domingo, abril 28, 2019

O novo império do cliente - GUSTAVO FRANCO

ESTADÃO - 28/04

Nada pode ser mais salutar para a concorrência que a elevação do poder do cliente

Os últimos anos testemunharam inovações de gigantesco potencial no terreno monetário e bancário e um bom começo para mapear o que está se passando é a lei que definiu, em 2001, o SPB, Sistema de Pagamentos Brasileiro (Lei 10.214). Parecia apenas mais uma medida prudencial restrita às “câmaras e dos prestadores de serviços de compensação e de liquidação”, portanto, apenas mais um rescaldo da crise de 2008, com vistas a limitar o risco sistêmico.

Entretanto, ao isolar e proteger os circuitos de pagamentos do restante da atividade bancária a regulação abriu horizontes amplos e inesperados. Uma parte do sistema financeiro, o SPB, passava a ser tratada como uma “infraestrutura essencial”, ou “de utilidade pública”, diferentemente de outras atividades dos bancos. O BCB se viu, subitamente, frente a frente com um desafio concorrencial que nunca foi sua especialidade, e foi se abrindo uma colaboração interessante com o Cade, o qual, por sua vez, nunca teve a agilidade para remediar ou reprimir condutas anticompetitivas no sistema financeiro.

Nos anos subsequentes, foi se observando com mais clareza uma tensão insolúvel: os “donos” de plataformas que compunham o SPB procuravam usar essa posição para escravizar seus clientes dos outros produtos financeiros “não essenciais”, como os instrumentos de poupança e outros tantos serviços. Era como se o supermercado só vendesse produtos da própria marca, ou se a companhia de eletricidade obrigasse seus consumidores a comprar as TVs de plasma, torradeiras e geladeiras das empresas ligadas. Era o império da venda casada e da reciprocidade.

Quando a lei brasileira revisitou o assunto em 2016 (Lei 12.865), foi bem além do estabelecido em 2001 ao tratar o sistema de pagamentos como um conjunto de plataformas, instituições e arranjos cujas relações entre si deveriam ser regidas por princípios novos, com sonoridade tecnológica, como “interoperabilidade” (capacidade de trabalhar “em grupo”), ou concorrencial, como “tratamento não discriminatório aos serviços e às infraestruturas necessários” ao funcionamento dos arranjos (o sistema não pode ter pedágios, interrupções discricionárias e dificuldades introduzidas para gerar rendas de monopólio). Tal como a internet.

A nova lei regulou algumas novidades revolucionárias, dentre elas a “moeda eletrônica” e, especialmente, as “contas de pagamento”, que criaram a possibilidade de instituições de pagamento competirem com bancos comerciais oferecendo contas remuneradas a 100% do CDI com as mesmas funcionalidades de depósitos à vista.

Era uma transformação importante, pois essas contas são muito parecidas, nos seus efeitos, com uma criatura de que se fala apenas no ambiente laboratorial: as moedas digitais “emitidas” por bancos centrais. E funcionam como criptoativos, mas sem necessidade de “blockchain”. Elas representam uma seriíssima e muito bem-vinda ameaça competitiva aos grandes bancos comerciais com os quais se dizia que era impossível competir.

A próxima novidade, anunciada nesta semana, atende pelo nome de “open banking”, uma frente muito ampla de possibilidades que se poderia tentativamente descrever como a ideia de, com vistas a melhorar a experiência do cliente, levar às últimas consequências a segregação entre o sistema de pagamentos e a comercialização de produtos financeiros, inclusive crédito.

Sua face mais conhecida é designada como “portabilidade”, ou seja, o direito de o cliente trocar de ofertante conforme encontre uma experiência melhor em determinados produtos (plano de previdência, crédito consignado) ou serviços (recebimento de seu salário). Como quem troca de provedor de acesso a uma rede.

Na semana que passou, o Banco Central deu prosseguimento ao assunto de “open banking”, agora com essa designação, focando no poder do cliente dispor e portar os dados sobre seu histórico bancário. Com isso, o cliente pode cotar operações de crédito de forma competitiva, com grandes benefícios para si.

Nada pode ser mais salutar para a concorrência no sistema financeiro que a elevação do poder do cliente buscar o melhor para si.


"Os corneteiros do fracasso - GUILHERME FIUZA

GAZETA DO POVO - PR - 28/04

Há um avião pronto para decolar, com motor suficiente para te tirar da seca. Mas você quer saber se tem vascaíno à bordo, qual a religião do fabricante e o signo do copiloto. Assim está o Brasil, com um grupo de abnegados tentando fazer a reforma da Previdência pegar no tranco apesar de vocês, os analistas zodiacais do neofascismo imaginário.

Até anteontem vocês se comportaram direitinho. O que importava, basicamente, era ter uma tripulação confiável para tirar o Brasil do deserto deixado pela exuberância da DisneyLula. Após uma eleição cheia de artimanhas para tentar reabilitar o poder da quadrilha, o país escolheu o caminho onde, por vias tortas ou não, a tal tripulação confiável chegou à cabine de comando. Posto Ipiranga.

Mas vocês não querem mais sair do lugar. Aparentemente nesse meio tempo vocês fizeram um mestrado em crítica comportamental, com MBA em etiqueta comparada, e seus interesses mudaram. Vocês trocaram o Posto Ipiranga pelo salão de cabeleireiro, onde uma desavença sobre a novela da véspera é crise grave.

De fato, é uma rotina mais agitada e emocionante. O Posto Ipiranga é um tédio.

E assim estamos, neste estanho ano da graça de 2019. Enquanto Paulo Guedes, Rogério Marinho, Mansueto Almeida, Marcos Cintra, Salim Mattar, Campos Neto, Tarcísio Freitas, Sergio Moro e outros grandes trabalham duro para tirar o Brasil do atoleiro, vocês fuxicam rebotalhos de rede social e tocam nos ouvidos da nação as suas cornetas do fracasso. Nada presta, assim não dá, ole-lê, ola-lá. Os velhos trombeteiros do apocalipse, de Ciro Gomes a Requião, de Jean Wyllys a Gleisi, estão animadíssimos com a chegada de vocês à orquestra.

A reforma está afundando na CCJ – diziam vocês – porque o governo só existe no Twitter (vocês sabem tudo de articulação política), porque o Rodrigo Maia mordeu a orelha do cachorro do Bolsonaro, porque o Mourão é o golpista gente boa (vocês estão na dúvida), porque os filhos são fanfarrões (ah, se eles tivessem MBA em etiqueta comparada…) e acima de tudo porque vocês encontraram essa fantasia de corregedores perfumados do estorvo bolsonarista e vão fazer cara de nojo para tudo.

OBS: A reforma passou bem na CCJ, iniciando ainda nos primeiros meses da nova gestão a agenda mais esperada pelos que querem reconstruir isso aqui, mas vocês continuaram com cara de nojo, dizendo que demorou (!), dizendo que o projeto do Paulo Guedes foi desidratado (mentira) e não vai prestar, ole-lê, ola-lá.

Sobre essa parte de viver surfando entre meias-verdades, vocês estão provando aos parasitas do petismo que é possível mentir com muito mais classe do que eles fizeram por 13 anos. Aliás, no salão da resistência democrática não se ouviu um pio sobre a fake news da menina que se recusou a cumprimentar o presidente. Podem poupar suas meias-verdades para explicar esse silêncio hediondo: já entendemos que na nova cartilha de vocês não é permitido apontar eventuais picaretagens na imprensa, porque pode ser entendido como discurso bolso-fascista. Incrível como vocês estão mudados (os cabelos continuam os mesmos, mas o juízo… quanta diferença).

Ainda assim, a nova aposta de vocês não é de todo burra. Não há de faltar bizarrices dos bolsonaros e seus circundantes para alimentar as crises de fofoca que vocês hoje se dedicam a fermentar e espalhar. Vocês são os colunistas sociais da miragem autoritária, uma espécie de reencarnação da Revista Amiga para futricas de coturno. Não deixa de ser um papel na sociedade.

Se apesar de vocês o avião decolar e tirar o Brasil da seca, vocês obviamente vão querer embarcar correndo, pedindo educadamente desculpas pelo atraso. Não tem problema, a tripulação que está dando duro mal sabe de vocês (não dá tempo de ler a Revista Amiga). São democratas – exatamente como vocês fingem – e não irão barrar ninguém.

Talvez os passageiros à bordo não sejam tão receptivos, mas não dedicarão a vocês nada pior do que uma cara de nojo, como a que vocês hoje fazem para tudo. Nada grave, eles apenas terão entendido quem vocês são."

A anatomia da inovação - CLAUDIO DE MOURA CASTRO

REVISTA VEJA, edição nº 2632

As novidades brotam de gente “perguntadeira” — e não do Estado


Quando morava em Genebra, eu ia sempre ao Mont Salève, para voar de asa-delta ou parapente. Certo dia, comprei de meu colega de clube um medidor de velocidade do vento, muito útil para não decolar no dia errado.

Quem fez esse aparelho? Responder a essa pergunta ajuda a decifrar o processo de inovação. De quebra, é possível melhor entender o nosso mundinho aqui. O anemômetro foi desenvolvido e construído pelo próprio piloto, um jovem criativo e técnico em eletrônica (nem engenheiro era). Ele, porém, cursara uma escola acadêmica exigente e sua profissionalização foi com a mão na massa.

Invenção é uma descoberta, uma ideia nova. Inovação é combinar — pode ser o velho ou o novo — e vender o resultado. No caso, ele nada inventou, mas juntou o que existia, fazendo um aparelho leve, elegante e confiável. Como os concorrentes eram pesados e caros, sua inovação era vendável. Aliás, a Suíça é o país com o maior número de patentes per capita. Será seu povo mais criativo? Não. As diferenças são outras.

A inovação resulta de gente curiosa e “perguntadeira”: por que isso não funciona direito? Será que poderia criar uma versão melhor ou mais barata? O engenheiro americano F.W. Taylor (1856-1915), que revolucionou o sistema produtivo, resolveu aprender tênis. Antes de adquirir competência com a raquete, registrou duas patentes de dispositivos para esticar a rede. Tinha olho clínico para identificar soluções capengas e propor alternativas. Para que muitos tenham essa combinação de espírito crítico, criatividade e crença de que vale a pena buscar uma nova resposta, é necessário que isso tudo seja valorizado e estimulado. Assim fazem as sociedades onde existe muita inovação. Mais ainda, inovadores isolados são raros. A inovação borbulha quando há um bando de gente trocando ideias.

No passado, a Itália produzia muitos cantores de ópera. O Brasil é um celeiro de jogadores de futebol. E, não é por acaso, as pessoas desabrocham naquilo que é endeusado pela sociedade. Assim é a inovação na Suíça. E óbvio, o Estado oferece facilidades e estímulos para premiar os criativos. Na década de 80, a China enviou uns 100 inventores a uma conhecida feira de invenções em Genebra. O país asiático ainda cambaleava, os participantes não falavam inglês e seus inventos eram para lá de bobocas. Mas o Estado sinalizava assim o seu compromisso com a inovação. Quantos inventores brasileiros estavam lá? Nenhum.

