erros primários cometidos nos governos Lula e Dilma.

Minha reação diante disto foi a de certo espanto, pois o movimento seria corrigir um erro cometendo outro, ou seja, reduzir a oferta de crédito destas instituições - que representam 50% do total do sistema bancário - em um momento em que a recessão já rondava nossa economia. Os bancos privados também trouxeram sua contribuição a este cenário ao absorver em seus spreads a totalidade da redução da taxa Selic, como mostram as estatísticas do Banco Central.

Paralelamente ao arrocho dos bancos públicos o Ministério da Economia iniciou uma série de contingenciamentos nos gastos discricionários do orçamento para compensar a redução da arrecadação gerada pela queda da atividade e criando um conhecido "looping" deflacionário pelo lado fiscal. Nas contas fiscais que podem ser administradas pelo governo temos um superávit crescente, que já vinha sendo perseguido nos últimos meses do governo Temer, e continuou agora.

Finalmente, completando este quadro de inércia em relação à atividade econômica que se enfraquecia, o Banco Central deixou de cumprir seu mandato de um sistema de metas de inflação ao vincular um eventual estímulo monetário à aprovação definitiva da reforma da Previdência e à diminuição de outros riscos fora de nossa fronteira. E afirmo que o BC não está cumprindo o charter associado a um sistema clássico de metas de inflação desde que a greve dos caminhoneiros interrompeu a pequena recuperação cíclica em 2018. O hiato do produto que prevaleceu nos últimos meses pede o afrouxamento das condições monetárias com inflação ancorada nos próximos dois anos no centro da meta do Banco Central.

Basta acompanhar a ação de outros bancos centrais, que seguem o modelo de sistema de metas de inflação, em situação semelhante para identificar esta forma de agir. Com o enfraquecimento progressivo dos indicadores antecedentes de inflação à disposição da autoridade monetária, o estágio do ciclo econômico de curto prazo é que passou a servir como orientador do afrouxamento ou aperto das condições monetárias de uma economia de mercado como a nossa. E os sinais que o BC vem recebendo desde a greve dos caminhoneiros são claros e fazem uma ação sobre os juros mandatória.

Mas a memória inflacionária de um passado que não existe mais criou no BC brasileiro uma mentalidade catatônica em relação a uma ação compatível com a posição do ciclo econômico. Para usar uma expressão popular, o uso do cachimbo da inflação por muitas décadas fez a boca torta quando se trata de uma ação anticíclica de afrouxamento monetário. Esta posição ficou bem clara na declaração do novo presidente da instituição quando disse para quem quisesse ouvir que "o Banco Central não age olhando o crescimento econômico".


Aviso de tsunami - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 20/05

Bolsonaro viu Lula Livre em todos os cartazes. Parece pedir socorro ao PT. Por favor, voltem com força. Preciso de um bicho-papão


Conversando com um amigo, disse para ele que escrever um diário talvez ajude a atravessar esta fase sombria no Brasil. Diários costumam ser confusos, incompletos, mas talvez espelhem melhor o caos, sejam a única maneira de interpretá-lo. Quando houvesse necessidade de clareza, como existe aqui, bastaria organizar, editar, acrescentar um ou outro argumento, para voltar a fazer sentido.

Pensei em começar com a frase de Eduardo Bolsonaro sobre a bomba atômica. Num diário, falaria da Coreia do Norte, que era dirigida por Kim Il-sung, e agora um dos rebentos da família se dedica à produção da bomba. Ou mesmo do ministro brasileiro que defendeu a construção do artefato, vestido com um roupão numa sala de hospital.

Estava envolvido nessa questão de gênero, no caso gênero literário, quando li que Bolsonaro esperava um tsunami. Pensei: estou de bobeira na praia. Deixei tudo de lado, para esperar a gigantesca onda.

Na verdade, não é só uma onda, mas um punhado de ondas estranhas: a revelação de um pacto para levar Moro ao Supremo, a inabilidade na explicação para contingenciar gastos na educação, a frase de Bolsonaro chamando manifestantes de idiotas inúteis.

Uma tática que me parece suicida; quem sabe um dia descubra sua lógica.

Aí então veio uma onda maior: a iniciativa dos procuradores do Rio de quebrar o sigilo bancário de Flávio Bolsonaro e de seu funcionário Fabrício Queiroz, o que, certamente, vai revelar a vida financeira de ambos.

Mas as grandes interrogações que rondam a passagem de Flávio pela Alerj não se limitam ao sucesso na compra e venda de imóveis. Houve muitas fontes de renda suspeitas entre deputados do Rio. Propinas, cala-boca, rachadinhas, um longo inventário.

No entanto, o mais inquietante são os indícios de que a milícia tinha um espaço no gabinete de Flávio e que esse espaço era administrado por Queiroz. Milicianos, esposas e mães de milicianos recebiam salários e não se sabe precisamente por quê.

Uma história de corrupção envolvendo a família Bolsonaro realmente representaria uma grande onda negativa para quem se elegeu com a bandeira de luta contra a corrupção.

Mas se a investigação sobre as origens da grana demonstrar também uma associação com as milícias, aí, realmente, é melhor se afastar da praia, pois tem cara de tsunami.

De um modo geral, as ondas foram criadas pelo próprio governo. Bolsonaro viu Lula Livre em todos os cartazes. Parece pedir socorro ao próprio PT. Por favor, voltem com força. Preciso de um bicho-papão.

Milhares de pessoas foram às ruas porque consideram a educação um tema decisivo para o país. Elas pedem projetos, explicações mais sérias do que contar chocolates na TV.

Resta-me, no momento, voltar ao pensamento informal, refletir mais livremente. Por que sobem e caem os populistas? Por que, ao cair, acabam fortalecendo um outro populismo que se opõe a eles?

Até que ponto continuarão brincando de gangorra com um país desse tamanho? O medo de um leva ao outro. E assim vamos vivendo de horrores.

Por acaso, o que esteve em jogo esta semana de manifestações é uma das chances de sair dessa armadilha: priorizar a educação.

A bomba atômica que explodiu na agenda, com o discurso do filho do presidente, foi sufocada pelo rumor das ondas. Ia tratá-la com respeito, pois Eduardo Bolsonaro apresentou-a como um fator de poder do país. Mas há outros poderes mais suaves: nossa cultura, que não se expressa apenas nas artes e costumes, mas na defesa da paz em vários lugares do mundo.

É um poder mais barato e durável. Não significa desprezar a defesa necessária. Mas esse poder é em si um fator auxiliar da proteção. Quem vai atacar um país internacionalmente empenhado em garantir a paz?

Se tivéssemos uma bomba atômica, Maduro nos respeitaria como espera o jovem Bolsonaro? A resposta é não. O que faríamos com a bomba atômica?

Momentos estranhos. Mas passam. No meu caderno, anoto apenas um verso de Fernando Pessoa e o imagino transfigurado na boca de um ministro Weintraub, mestre em Contabilidade: “Come chocolates, pequena/ Come chocolates!/ Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.”