Uma sociedade como a nossa, carente de inovações, precisa estimular, e não penalizar, os inventores e as iniciativas que podem desembocar nelas. Sabidamente, o Estado é o último lugar onde poderemos encontrar inovações. Mas espera-se, pelo menos, que não atrapalhe os poucos a se aventurar nessas direções.

Registrar uma patente é um pesadelo. São anos! Os financiamentos públicos não vão para quem tem as melhores ideias. Pagar impostos é um sofrimento. As notas fiscais encalham nos computadores das prefeituras. Alvarás? Certidões? Trogloditas ambientais à espreita?

A criatividade borbulha em nossas (poucas) startups. Mas não é por acaso que se ajuntam todos para cultivar e proteger um microambiente de empreendedorismo. Quem sabe um dia poderão vicejar fora dessa redoma?

A cabeça da direita - HELIO BELTRÃO

REVISTA VEJA, edição nº 2632

A cabeça da direita

Helio Beltrão, o criador do Instituto Mises, onde estudou Eduardo Bolsonaro, diz que o presidente é um ‘liberal emprestado’ e que o Brasil é ‘socialista’

Por João Batista Jr.



Embora não tenha um cargo no governo de Jair Bolsonaro, o engenheiro Helio Beltrão formou e capacitou quadros hoje instalados em ministérios e no Congresso Nacional por meio do Instituto Mises. Com nome que homenageia o economista austríaco Lud­wig von Mises (1881-1973), a escola se dedica a dar cursos para disseminar os princípios da economia liberal, cujos pilares fundamentais são a pregação do Estado mínimo, do livre mercado e da propriedade privada. Ao lado do atual ministro Paulo Guedes, Beltrão foi membro-fundador do Instituto Millenium, outro think tank liberal. Filho de Hélio Beltrão (1916-1997), ministro da Previdência Social e da Desburocratização durante o período do último presidente da ditadura militar, João Figueiredo, ele se apresenta como um “ultraliberal”. Para Beltrão, Bolsonaro é um “liberal emprestado, não de verdade”, mas que “soube captar como ninguém a vontade da população de se livrar dos pensamentos da esquerda”.

Como avalia o desejo — depois revisto — de Jair Bolsonaro de regular o preço do diesel?

Foi um grave erro. Não cabe ao acionista majoritário ou ao presidente da República controlar a empresa. A verdade é que ele teve uma ação instintiva por medo de perder sua alta popularidade. O erro custou caro. Afinal a empresa perdeu 32 bilhões de reais de valor de mercado em um único dia. Bolsonaro reviu a decisão e permitiu o aumento. Ele não pode cometer equívocos desse tipo, se bem que houve um erro anterior.

Qual?

A questão da reforma da Previdência. Não existe uma vontade de formar uma coalizão junto ao Congresso. O que se vê é uma articulação a distância, como se ele quisesse omitir-se na responsabilidade que pertence ao presidente. Atuando dessa forma, Bolsonaro põe em risco a reforma em si. O mercado sofreu com a tentativa de taxar o diesel, mas o problema de percepção em relação ao governo vem da desarticulação no capítulo da Previdência.

O presidente barrou o aumento do diesel para evitar briga com os caminhoneiros. Isso é um equívoco?

É um erro reagir às pressões da sociedade. Fica a sensação de que ganha aquele que chora mais. O Poder Executivo federal não deve ficar refém de um determinado grupo. Na verdade, o governo deveria remover os obstáculos às exportações de caminhões usados. O excesso de caminhões que rodam no Brasil torna o frete muito barato. A categoria também sugeriu a possibilidade de o BNDES recomprar caminhões usados, o que não faz sentido algum.

Além de interferir na questão do diesel, Bolsonaro se mostra contrário à privatização do Banco do Brasil e da Caixa. Também é um erro?

Bolsonaro é um liberal emprestado. Mas está aprendendo a ter simpatia pelas ideias. Vamos ver até onde isso vai. Paulo Guedes, sim, é favorável à privatização dos bancos estatais. Uma leitura no mercado é que o presidente trouxe Guedes para o seu time porque precisava dele dentro da composição; outra é que acredita mesmo nos fundamentos do liberalismo. Talvez a resposta certa esteja no meio do caminho. Os freios do presidente são mais ligados à viabilidade política, não à crença econômica. Embora liberal no discurso, Bolsonaro se mostra nacionalista quando fala de China e Amazônia. Mas ao menos ele está dando aval a Paulo Guedes.

O Instituto Mises formou, além de Eduardo Bolsonaro, quadros do governo atual como Letícia Catelani, ligada ao chanceler Ernesto Araújo. Como a sua escola se transformou no reduto da nova direita do Brasil?

Não foi por acaso. Em A Revolta de Atlas, livro da americana Ayn Rand, publicado pela primeira vez em 1957, há um recrutamento secreto das pessoas mais capacitadas. É um dos poucos livros em que o empresário é herói, e não vilão. Inspirei-me nesse recrutamento imaginado por Ayn Rand para reunir mentes inteligentes. Há mais de dez anos, existia no Brasil um grupo no Orkut chamado Liberalismo, que contava com 3 000 participantes. Pensando num projeto de longo prazo, entrei naquela rede social para descobrir quem eram os melhores entre os interessados no tema. Quando lancei discussões sobre a economia nacional, o dono da comunidade ficou irritado comigo. Então saí do grupo, mas criei outro, chamado Liberalismo Verdadeiro. Os bons migraram para mim. Foi uma ebulição. Os jovens de 16 anos queriam saber de economia e como ascender na vida com o trabalho, mas sem esse ranço da esquerda. Decidi criar o Instituto Mises em 2007 porque as faculdades de economia do Brasil, em geral, são ruins e tomadas por ideologias.


“Liberal no discurso, Bolsonaro é nacionalista quando fala de China e Amazônia. Ele está aprendendo a ter simpatia pelo liberalismo, mas não sei até onde vai”

Quais ideologias?

Até pouco tempo atrás, a Universidade Federal do Ceará tinha as disciplinas Marx 1 e Marx 2. As faculdades não falam da teoria austríaca dos ciclos econômicos, ensinam apenas os estudos de John Maynard Keynes, para quem tudo é questão de subdemanda. Keynes fez suas linhas mestras em cima dos ciclos recessivos, tendo como um dos principais remédios o investimento por parte do governo. O Estado seria o fiador. A esquerda domina a academia e alimenta o pensamento geral de que o Estado precisa tomar conta de tudo.

Qual o efeito disso?

A mentalidade anticapitalista faz com que os empresários virem vilões. Viceja certa teoria da exploração amparada na luta de classes. A cada geração esse raciocínio torto muda de nome: antes era rico contra pobre, depois veio o branco contra os não brancos, agora é homem contra mulher. Sempre existe um que explora o oprimido. Daí a teoria austríaca questiona: o empresário explora de fato? A pessoa escolheu sair do campo, onde morreria de fome, pegou suas coisas de modo voluntário e foi trabalhar na cidade. Se não foi obrigada, como pode haver exploração? É uma bobagem, que precisa ser deixada de lado em favor do livre mercado.

Qual a principal forma de defender o livre mercado?

Apoiando o Estado mínimo. O Estado não pode ter privilégios. Hoje, ele tem o monopólio dos Correios. Tem o monopólio da exploração dos rios e do subsolo. Mas onde o governo tem monopólio o país quebra a cara. Usando o método de Mises, o Estado só deveria fazer aquilo que entregaria com a eficiência da iniciativa privada.

Nesse contexto, qual deve ser o papel do BNDES?

O BNDES deveria acabar. Paulo Guedes sabe disso, porém há obstáculos políticos para fechar as portas do BNDES. Mas ele já avisou: vai pedir a devolução do dinheiro emprestado. E também não vai mais emprestar dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador e do Tesouro.

Há hipocrisia entre os empresários “liberais” que recorrem aos empréstimos do BNDES?

Não, é a regra do jogo. Se meu competidor pega juros baratos, tenho de defender os direitos dos acionistas e fazer o mesmo.

O presidente Bolsonaro, depois de muito vaivém, disse que o Brasil permanecerá no Acordo de Paris. É bom que permaneça?

Tenho problemas com esses acordos multilaterais. Na filosofia liberal, a disputa funciona assim: você causou um dano, aquele que sofreu mostra o nexo causal e busca seus direitos na Justiça. É muito complicado um país já ser penalizado e taxado por algo que ele nem poluiu.

O senhor contesta o aquecimento global?

Não, mas ele foi causado pelo homem? Se sim, que se demonstre isso na Justiça. O mundo está se aquecendo nas últimas duas décadas, sim. Mas aquece, esfria, aquece, esfria… Agora, o aquecimento vai prejudicar mais do que beneficiar?

Qual é o benefício do aquecimento global?

As áreas temperadas poderiam virar tropicais e ter mais capacidade agrícola.

Por outro lado, fauna e flora de localidades como Groenlândia, Alasca e Finlândia, por exemplo, poderiam ser extintas.

O que se sabe é que sempre houve mudança climática. O meu ponto é simples: causou algum dano? Prove na Corte. Se o Acordo de Paris está punindo agora, por meio de intervenção e impostos, algo que acontecerá no futuro, sou contra. Quem se prejudica é o pobre, o que vale também para essa história do canudo de plástico. Só querem permitir o uso da versão biodegradável, muito mais cara. O pobre acaba sendo o maior prejudicado.

O senhor apoia a exploração de minério na Amazônia?

Não vejo problema. A Amazônia não acaba nunca, quem vai para lá sabe disso. Mesmo uma mina aberta trará um desenvolvimento enorme. Emprega pessoas, desenvolve a região, requer a construção de estradas…

Abrir estrada em área nativa não é um problema?

Não acredito que o governo saiba cuidar de área pública. O que questiono não é a preservação, mas sim o governo responsabilizando-se pelo espaço — não vai funcionar nunca, tanto que há desmatamento. Devemos nos inspirar no modelo do Chile, onde quem preserva, com regras claras, é a iniciativa privada.

Como o senhor vê a influência de Olavo de Carvalho no governo?

Ele foi decisivo para combater as ideias erradas do esquerdismo radical, mas tem sido negativo. Na medida em que sua influência vai na linha da ruptura e da não compreensão do processo político, torna-se perigosa. A visão dele e de seus seguidores radicais é que Bolsonaro tem aliança com o povo, e que quem estiver atrapalhando essa visão precisará ser tratorado — não importa que seja o Congresso. Eles tentam suplantar as regras de uma República. Essa turma que se vê iluminada não tem sabedoria, pois vai quebrar a cara por brigar com uma força mais poderosa: o Congresso. Existe um viés conspiracionista, como se houvesse um conjunto de pessoas escondidas atrás da cortina que planeja maquiavelicamente a tomada socialista da Terra. Afirmar que as urnas poderiam ser fraudadas nas eleições deriva dessas teorias que não têm sentido. Também senti vergonha de quem disse que o Jean Wyllys deixou o Brasil por ter articulado o atentado contra Bolsonaro.


“Quando está na classe executiva, você pega uma fila diferenciada no mundo todo — exceto no Brasil. O cara que paga mais tem uma fila diferente. A fila comum aqui é socialismo”


Bolsonaro chegou a declarar, em seu discurso de posse, que o Brasil é socialista. É mesmo?

Sim, é o que mais há por aqui. Temos um pouco de mercado, você pode comprar e vender, mas a definição tradicional de socialismo diz que quem tem mais capacidade para produzir deve ajudar aquele com necessidade. Seria a socialização dos bens e dos meios de produção. O antissocialismo seria ter livres trocas, sendo elas voluntárias. Nessa métrica, não podemos soltar um pum sem precisar de um alvará ou reconhecimento de firma. Somos regulados desde o nascimento até a certidão de óbito. Há o imposto progressivo. Quanto mais se ganha, maior a alíquota que se paga — isso é socialismo. Você compra um carro na Flórida, e o imposto se dá pelo peso do veículo, que impacta o solo. O IPVA no Brasil se dá pelo valor do carro. Outro exemplo: o Brasil é o único país que conheço onde não há express line em aeroporto.

O que seria express line?

Quando está na classe executiva do avião, você pega uma fila diferenciada nos aeroportos. Eu fui a Myanmar esses tempos, e foi assim, como é em todo o mundo — exceto no Brasil. O cara que paga mais tem uma fila diferente. Esse absurdo, a fila comum, é um exemplo, sem dúvida, do socialismo no Brasil.

O raio do papel - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA, edição nº 2632

Deu um nó. Está sempre dando, na política brasileira, porque é mesmo da natureza da política produzir complicação, aqui e no resto do mundo. Mas desta vez parece que se formou entre governo, Congresso, partidos e o resto da nebulosa que compõe a vida pública brasileira um nó de escota duplo, ou um lais de guia holandês, ou algum outro dos muitos enigmas criados pela ciência dos marinheiros — desses que você olha, mexe, olha de novo, e não tem a menor ideia de como desfazer. É fácil para os marinheiros — mas só para eles. Como, no presente momento, não há ninguém com experiência prévia a respeito da desmontagem dos nós que apareceram desde que Jair Bolsonaro formou o seu governo, o mundo político está com um problema sério. Como se sabe, é a primeira vez na história recente do Brasil que o time inteiro de cima foi montado sem ninguém pedir licença aos políticos, ou sequer perguntar a sua opinião — e menos ainda comprar seu apoio com a entrega de cargos na administração. Há muito técnico, muito general etc. Mas não há, como a ciência política considera indispensável, nada de “engenharia política”. Isso quer dizer, na prática, que ficou difícil fazer a turma da situação votar a favor do governo — pois a maior parte dela passa mal se tiver de votar alguma coisa por princípio, ou seja, de graça. É esse o nó que não desata. Por causa dele, dizem que o governo está “paralisado há 100 dias”.

Vejam, para citar o exemplo mais indecente do momento, a reforma da Previdência. Nada mais natural que o PT, seus auxiliares e o resto da esquerda fiquem contra. Têm mesmo de ficar: a única escolha que faz sentido para a oposição, hoje, é ser 100% contra qualquer ideia que tenha a mínima chance de melhorar o Brasil em alguma coisa. Isso seria, em seu raciocínio, ajudar o governo Bolsona­ro a ser bem-sucedido — e um governo Bolsonaro medianamente bem-­sucedido é um desastre mortal para o consórcio Lula-PT. Que futuro vai ter essa gente na vida, a não ser que o governo acabe em naufrágio? Nenhum. É compreensível, assim, que a oposição não aprove nada que possa dar certo. Mas PT, PSOL e PCdoB, somados, não chegam a 15% da Câmara dos Deputados. E o resto: por que eles demoram tanto para votar a reforma? Mesmo descontando outras facções antigoverno, daria para aprovar. Resposta: demoram porque querem cargos na máquina e não estão levando.


“Eles demoram para votar porque querem cargos na máquina e não estão levando”

É isso: o sujeito quer uma diretoria, uma superintendência, uma vice-­presidência — uma boquinha gorda qualquer, Santo Deus — e não tem a quem pedir. Falam em “agilização” das nomeações. Mas nomeação, que é bom, não sai. Chegou-se a falar num “Banco de Talentos”, para onde a politicalha mandaria os nomes que quer empregar — e onde as escolhas seriam feitas segundo “critérios técnicos”. Também não rolou. Um deputado especialmente desesperado com a demora, Felipe Francischini, chutou o balde e pediu um emprego na estatal Itaipu para a própria madrasta. Outro, um Elmar Nascimento, do liberalíssimo DEM, disse que não quer saber de “talentos”; quer emprego mesmo, e dos bons. “Não vamos nos contentar só com marmita”, ameaçou ele. Histórias como essa encheriam a revista inteira; não vale a pena ficar repetindo a mesma ladainha. O certo é que a manada quer os empregos, não está conseguindo e, pior que tudo, não sabe com quem falar para descolar a nomeação. Não adianta falar “no governo”, ou “no palácio”. Tem de ser com o sujeito de carne e osso que manda assinar o raio do papel que vai para o Diário Oficial. E quem é que chega até ele?

A Caixa Econômica Federal, para dar um exemplo só, trocou todos os vice-presidentes, 38 dos quarenta diretores e 75% dos 84 diretores regionais — tudo propriedade privada dos políticos. Mais: quer cortar em dois anos 3,5 bilhões de reais em despesas como aluguéis ou “prestação de serviços”. Só na Avenida Paulista, a CEF ocupa hoje sete prédios — nenhum outro banco do mundo chegou perto disso, mesmo na época em que bancos tinham milhares de agências. Em Brasília é pior: são quinze prédios, um deles só para tratar da admissão de funcionários, como se a Caixa tivesse de admitir funcionários todos os dias. Até uma criança de 10 anos sabe que mexer nisso é mexer diretamente no interesse material dos políticos. Eles perderam esses cargos; querem todos de volta, desesperadamente. Na CEF, no serviço contra as secas, nos portos, nos aeroportos, nos armazéns de atacado, no Oiapoque e no Chuí.

Uma coisa é pedir um negócio desses ao ministro Onyx Lorenzoni. Outra é pedir ao general Santos Cruz. Dá para entender o nó, não é mesmo?

Do tempo - LYA LUFT

ZERO HORA - 27/04

Faz alguns anos, tive, num sonho, um vislumbre de uma escultura interminável de corpos humanos entrelaçados emergindo muito abaixo de mim e perdendo-se no infinito acima de minha cabeça. Talvez seja um dos significados da existência nossa: encadeamento e continuação. Como um novelo desenrolando-se incessantemente, todos nascendo uns dos outros, uns por cima dos outros, cada um estendendo as mãos para o alto um milímetro mais e mais e mais: somos novelo e fio ao mesmo tempo.

Meu gesto repete o de uma de minhas antepassadas; meu riso será o de algum descendente meu, que jamais conhecerei, o fio primeiro de minhas ideias nasce de outro pensamento milênios atrás, e continuará se desenrolando depois que eu tiver deixado de existir há séculos, num tempo que não flui como o imaginamos, esse tempo medido e calculado. Ele é pulsação, surpresa.

Às vezes, suspiramos pelo conforto que, vista de longe, parecia ser a vida quando tudo era mais limitado e certo: menos opções, menos possibilidade de erro. Temos de aprender a conviver com essas novas engrenagens de tanta surpresa e perplexidade, mas tanta maravilha. Temos de estar mais alertas do que décadas atrás, quando a vida era - ou hoje nos parece - tão mais simples: precisamos estar mais preparados, para que ela não nos dilacere. Temos de ser múltiplos, e incansáveis.

Que cansaço.

Pois a vida não anda para trás: o preço da liberdade são as escolhas com seu cortejo de esperança, entusiasmo, hesitação e angústia - para que se criem novos contextos e se realizem novas adaptações, que podem não ser estáveis. Pois as inovações, a corrida do tempo e as possibilidades aparentemente infinitas já nos puxam pela manga e nos convidam para outra ciranda de mil receitas: vamos ser inventivos, vamos ser produtivos e competentes, felizes a qualquer preço na companhia de todos os deuses e demônios nessa sarabanda. Fora dela, nos dizem, restam o tédio, a paralisia e a morte.

Será mesmo assim? Ou ainda existem, e podemos descobrir, lugares ou momentos de tranquilidade onde se realiza a verdadeira criatividade, onde podemos expandir a alma, onde podemos amar as pessoas, onde podemos contemplar a natureza, a arte, e os rostos amados, e construir alguma paz interior? Creio que sim.

Para que as emoções e inquietações positivas não entrem em coma antes que termine de definhar o corpo.


Vários anos sem alta real do mínimo - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 28/04

É preciso arrumar a casa antes de retomar política de valorização do salário

Desde 1994 o salário mínimo subiu 167%, já descontada a inflação (bit.ly/2IV8B5j). Ou seja, 4,2% ao ano.

No mesmo período, a economia cresceu 57%, e a produtividade do trabalho, 25%, ou pouco menos de 1% ao ano.

Há limites à política de elevação do salário mínimo real. Sabe-se que aumentos do salário mínimo a partir de níveis relativamente baixos não apresentam efeitos deletérios sobre o funcionamento da economia.

Não pressionam a informalidade nem elevam a taxa de desemprego.

Esse parece ser o caso, por exemplo, da economia americana, em que o salário mínimo é de 34% do salário mediano. Salário mediano é o daquele trabalhador em comparação ao qual metade da força de trabalho ganha mais e a outra metade ganha menos.

Se considerarmos os países da OCDE em 2017, a média dos salários mínimos como proporção do salário mediano foi de 53%. No Brasil, o salário mínimo é de 75% do mediano.

Ou seja, o salário mínimo é baixo no Brasil pois a produtividade do trabalho é baixa. Dada a realidade brasileira, já foi feito um fortíssimo esforço de elevar o salário mínimo.

Não parece haver espaço para novos aumentos reais. De fato, trabalho de técnicos do Ipea indica que aumentos do salário mínimo têm tido efeitos expressivos no aumento da informalidade (bit.ly/2ZExnfS).

No entanto, os impactos da política de valorização do salário mínimo sobre o funcionamento do mercado de trabalho constituem o menor dos problemas dessa política.

A grande dificuldade é que os benefícios de praticamente todos os programas sociais de nosso Estado de bem-estar social são vinculados ao salário mínimo.

O aumento real do salário mínimo tem impacto direto sobre o gasto público. Em tempos de restrição fiscal extrema, e em que a dívida pública apresenta trajetória explosiva, não há espaço para subir o salário mínimo.

Segundo o anexo IV da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), cada 1% de aumento do salário mínimo gera R$ 3 bilhões de elevação do gasto primário da União.

O Brasil é um país relativamente pobre. A produtividade do trabalho é 1/5 da americana. O salário mínimo é baixo pois o país é relativamente pobre.

O mesmo problema ocorre com a Previdência. O benefício pago pelo INSS é relativamente baixo pois o salário do trabalhador ativo é baixo. No entanto, o benefício do sistema previdenciário do setor privado é da ordem de 80% da renda da ativa. Isto é, nosso sistema previdenciário tem uma das mais elevadas taxas de reposição.

Há forte demanda de nossa democracia, absolutamente legítima, de tentar acelerar o processo de redução das desigualdades e, principalmente, de elevar a qualidade de vida dos brasileiros.

O problema é que, a partir de certo ponto, a agenda de redução das desigualdades e de inclusão por meio de programa sociais choca-se com a agenda de crescimento econômico e de estabilização da economia.

Parece que já passamos do ponto. Teremos que conviver diversos anos com a manutenção do valor real do salário mínimo e rezar para que a desorganização da economia não produza piora como tem ocorrido na Argentina e na Venezuela.

Após a arrumação da casa e a reconstrução de uma posição sólida para as contas públicas, a política de valorização do salário mínimo pode ser retomada.

Quando o momento chegar, o ideal será adotarmos a sugestão de Nelson Barbosa em sua coluna neste espaço na sexta (26): vincular o salário mínimo à renda per capita.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Os subversivos do Brasil de 2019 - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 28/04

Ataques irritam generais; sem oposição, elite no poder causa sururu autodestrutivo


O general bebe guaraná e diz que a comida estava muito boa, mas “a gente come qualquer coisa, cobra e farinha, se for o caso”.

“Cobra e farinha” talvez seja citação da frase heroica de Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor da conquista do Maranhão, que combateu os franceses no século 17 (“somos homens que um punhado de farinha e um pedaço de cobra quando o há nos sustenta”, dizia, segundo a história de Capistrano de Abreu).

Agora são outros os capitães e os franceses.

A conversa fica um pouco mais aberta no fim do almoço. “E se essa gente uma hora for procurar os jovens oficiais, se essa gente for atrás dos capitães?”, pergunta o general, da ativa. Essa gente?

O assunto eram os “apoiadores radicais” de Jair Bolsonaro e seus ataques aos militares. O jornalista os chamou de “ala antiestablishment” do governismo; o general, de “os seguidores desse homem”, o influenciador digital Olavo de Carvalho, ideólogo de inspiração do bolsonarismo puro.

Entrincheirado, o militar se recusou a rebater os insultos do influenciador digital e a analisar a atitude do presidente em relação a Carvalho. Disse apenas que o país tem mais com o que se preocupar do que marcar passo com fofoca.

Quanto ao vice-presidente da República, Hamilton Mourão, primeiro alvo do ideólogo de Carvalho, o general disse que uma “voz ponderada [como seria a de Mourão] ajuda”, mas é preciso ser “econômico, prudente e leal nas manifestações, muito de vez em quando, na maioria das vezes em conversa particular”.

Mais impressionante mesmo foi a menção aos capitães, a uma possível tentativa de agitar quartéis, de baixo para cima. Para qualquer adepto da ordem democrática, militar ou paisano, essa tentativa se chama corretamente de subversão.

Não há notícia dessa tentativa de agitação. Mas o general que bebe guaraná e fala de comer cobra com farinha não foi o único militar a ficar irritado e preocupado com o ataque do bolsonarismo antiestablishment, de Carvalho em particular, aos generais.

Não se tratou de insulto apenas pessoal, mas de um tipo de ataque que, em situação de crise, pode ser tomado como tentativa de desmoralizar o comando das Forças Armadas, um meio insidioso de disseminar indisciplina.

Dois generais dizem que não há a menor possibilidade de a tropa ouvir agitadores, mas a mera cogitação de que alguém possa vir a criar caso nos quartéis já é motivo de irritação sombria.

É evidente que o país está destrambelhado quando um grupo de extremistas biruta, boca suja, ignorante, feroz e sinistro se torna capaz de causar tanto desarranjo, alguns deles aboletados no Planalto. Mas o destampatório não acontece apenas na copa e na cozinha digital do palácio.

No conflito com procuradores, certos parlamentares e bolsonaristas nas redes insociáveis, ministros do STF puseram os pés pelas mãos com um inquérito de exceção, o das “fake news”.

Noutro caso, o governismo tenta achar meios de decapitar ministros a fim de ter poder no Supremo. Os jacobinos do Ministério Público, por sua vez, querem levar a guilhotina para o Congresso ou além, faz tempo. A “ala antiestablishment” do governo esclarece de vez que vai perseguir quem quiser chamar de “ideólogos”, “esquerda”. Etc.

Não é tumulto causado por revolta popular, movimentos sociais ou oposição, que ora inexiste. A gente assiste bestificada ao sururu atroz da nova elite do poder, uma obra de desconstrução.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Quero ser grande - VERA MAGALHÃES

O Estado de S.Paulo - 28/04

Maturidade em política independe da idade, mas é requisito fundamental

Na polarização extremada e muitas vezes irracional que tomou conta da política brasileira há várias virtudes em falta no mercado, do bom senso à tolerância, mas talvez uma das mais escassas seja a maturidade. Na mesma velocidade com que se radicalizou, o debate ganhou contornos infantis que tornam constrangedora a tarefa de analisar alguns acontecimentos.

Eleita aos 25 anos com 264 mil votos, a sexta maior votação de São Paulo, a deputada federal Tabata Amaral (PDT) foi execrada nas redes sociais por ter se encontrado com o governador do Estado, João Doria Jr., e aceitado – vejam só que heresia! – tirar uma foto, ainda por cima sorrindo, ao seu lado.

Os ataques vieram tanto da esquerda presa ao mantra do “Lula Livre” como de setores da nova direita incomodados pelo fato de o perfil moderado da deputada encontrar adesão em parte do público que apoiou os movimentos de rua pró-impeachment de Dilma Rousseff.

E eis o grande pecado de Tabata, uma jovem pobre que se formou em Harvard e, mesmo estando em um partido de centro-esquerda, dialoga e recebe apoio de movimentos como RenovaBR e Acredito: ela é difícil de rotular dentro das etiquetas reducionistas em voga no momento atual da política brasileira.

Aos 25, Tabata demonstrou mais maturidade que muitos políticos mais velhos ao encarar a gritaria com naturalidade e, com paciência, explicar o que deveria ser óbvio: como política eleita, ela tem como obrigação dialogar (eita palavrinha maldita nos dias de hoje) com o governador do seu Estado e tentar alocar recursos para a área na qual escolheu focar seu mandato, a Educação.

Busquemos outro caso que dominou o noticiário nas últimas semanas, com maior estridência na última: os pitis de Carlos Bolsonaro contra o vice-presidente da República e os militares, ecoando as diatribes do guru Olavo de Carvalho.

Carlos é político por delegação paterna desde os 17 anos. Há 18 anos, portanto, exerce um mandato como vereador na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Número 2 de uma dinastia de políticos comandada pelo hoje presidente da República, apesar de toda essa bagagem encara política como uma refrega entre turmas rivais da quinta série. Juntando a picardia juvenil com doses cavalares de paranoia e uma sintaxe de difícil compreensão, faz das redes sociais – suas e não raro as do pai-presidente – palco para uma incessante fustigação do general escolhido por Jair Bolsonaro para governar com ele por quatro anos.

Não amadureceu, o número 2, mesmo obrigado pelo pai a entrar na política ainda tão jovem.

Outro que entrou na política muito jovem foi o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Filho do então prefeito Cesar Maia, foi por muito tempo eclipsado pelo estilo fulgurante do pai, contrário a sua patente timidez.

Desde que, ungido pela circunstância da queda de Eduardo Cunha, ascendeu à presidência da Câmara, no entanto, Maia parece ter encontrado um trilho próprio de atuação e discurso: liberal na economia, moderado na política, um contraponto à própria pregação bolsonarista estridente.

Tem sido a voz mais lúcida na defesa da política como único caminho de mediação num País heterogêneo social e economicamente como o Brasil, e vai conseguindo amalgamar em torno de si um centro que levou uma surra nas eleições dos dois lados do extremismo histérico e encontra dificuldade em reencontrar um eixo.

Maturidade independe de idade, como se vê diante de exemplos de diferentes gerações de jovens políticos brasileiros. Mas nunca foi um requisito tão fundamental para evitar que o País continue perdendo tempo que deveria ser destinado a tirá-lo do buraco, mas é gasto em infantilidades diárias praticadas e vomitadas nas redes sociais, do Planalto ao STF.

Interferência inadmissível - GENERAL FELÍCIO

O TEMPO - MG - 28/04

Olavo de Carvalho, ex-comunista, ataca militares no governo


Os interesses da nação estão muito acima dos interesses de um indivíduo ou de qualquer grupo, independentemente de laços de sangue ou de qualquer outra natureza. Há que se enfatizar que a moral (comportamentos e valores) do Estado é diferente da moral do indivíduo. A começar que, entre Estados, não existe amizade, apenas interesses.

Os antagonismos e obstáculos internos, que ameaçam tais interesses, não podem ser tolerados. Há que se cortar na própria carne se assim se fizer necessário. Principalmente se ocorrem sob grave crise sociopolítica e econômica, ética, moral e cívica, como a que cobre o Brasil. E, ao se cortar, não se pode deixar dúvidas a serem exploradas pela negativa oposição.

A reação de parcela da população brasileira para confrontar tal crise desesperadora foi eleger um candidato que, patriota e defendendo valores conservadores, se apresentou como capaz de resgatar o governo e recolocar o país nos trilhos: Jair Bolsonaro.

Eleito, iniciou a reação esperada, montando ministério capaz, apoiado em militares e civis, patriotas e competentes. O sr. Paulo Guedes é exemplo notável de competência e amor ao Brasil. Tem um vice-presidente experiente, inteligente, preparado, com grande liderança nas Forças Armadas, que complementa a força da popularidade do presidente. O vice é barreira que o presidente deve ter para que não se exponha a qualquer hora, a cada esquina, como, por vezes, tem ocorrido, a perguntas e críticas extemporâneas, queimando sua imagem, o “mito”, construída a duras penas. É o vice o filtro e termômetro de situações que surgem a cada momento, próprias de um governo com acirrada oposição, e que devem ser neutralizadas na origem, sem atingir a figura do presidente.

Entretanto, esse tem permitido o protagonismo de seus filhos, fontes de crises, pois não agregadores, e de alguém que tem sido apresentado como o verdadeiro orientador político dos Bolsonaros, Olavo de Carvalho. Estes, segundo a imprensa, têm influído na tumultuada dança de cadeiras ministeriais. Agora, voltam-se para comprometer, auxiliando a esquerda nefasta, um dos pilares do governo que mal começou: a união entre presidente e vice-presidente. O que querem esses irresponsáveis? A derrocada do governo Bolsonaro?

O sr. Olavo, ex-comunista, arrogante e autoritário, “dono da verdade”, com discurso desabrido e, por vezes, chulo, ataca os militares no governo e, principalmente, o vice-presidente. Em seu último vídeo, apela para a desqualificação intelectual e moral dos militares ministros, e dos militares em geral, prática marxista-leninista. Ministros militares reconhecidos pelo desempenho, com total sucesso, em difíceis e duras missões internacionais.

À afirmação do sr. Olavo de que a Academia Militar nada produz, respondo que as Forças Armadas sempre estiveram presentes nos momentos de grandes inflexões históricas da nação. Os produtos da Academia são muitos, entre eles homens íntegros e preparados, patriotas, cujo partido é o Brasil. São forjados, prioritariamente, como administradores do caos, isto é, do combate. Porém, têm os conhecimentos essenciais que lhes permitem atuar politicamente quando necessário. Não se fazem de pseudointelectuais, difundindo ideias estapafúrdias que iludem os incautos, buscando interesses rasteiros.

Como exemplos de produtos da Academia, cito os atuais ministros general Santos Cruz, comandante das tropas da ONU no Haiti e comandante da primeira tropa de combate da ONU no Congo, reconhecido pela ONU e por oficiais estrangeiros como líder e possuidor de grande visão política e estratégica; e general Augusto Heleno Pereira, comandante das Forças da ONU no Haiti, sendo reconhecido, também, pela liderança e inteligência, e escolhido pelo grupo O Globo, em 2005, como expoente militar do ano.

Não se pode aceitar, com o país ainda em grave crise, com dificuldades em realizar as profundas e variadas reformas de que o Estado necessita, que atitudes irresponsáveis, de pessoas chegadas ao governo e ao presidente, criem crises continuadas a partir de animosidades aparentes ou de atritos menores, fazendo com que o presidente perca apoio popular, seu grande cacife, e, assim, facilite o trabalho da oposição esquerdista, ferrenha, infiltrada e encastelada nos Poderes do Estado.

Para tal oposição, sem pensar no Brasil e na nação, quanto pior, melhor!

Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!

Marco Antônio Felício é General do Exército e ex-candidato a deputado estadual pelo PSL

A síndrome do touro - GAUDÊNCIO TORQUATO

O TEMPO - MG - 28/04

Uma constatação: o Brasil padece da síndrome do touro. Em vez de pensar com a cabeça e arremeter com o coração, faz exatamente o contrário. Vejam: o presidente ouve impropérios contra militares num vídeo de Olavo de Carvalho, põe em sua rede social e retira 20 horas depois. Repudia a acusação, mas exalta a figura do guru. O filho Carlos joga mais pólvora na fogueira e compartilha o vídeo com seus seguidores. Síndrome do touro.

O governo, trôpego e sem rumo, embala a reforma da Previdência e a encaminha sem discussão à Câmara. Falta articulação política, e o pacote ganha intenso debate na comissão que deveria analisar sua admissibilidade, não o mérito. A oposição procura obstruir a sessão. A tensão entre Executivo e Legislativo se escancara: quem comandará os próximos passos na comissão especial e no plenário? Síndrome do touro.

O STF, criado em 1890 como instância máxima de um dos Três Poderes, entra em parafuso com a decisão de seu presidente, Dias Toffoli, de censurar uma revista e um site pela reportagem “O amigo do amigo de meu pai”. Nossa mais alta Corte padece de uma das maiores crises de credibilidade de sua história. Alguns ministros sofrem intenso bombardeio midiático. Síndrome do touro.

As relações entre os Três Poderes atravessam momento crítico. O Legislativo tenta criar um escudo em defesa de prerrogativas, sente-se acuado e insere em sua agenda uma CPI da Toga. Em outra frente, um ministro acusa o Ministério Público de “hiperativismo”, com “procuradores usando métodos questionáveis para transformar investigados em delatores”. Sobram termos como “gentalha”, “cretinos”, “incivilizados”. Procuradores destemidos enfrentam magistrados, e um deles sofre processo administrativo disciplinar no Conselho do MP. Síndrome do touro.

Difamação, injúria, calúnias e uma coleção de acusações inflamam a arena das redes sociais. Bolsonaristas digladiam-se com lulistas, e sobram flechadas para todos os lados. Cicatrizes de campanha permanecem abertas. A fogueira recebe cargas de lenha, ampliando o apartheid social. Síndrome do touro.

A esfera artística, perfilada à esquerda, ressente-se da política do novo governo de rebaixar para R$ 1 milhão o teto de patrocínios culturais. A Lei Rouanet já estava na mira. A decisão aumenta o fosso entre os artistas e a administração, fechando a interlocução e a articulação. A classe deverá tocar alto suas trombetas. Síndrome do touro.

Os parlamentares ainda não se deram conta da imprescindibilidade das reformas, como a previdenciária. Sem elas, não haverá amanhã radioso. Um país de grandes riquezas ameaça se transformar num território de misérias. O Congresso parece Torre de Babel, onde muito se fala e pouco se ouve. E o que se ouve nem sempre é o mais adequado.Que se proclame: o momento sugere que se pense com a cabeça e arremeta com o coração. Não como faz o touro.

Tragédias - ARMÍNIO FRAGA

FOLHA DE SP - 28/04

Somos um país de renda média e também um dos mais desiguais, atrasado portanto


Entrego aqui o primeiro artigo para o espaço mensal que esta Folha acaba de me conceder e pelo qual sou grato.

Temendo algum bloqueio, sentei para escrever na Sexta-Feira Santa. Naquele dia, no caderno Mercado, li uma matéria sobre a evolução da participação do nosso PIB no PIB mundial desde 1980: caiu de 4,4% para 2,5%. Se tivéssemos acompanhado a média do crescimento global, teríamos um PIB 76% maior. Imaginem só como seria.

Com frequência se diz que o Brasil é a oitava economia do mundo. Tudo bem, não é de se jogar fora. Mas o que importa mesmo é a renda per capita, e aí caímos para a 75ª posição. Somos um país de renda média e também um dos mais desiguais, atrasado portanto. Refiro-me a dados do FMI e do Banco Mundial.

Estamos como na estorinha irlandesa: um viajante perdido no campo verde para na estrada e pergunta a um velho pastor como se chega a Dublin. Ele responde: "Não sei, mas não começaria aqui...".

Como não temos essa opção, nos resta por ora evitar problemas maiores e avançar onde der. Mas as pessoas estão descrentes de tudo e todos, e sentem que se exige mais sacrifício dos que menos podem, não sem razão. Quero discutir neste espaço como criar genuínas oportunidades para os que menos podem e como exigir dos que mais podem uma contribuição relevante.

Um país atrasado em tese deveria ser capaz de acelerar seu crescimento investindo mais do que os avançados, especialmente em gente, e absorvendo melhores tecnologias e práticas. Não foi o que aconteceu aqui. Isso fica claro quando se compara a evolução da nossa renda per capita com a dos Estados Unidos. A comparação é deprimente: estamos em torno de 20% desde 1960.

Perdura uma certa nostalgia quanto ao período do pós-guerra, quando atingimos 29% da renda americana, mas se ignora que a estratégia adotada (economia fechada e estatizada) foi incapaz de nos levar até os padrões de vida dos avançados, por falhas fatais de desenho (fragilidade macroeconômica, descaso com educação e desigualdade). A economia acabou se espatifando na década perdida de 1981-1993, quando se devolveu boa parte dos ganhos auferidos desde 1960.

Verdade que desde então avançamos bastante com a estabilização e a mudança de foco do Estado a partir de 1995, mas aos poucos um bom caminho foi sendo abandonado. A partir de 2011, o intervencionismo e a radical perda de disciplina fiscal levaram a um novo colapso. Foi uma volta a erros do passado, amplamente apoiada pelo andar de cima. A queda na renda per capita repetiu os 10% da década perdida, desta vez em um terço do tempo. Voltamos aos 20% da renda americana de 1960.

Não fora suficiente a atual depressão econômica, metade das pessoas empregadas não tem carteira assinada e se aposenta mais tarde. A educação continua deficiente e metade das moradias não tem esgoto adequado. Não há solução para melhorar a vida de quem mora nas favelas e tampouco para a violência. E por aí vai.

E agora? Como construir um caminho para um desenvolvimento mais inclusivo, acelerado e sustentável? Estamos diante de múltiplas crises, que se reforçam, desafiam as instituições e ameaçam a qualidade da democracia. Difícil imaginar um caminho completo, coerente e viável a partir daqui.

No momento a prioridade é a reforma da Previdência, passo crucial para sanar a crise fiscal e redutora ela própria de desigualdade. Urge também uma reforma do Estado, que precisa fazer mais com menos. Em ambos os casos as resistências já estão se armando. Como parte da resposta, urge também a eliminação dos subsídios e vantagens tributárias aos de renda mais alta, que envenenam o tecido social. Só assim as pessoas apoiarão as transformações necessárias.

Arminio Fraga
Economista, é ex-presidente do Banco Central

"O desafio da confiança" - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 28/04

Um terço da população toma por pressuposto que quem pensa diferente está errado e de má-fé


"O Instituto Ipsos divulgou neste mês de abril pesquisa que mostra uma diminuição da confiança e do diálogo entre pessoas e grupos com ideias políticas diferentes. É uma tendência mundial, mas o Brasil ficou acima da média. O radicalismo nas discussões político-partidárias e a falta de disposição para aceitar diferenças viraram parte do quotidiano nacional, o que coloca um desafio imenso diante das instituições formais e informais brasileiras, uma vez que a dinâmica social e o sistema político são diretamente afetados pelo nível de confiança e relacionamento entre as pessoas.

Os dados apontam que 32% dos brasileiros acreditam que não vale a pena conversar com pessoas de visões diferentes das suas. O número ficou acima da média mundial da pesquisa (24%). Para 39% dos brasileiros, a frase “quem tem visão política diferente de mim foi enganado” é verdadeira (a média é de 37%). Ainda mais grave, 31% acham que aqueles que possuem visão política diferente das suas não ligam de verdade para o futuro do Brasil, contra 29% da média geral. Essas informações revelam quão polarizada está a sociedade brasileira, e isso se traduz na forma como tratamos familiares, colegas de trabalho e concidadãos no espaço público.

Talvez, com a evolução dos meios de comunicação e a presença das redes sociais, esses dados causem espanto. Afinal, a facilidade de acesso à informação não deveria contribuir para uma cultura de diálogo? Desde a Constituição de 1988, já se passaram mais de 30 anos – não haveria, portanto, de ter-se formado já em nossa sociedade uma cultura verdadeiramente democrática, em que o pluralismo de ideias seja visto como uma conquista, e não como algo a ser combatido?

Para responder à primeira questão, as próprias redes sociais dão uma pista de uma das causas do problema. Já em 1942, o filósofo francês Louis Lavelle, em La parole et l’écriture, apontava que o avanço da técnica permitiu a difusão das palavras para muito além do círculo próximo que era comum a elas, criando um hiato cada vez maior entre quem profere uma mensagem e quem a recebe. Isso é muito visível nas redes sociais, onde se fala ou escreve a um público frequentemente sem rosto, e justamente por isso a tendência de tomar posições extremadas tende a aumentar. A facilidade de “deixar de seguir” pessoas com as quais não concordamos acaba por fechar as pessoas em relações virtuais com quem compartilha apenas as mesmas visões, uma tendência que pesquisas recentes vêm confirmando.

Não é de se espantar que isso seja replicado na “vida real”. Não se nega que a internet também tenha favorecido o acesso a informações que vão muito além do que era possível imaginar antes, o que é algo muito bom. Entretanto, isso exige de quem as recebe uma capacidade muito maior de absorvê-las e julgá-las adequadamente. É necessário, portanto, que haja uma cultura e um sistema educacional que dê as ferramentas necessárias para que as informações sejam discutidas e reelaboradas, aceitas ou recusadas – e, se recusadas, de uma maneira que a opinião dos outros não seja menosprezada.

E aqui chegamos à nossa segunda pergunta. Os valores democráticos só podem ser cultivados quando temos confiança no próximo e em sua boa-fé. Se retomarmos os dados da pesquisa, 39% dos brasileiros concordam com a frase “quem tem visão política diferente de mim foi enganado”. Pior ainda, 31% acham que aqueles que possuem visão política diferente das suas não ligam de verdade para o futuro do Brasil. Ou seja, um terço da população toma por pressuposto que quem pensa diferente está errado e de má-fé. A divergência de opiniões e o cruzamento de diferentes perspectivas não são valorizados. Há pouco interesse real em escutar o outro e, consequentemente, o debate empobrece. Na pressuposição da má-fé, as relações interpessoais se deterioram ainda mais.

O Brasil pontua cronicamente mal nos índices que medem confiança interpessoal e nas instituições e participação política formal e informal na vida pública. A pesquisa do Instituto Ipsos é mais uma a fortalecer esse triste quadro. Estão bem estabelecidas nas ciências sociais a correlação e, em alguns casos, a causalidade, entre o que se chama de capital social – o conjunto de relações de confiança e bens sociais compartilhados – e uma série de indicadores de desenvolvimento social e político e de eficácia de política públicas. O desafio para reverter esse quadro, portanto, não pode ser enfrentado apenas pelo sistema político: ele passa, necessariamente, por toda a sociedade."

Quando uma nação fracassa - ÉRICA FRAGA

FOLHA DE SP - 28/04

País tem falhando ao desperdiçar oportunidades para se desenvolver


Uma das nossas metas atuais como nação é a entrada na OCDE, organização formada principalmente por países ricos e voltada ao desenvolvimento econômico. O simbolismo do assunto enseja uma reflexão: será que o Brasil ainda consegue se desenvolver?

Tomo a provocação emprestada de Marcos Lisboa, titular deste espaço, que lançou a questão em debate recente com o também economista e colunista desta Folha, Antonio Delfim Netto, no auditório do jornal.

Há mais de duas décadas acompanhando temas econômicos, acho que nunca formulei ou ouvi essa pergunta de forma tão peremptória. Talvez porque, ao longo dos últimos 20 anos, a situação do país não tivesse chegado a um nível tão crítico quanto o atual.

Já se vão mais de dois anos desde que a recessão acabou oficialmente sem ter terminado de fato.

Em 2013, nossa renda per capita em dólares era o equivalente a 30,5% da norte-americana (descontadas as diferenças de custo de vida entre os países). Em 2018, a relação caiu para 25,8%, cada vez mais longe dos 39% atingidos em 1980.

Na Grécia, o mais pobre dos países ricos, depois de uma queda brutal nos últimos anos, o rendimento médio da população ainda representa 46,5% do americano.

O desenvolvimento é um conceito que extrapola renda, mas a evolução no padrão de vida é a principal referência do processo de convergência econômica.

Atingir o status de nação rica não é trivial. Segundo o FMI, os 194 países se dividem em 155 emergentes ou em desenvolvimento e apenas 39 avançados.

Embora não exista uma receita pronta para se chegar lá, o celebrado livro “Por que as Nações Fracassam”, de Daron Acemoglu e James Robinson, documenta que os casos de sucesso envolveram a adoção de instituições inclusivas, que garantiram oportunidades para empreender e inovar a todos.

No lançamento do livro, em 2012, ao ser questionado sobre um possível exagero no uso do verbo fracassar —mais aplicável, talvez, a Estados falidos—, Acemoglu disse que desperdiçar oportunidades para se desenvolver era, sim, um fracasso.

Temos, portanto, falhado miseravelmente. Daí o oportuno questionamento de Lisboa. Nas últimas décadas, desperdiçamos tanto o impulso do boom das commodities dos anos 2000 quanto da, agora encerrada, fase de rápida expansão da população em idade ativa.

A história dá voltas. Outras oportunidades podem surgir. O problema é que quem deveria nos guiar na adoção de instituições inclusivas —como uma educação pública de qualidade— parece mais preocupado em censurar publicidades que celebram a diversidade.

Érica Fraga
Repórter especial, ganhou o prêmio Esso em 2013. É mestre em política econômica internacional pela Universidade de Warwick (Inglaterra)

O que o Brasil deve fazer entre Trump e Xi Jinping? - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 28/04

Trump não faz questão de afagar amigos; prefere acariciar adversários



Terminou neste sábado (27) o megashow com que a China exibiu ao mundo o seu ciclópico projeto, a tal de BRI (Belt and Road Initiative, também chamada de Nova Rota da Seda).

Xi Jinping, o ditador chinês, reuniu em Pequim 5.000 delegados de 150 países, incluindo 37 governantes (Jair Bolsonaro não estava entre eles).

É uma demonstração de força que Donald Trump —em estado de guerra comercial com a China— não conseguiria igualar, se resolvesse convocar um encontro semelhante. Até porque Trump não faz a menor questão de afagar amigos. Prefere acariciar adversários, que, no fim do dia, acabam por dar-lhe as costas (vide o caso do ditador norte-coreano Kim Jong-un).

É natural que haja enorme interesse pela BRI: trata-se, diz o Council on Foreign Relations, do “mais ambicioso pacote de projetos de infraestrutura jamais concebido”. Segundo os chineses, a BRI já chega a 4,4 bilhões de pessoas de 150 países e, no total, prevê investimentos na Ásia, Europa e África de mais de US$ 1 trilhão (R$ 3,9 trilhões, quatro vezes mais que a economia que se pretende fazer com a reforma da Previdência).

Generosidade chinesa? Não. É a cunha com a qual a China pretende consolidar a sua já forte presença no comércio mundial e na geopolítica global. Acaba sendo, portanto, uma peça na disputa entre Estados Unidos e China pela liderança mundial.

John Bolton, assessor de segurança nacional de Trump, não esconde o incômodo: acusa a China de “uso estratégico da dívida [criada pelos créditos da BRI] para tornar Estados africanos escravos dos desejos e demandas de Pequim”.

O endividamento no âmbito da BRI é, de fato, um incômodo em muitos países, inclusive na América Latina, mas Deborah Brautigam (Johns Hopkins University) minimiza o problema, em artigo para o New York Times desta sexta-feira (26): cita estudos que demonstram que, embora, tanto na África como na América Latina, os empréstimos chineses sejam significativos, “é improcedente o medo de que o governo chinês esteja sendo deliberadamente predatório em tais países”.

Seja como for, há esse colossal elefante na sala da diplomacia brasileira e, por extensão, há a necessidade de definir como lidar com ele.

O número desta semana de Americas Quarterly traça em detalhes o retrato atual das relações China/América Latina. A China já é o segundo maior parceiro comercial do subcontinente, atrás apenas dos Estados Unidos, e investe em represas, ferrovias e redes elétricas. Seus celulares e veículos tornaram-se populares.

Tudo somado, “parece que a China está na América Latina para ficar”, conclui Brian Winter, o editor da publicação.

Se é assim —como a lógica manda dizer que é— não faz sentido o Brasil alinhar-se tão estreitamente com Trump, a ponto de ser parceiro dos EUA na guerra contra os chineses. Há analistas que atribuem às criticas de Bolsonaro à China, quando candidato, à queda nos investimentos chineses diretos no Brasil (de US$ 11,3 bilhões em 2017 para apenas US$ 2,8 bilhões em 2018).

Seria uma estupidez embarcar na teoria aloprada do chanceler Ernesto Araújo, para quem Trump é o líder indicado para salvar o Ocidente.

O Brasil ganha muito mais se ficar longe dessa suposta cruzada e navegar entre os dois gigantes sem vassalagem a um ou ao outro.

Clóvis Rossi
Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

O fator Congresso - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 28/04

Só com muito esforço o governo Bolsonaro pode superar sua inapetência para lidar com o Legislativo


Sustentar bases parlamentares relativamente extensas e coesas, ensinou a experiência brasileira ao longo dos últimos 34 anos, tornou-se condição necessária para a viabilidade do presidente da República e de seu programa de governo.

Quem desafiou essa escrita —por ignorância, incapacidade ou vontade— terminou pessimamente.

O primeiro grande teste da administração Jair Bolsonaro (PSL) com o Congresso não prognostica boa evolução nesse terreno. A passagem do projeto de reforma previdenciária, a prioridade das prioridades de seu mandato, pela protocolar CCJ da Câmara dos Deputados tomou exagerados 62 dias.

Tanta demora está imediatamente associada à bagunça e à inépcia da articulação parlamentar do Planalto.

Já as suas causas profundas se assentam na maneira pela qual o presidente e parte de seus aliados enxergam a política representativa e no modo como são preenchidos os postos de alta responsabilidade na máquina federal.

A tediosa série de provocações de filhos de Bolsonaro ao vice-presidente, Hamilton Mourão, e a oficiais militares no governo e na caserna é recebida quase com benevolência pelo pai chefe de Estado. A candura da reação equivale a um sinal verde para que continuem os ataques, que chegaram a ser veiculados até mesmo por um canal pessoal do presidente da República.

Por aí se expressa a chamada ala ideológica do bolsonarismo, que pirateia e tropicaliza um movimento de filiação autoritária e neopopulista desenvolvido em outros países.

Esse grupo se lixa para as organizações —como o Judiciário independente, os corpos regulares do Estado e a imprensa livre— inventadas pela tradição democrática para evitar que a sociedade seja tiranizada pelo chefe do governo.

Na gestão Bolsonaro, tal franja de celerados não se limita a falar pelas redes do presidente e a alvejar quadros vindos das Forças Armadas. Faz campanha insidiosa contra ministros do Supremo Tribunal Federal, interfere em políticas públicas, nomeia e demite assessores.

Mas, com seu desejo recôndito de ver a representação parlamentar destruída ou submetida pela força ao ditado do líder, sua atuação apenas agrava a falta de tino do presidente para coser, no Legislativo, uma coalizão regular de apoio.

A segunda resposta típica do presidente quando está em apuros, a nomeação de militares para postos-chave, enfraquece o vetor anti-institucional representado pelo clube dos lunáticos e melhora a qualidade da administração. Mas tampouco ajuda na condução de interesses do Planalto no Congresso.

De tão entranhada na própria implantação do governo Bolsonaro, a inapetência parlamentar demandará muito esforço para ser superada. O risco de não mudar, porém, é ainda maior. Chama-se fracasso.


O simples e o simplório - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S. Paulo - 28/04

É grave a 'simplicidade' ameaçar a visão de mundo e os avanços da sociedade

Pergunte-se a generais, ministros, assessores e até a jornalistas com acesso ao gabinete presidencial qual a impressão que têm do presidente Jair Bolsonaro e, após alguns segundos de reflexão, a resposta será, invariavelmente, a mesma: “O presidente é uma pessoa muito simples”. Parece bom, mas pode ser ruim.

A simplicidade é um valor, uma grande qualidade, quando revela uma pessoa de bem com a vida, de bom trato com superiores e subordinados, capaz de ouvir e ceder e com hábitos despojados no falar, no trajar,

no proceder. Ponto positivo. Mas, no caso de um presidente da República, essa qualificação é dúbia, pode confundir o simples com o simplório.

Uma pessoa simples, ainda mais se rica, poderosa e sofisticada intelectualmente, é o máximo. Um líder simples, que tem pouca informação, é ingênuo nas relações com as pessoas e tem baixa compreensão de questões complexas é “simplesmente” preocupante. Fica ao sabor de miudezas e intrigas internas, sem entender o todo ao seu redor.

A marca de Bolsonaro é a ideologia, que seus filhos carregam para sua guerrilha diária pelas redes sociais. Assim, ele nomeia o ministro da Educação e das Relações Exteriores porque um guru, astrólogo ou sei lá o que da Virgínia mandou. Mas vive alardeando que indicações políticas, válidas em todas as democracias do mundo, só servem para roubalheira.

Ao admitir uma economia de R$ 800 bilhões em dez anos com a reforma da Previdência, quando a área econômica traçou a meta de mais de R$ 1,2 trilhão, Bolsonaro ajuda ou atrapalha? É uma fala simples ou um erro espantoso?

E não é a primeira vez que ele reduz a margem de manobra nas negociações, queimando já na CCJ parte da gordura reservada para a Comissão Especial. Ele, que votou contra a reforma em governos anteriores, já disse até que nem gosta muito da ideia...

Daí as sucessivas reações públicas do deputado Rodrigo Maia, as veladas do Ministério da Economia e agora a advertência contundente do presidente da Comissão Especial da Câmara, Marcelo Ramos (PP-AM): quanto mais o presidente calar a boca, menos ele atrapalha.

Bolsonaro também foi (excessivamente?) simples no discurso em Davos e no pronunciamento na TV após a aprovação da reforma na CCJ, mas gerou novas polêmicas com duas medidas claramente ideológicas: o veto a uma propaganda do Banco do Brasil focada na diversidade e o anúncio de que o MEC vai enxugar investimentos na área de Humanas nas universidades.

É a “Síndrome Marielle”. Assim como desdenha o assassinato brutal de uma vereadora pobre, negra, gay e envolvida em causas sociais, o atual governo rejeita publicidade com a meninada branca, negra, trans, com tatuagem, cabelo colorido. E acha que Filosofia, Sociologia e Antropologia são mero diletantismo esquerdista. Será?

A peça do BB visava atrair a clientela jovem e massificar o aplicativo pelo celular. Logo, não poderia ser conservadora, nem só para o nicho branco e recatado. E é verdade que a oferta de vagas das universidades deve ter conexão com a demanda de profissões no setor privado e público, mas daí a desqualificar as profissões que pesquisam e analisam a dinâmica da sociedade e projetam cenários sociais, econômicos e políticos para o País?

Tem gente que gosta, tem gente que se espanta com as falas e as imagens marqueteiras do presidente com chinelos, calças de ginástica, mesas de fórmica, copos de geleia, abraços em criancinhas, almoços no bandejão de Davos e do Planalto, frases sobre gringos no Brasil atrás de mulheres. O grave é quando a “simplicidade” embaça a visão de mundo e ameaça a reforma da Previdência e avanços tão importantes da sociedade. A diversidade e as áreas sociais e humanas estão na primeira fila.

É grave a ‘simplicidade’ ameaçar a visão de mundo e os avanços da sociedade

Corte no orçamento não afetará qualidade técnica do Censo 2020 - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 28/04

Setor público precisa se adaptar à escassez de recursos, e isso vale também para a pesquisa do IBGE


O anúncio feito pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, de que, em meio à crise fiscal, não há como o Tesouro arcar com o custo do Censo de 2020, estimado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em R$ 2,7 bilhões, teve ampla repercussão. Guedes pede um corte de 25% no orçamento da pesquisa, e chegou a sugerir que o instituto venda imóveis para financiá-la.

Há previsível preocupação com o corte, em especial na área acadêmica, e, de maneira geral, entre incontáveis usuários dos dados censitários. O Censo, realizado a cada dez anos, é de fato fonte essencial de dados para a administração pública, centro de pesquisas, empresas privadas, a depender do setor etc. Há ainda funções de governo que dependem desses números. Caso da repartição de royalties entre estados e municípios, que depende da contagem da população de cada ente federativo; o mesmo ocorre na redistribuição do que é arrecadado por impostos. Não se coloca em dúvida a importância do Censo. Mas também não se discute a escassez de dinheiro no Tesouro para pagar a conta da pesquisa. Os cofres públicos têm ostentado bilionários déficits, é preciso economizar.

Deve-se, portanto, redimensionar o Censo do ano que vem para adequá-lo à realidade do país, com a preocupação em preservar a coleta de informações fundamentais.

Em artigo no GLOBO, a presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, relacionou ações que garantirão a qualidade da sondagem, mesmo com a necessária redução do questionário. Há, portanto, alternativas.

Para definir os cortes nas perguntas aos recenseados, há uma comissão técnica coordenada pelo economista Ricardo Paes de Barros, conhecido especialista em pobreza, desigualdades e temas correlatos. Usuário pesado do Censo. Ele tem inclusive propostas para a retirada de assuntos do questionário: desemprego, mobilidade urbana, entre outros.

O economista também reconhece que o questionário básico do Censo do IBGE é grande em comparação com outros países. Não se trata, então, do fim do mundo. O setor público precisa de adequar à austeridade.


A inovação de R$ 50 bilhões - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO  - 28/04

O STF inovou uma vez mais ao criar benefício tributário que terá impacto negativo nos cofres da União de pelo menos R$ 49,7 bi ao longo de cinco anos


Na quinta-feira passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) inovou uma vez mais. Por 6 votos a 4, o plenário da Suprema Corte criou um benefício tributário que, segundo os cálculos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), terá um impacto negativo nos cofres da União de pelo menos R$ 49,7 bilhões ao longo dos próximos cinco anos. Além da perniciosa consequência fiscal da decisão, o STF assumiu um papel que não lhe cabe, recorrendo a meios que não são de sua alçada. A Suprema Corte não tem competência para determinar política fiscal e tampouco para inovar em matéria tributária.

Ao julgar dois recursos da União, o STF determinou que empresas de fora da Zona Franca de Manaus (ZFM), ao comprarem insumos produzidos na região e, portanto, isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), terão direito a contabilizar como crédito tributário o valor do IPI, como se o imposto tivesse sido pago. O poder público não apenas não cobrará o imposto, como devolverá, em crédito, o valor que em tese teria sido cobrado. Essa tese é de fato inovadora: devolve-se o que nunca foi pago.

A posição que prevaleceu no plenário do STF contou com o apoio do Estado do Amazonas, bem como de políticos e empresários que defendem os benefícios fiscais da ZFM. No entanto, a decisão pode ser prejudicial à Zona Franca, já que, ao estender um benefício que antes estava restrito às empresas da ZFM, a Corte diminuiu indiretamente as vantagens da empresa que lá se instalar.

A PGFN destacou que, a médio e longo prazos, o benefício concedido pelo STF poderá levar a um empobrecimento da variedade produtiva da região. Com o incentivo dado, muitas empresas tenderão a sair da ZFM, mantendo na região somente a parte de produção relativa aos insumos. “Em vez de produzir integralmente uma motocicleta, um aparelho de ar-condicionado ou uma TV na ZFM, as empresas preferirão transferir a maior parte do processo produtivo para o centro-sul, deixando em Manaus só a produção dos insumos: menos emprego, menos densidade tecnológica, menor efeito multiplicador na economia local”, lembrou Marcos Mendes, consultor legislativo do Senado, em artigo no Estado.

Vale lembrar que a concessão de benefícios fiscais, sem uma criteriosa avaliação de seus efeitos, não se mostrou benéfica para a economia do País. Desde 2003, ampliou-se enormemente o valor desses benefícios na esfera federal. Naquele ano, os gastos tributários representaram 2% do PIB (R$ 34 bilhões). Em 2017, o porcentual foi de 4,1% (R$ 270 bilhões). Em vez de acelerar o crescimento econômico, esse estímulo tributário, que agravou a crise fiscal do Estado, foi um dos fatores que levaram o País à recessão iniciada em 2014.

Ao defender a criação do benefício, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, disse que “aqui devemos ter em mente o federalismo de cooperação” entre os diversos Estados. Era o reconhecimento de que a decisão do STF produzirá impactos sobre os outros entes da Federação. Como se sabe, mais do que favorecer a cooperação, esse tipo de atuação do Judiciário dá ocasião a novos acirramentos na guerra fiscal entre Estados. Os entes federativos que se sentirem prejudicados pela isenção do IPI serão fortemente tentados a criar outros benefícios, agravando ainda mais a situação financeira dos entes da Federação.

O Poder Judiciário deve ser extremamente cauteloso ao adotar decisões com impacto sobre a política fiscal dos Estados. A definição dessa política compete aos Poderes Executivo e Legislativo, que estão sujeitos ao escrutínio e ao controle do voto popular. As inovações promovidas pela Justiça em matéria tributária agravam ainda mais a complexidade de um sistema reconhecidamente intricado e disfuncional, que retira produtividade e competitividade da economia nacional. Com os inúmeros desequilíbrios e distorções dessa seara, o melhor que o STF pode fazer é conter o seu ímpeto de, sozinho, querer administrar tributos. Suas inovações são caras. A de quinta-feira custará R$ 50 bilhões.


Bolsonaro, trapalhão com bilhões e xerife sem noção - ROLF KUNTZ

O Estado de S. Paulo 28/04

O presidente continua sem entender sua função e o significado da palavra ‘governar’

Trezentos ou quatrocentos bilhões de reais – quem se importa com isso? Em mais uma trapalhada bilionária, o presidente Jair Bolsonaro abriu uma espécie de liquidação de outono-inverno e antecipou o desconto para a negociação da reforma da Previdência. Na mesma ocasião, um café com a imprensa, ele rejeitou a ideia – jamais proposta – de se transformar o Brasil num país de turismo gay. Poderá ficar à vontade, acrescentou, quem “quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher”. Estará pensando em alguma nova regulamentação federal para motéis? Ainda no café, ele tentou disfarçar a relação complicada com o vicepresidente, Hamilton Mourão, frequentemente atacado por seus filhos. Não convenceu, obviamente, até porque nunca aceitou a ideia de enquadrar seus herdeiros e mandá-los deixar de se meter nos assuntos do Palácio do Planalto.

A trapalhada com maior repercussão foi a referência ao efeito fiscal da reforma. O ministro da Economia, segundo o presidente Bolsonaro, aceitará um ganho de apenas R$ 800 bilhões em dez anos, mas nada abaixo disso. Não precisava e muito menos devia fazer essa declaração. A negociação mal começou e a comissão especial ainda vai iniciar seu trabalho. Mas o presidente já disse até onde os parlamentares poderão desidratar o projeto – até R$ 400 bilhões, se for tomada como ponto inicial a meta de US$ 1,2 trilhão recém-anunciada pela equipe econômica.

No mesmo dia o presidente ganhou destaque por mais uma façanha incomum: mandou o Banco do Brasil suspender uma campanha publicitária e demitir do posto o diretor de Marketing. Foi uma nova intervenção numa estatal de capital aberto. Desta vez, a intromissão foi obviamente motivada por preconceito e por sua bem conhecida homofobia, sem a mínima fundamentação técnica. A campanha, centrada na diversidade, era parte de uma estratégia de aproximação do público jovem. Publicidade é assunto profissional, mas um presidente iluminado por Deus e empenhado na defesa da moralidade e no combate ao marxismo cultural está acima dessas ninharias. A propósito, ainda no café com a imprensa ele se declarou, novamente, aliado do presidente Trump. Poderia ter dito “alinhado”.

Antes de intervir no Banco do Brasil, o presidente Bolsonaro já se havia intrometido na administração da Petrobrás, e por motivação mais prosaica: atender a exigências de caminhoneiros, aqueles mesmos apoiados por ele, ainda candidato, quando bloquearam estradas, cometeram violências e impuseram enorme perda a empresas e consumidores.

Ao invadir o comando da maior estatal brasileira, ele impôs à Petrobrás uma perda de R$ 32,4 bilhões em seu valor de mercado. Esse efeito foi produzido com um simples e baratíssimo telefonema. Bastou chamar um diretor da empresa e mandá-lo abandonar, ao menos por alguns dias, o então recém-anunciado reajuste de preço do diesel. Errou perigosamente, naquela ocasião, quem imaginou ter o presidente mostrado toda a sua capacidade de comprometer bilhões. O presidente da Petrobrás, assim como o do Banco do Brasil, aceitou com aparente alegria a intromissão do presidente da República. Qual será a reação se ele quiser ditar a política de juros do Banco Central?

Mas convém voltar às trapalhadas do café com jornalistas, quando o presidente falou sem pensar – ou pensando segundo seus padrões – sobre os efeitos fiscais da reforma da Previdência. Pela avaliação inicial da equipe econômica, a reforma da Previdência permitiria evitar um gasto de R$ 1,1 trilhão em dez anos. Pela última estimativa, a economia poderá passar um pouco de R$ 1,2 trilhão.

De acordo com a margem de negociação indicada pelo presidente, o desconto máximo poderá ficar em torno de R$ 400 bilhões. Nesse caso, corresponderá a cerca de um terço, ou 33%, do ganho máximo projetado pelos técnicos do Ministério da Economia. Ao admitir essa perda, o presidente antecipouse aos negociadores, complicou seu trabalho e aumentou o risco de empobrecimento da reforma. Depois do café ele pareceu arrepender-se de ter avançado na discussão.

Não existe um “dado mínimo”, corrigiu-se o presidente, na saída. Ele ainda lembrou o valor “em torno de R$ 1 trilhão” citado várias vezes pelo ministro Paulo Guedes. Mas alguma perda ocorrerá no Congresso, admitiu, e será preciso mantêla em nível tolerável.

Quando o presidente Bolsonaro ensaiou essa autocorreção, sua fala sobre o piso de R$ 800 bilhões já havia sido divulgada por agências de notícias, portais da imprensa, rádios e televisões. Esse número predominou, ainda, nas informações publicadas nos jornais no dia seguinte e nas programações matinais de notícias. A trapalhada era sem conserto.

“Se Bolsonaro falar menos sobre a reforma até ela ser aprovada, vai ajudar bastante”, disse à Rádio Eldorado o recém-escolhido presidente da comissão especial formada para analisar a proposta, deputado Marcelo Ramos (PR-AM). “Cada vez que Bolsonaro fala sobre a reforma, retira alguma coisa.” Com isso ele dificulta o trabalho da equipe econômica, acrescentou o deputado. Essa equipe, segundo ele, é uma exceção no governo federal, por ter “uma visão clara de projetos e propostas para o Brasil”.

A avaliação do deputado é ainda um tanto generosa. De fato, o governo, excluído o time econômico, tem sido incapaz de apresentar ideias parecidas com algum plano para o País. Mas poderia apresentar? O presidente Bolsonaro fala ocasionalmente sobre a Previdência, quando é pressionado para mostrar algum interesse, mas pouco se ocupa de suas funções. Gasta mais tempo com exibições de homofobia e de moralismo, interfere na gestão de estatais, faz desaforos a parceiros comerciais importantes e dá vexames internacionais, como quando atribuiu à esquerda as barbaridades nazistas.

Já completando quatro meses de mandato, parece ainda longe de entender a função presidencial e o significado de governar. Entenderá, algum dia?

Em busca de luz - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 28/04

Os políticos entenderam que a gordura fiscal a ser tirada na Comissão Especial pode vir a ser capitalizada, tornando a reforma “mais justa”


Há um amplo espectro de negociação política, que tem como um dos protagonistas o governador de São Paulo João Dória, na nomeação do deputado do PSDB de São Paulo Samuel Moreira para presidir a Comissão Especial da reforma da Previdência. E o mais interessante é que esse jogo tem como premissa que o sucesso da reforma dará aos partidos que se posicionarem favoravelmente desde o início vantagens eleitorais em 2020, já nas eleições municipais. Uma luz dos holofotes políticos num tema polêmico, mas que parece inevitável.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, sempre trabalhou com a hipótese de que o relator da Comissão teria que ter sinergia com o ministro da Economia Paulo Guedes mas, principalmente, com Rogério Marinho, Secretário Nacional de Previdência, que é do PSDB. Por isso, os nomes mais cotados eram daquele partido, que logo no inicio das negociações avisou que queria o cargo.

O DEM, partido de Rodrigo Maia, corria por fora, tendo como postulantes ao cargo os deputados Pedro Paulo e Artur Maia. Um cargo que pode vir a ser tóxico para quem vive de votos, estava sendo disputado por partidos que têm um eleitorado de classes média e alta perdido para o fenômeno Jair Bolsonaro na eleição presidencial.

Maia achou que o poder ficaria muito concentrado no DEM, e optou pelo tucanos. Mas é claro que Dória sempre teve interesse em que o PSDB de São Paulo entrasse no processo e, nas últimas 48 horas trabalhou fortemente para isso, por diversos motivos, o principal deles a convicção de que, ao contrário do senso comum, existe capital político na reforma, e em assumir posição clara na vida pública.

Assim como o presidente da Câmara acha que defender a reforma trará benefícios de médio e longo prazos para os deputados, melhorando suas imagens diante do cidadão, também Dória já defendia pessoalmente essa visão, e também deseja essa marca para o PSDB, como um primeiro reencontro com o eleitor tucano sob seu comando, ou refundação do partido, como gosta de definir a atual situação, depois que tomou conta da legenda ao se tornar o político mais vitorioso do PSDB nas últimas eleições.

Tendo o valor do corte sido reajustado para R$ 1,3 trilhão, acima da marca de R$ 1 trilhão inicialmente anunciado, os políticos entenderam que a gordura fiscal a ser tirada na Comissão Especial pode vir a ser capitalizada, tornando a reforma “mais justa”.

Foi pensando nisso que João Dória entendeu que o PSDB na relatoria do projeto na Comissão Especial poderia ser beneficiado por uma ação claramente voltada para a defesa dos mais pobres. Pelas contas apresentadas oficialmente, os deputados consideram que são quase meio trilhão de gordura entre o novo cálculo e o “piso Bolsonaro”, de R$ 800 bilhões.

Para se ter uma idéia, tirar integralmente da reforma a aposentadoria rural e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), no pressuposto de que prejudicam os mais necessitados, gerará um corte de R$ 127 bilhões, e ainda restariam mais cerca de R$ 300 bilhões que poderiam ser negociados, “bondades” que iriam para a conta dos partidos que tiverem protagonismo na Comissão Especial, como a relatoria do PSDB.

Há outra ação que será atribuição do relator: garantir a permanência dos ajustes previdenciários para os Estados. Além de Dória não ter o desgaste de ter que aprovar o plano na Assembléia Legislativa de São Paulo, o auxílio fiscal tornaria ainda mais vistoso seu governo para 2022, quando se prepara para concorrer à presidência da República.

Ele também tentará ser o fiador da negociação do relator de pontos da reforma diretamente com o presidente Bolsonaro, o ministro da Economia Paulo Guedes e a equipe econômica. Em troca, vantagens, em primeiro lugar para São Paulo, em seguida para Governadores do PSDB e, consequentemente, para os demais governadores, consolidando uma liderança que ser o governador do maior Estado da Federação naturalmente lhe dá.

A escolha do deputado Marcelo Ramos, do Centrão, para presidir a Comissão Especial, como representante de um grupo influente na Câmara, dará também respaldo a uma condução dos trabalhos que ajude a sua aprovação. A Presidência da Comissão tem o “poder do tempo”, na medida que pode acelerar ou frear o cronograma dos trabalhos.

No primeiro momento, o Centrão mostra-se insatisfeito com essa divisão. Rodrigo Maia, no entanto, está otimista com a possibilidade de aprovar uma reforma que não seja “aguada”, e João Dória sabe que o aprofundamento dos laços com o presidente da Câmara é fundamental para a campanha de 2022, um possível competidor, ou parceiro, ocupando a mesma faixa de eleitorado.


Próximos passos após a reforma da Previdência - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 28/04

É natural que o tema concentre as atenções, mas existe uma agenda econômica robusta para depois


A ênfase dada à reforma da Previdência é diretamente proporcional ao tamanho do problema fiscal do país. Vai-se para o sexto ano seguido de déficit primário nas contas públicas — excluindo juros da dívida interna —, fator que corrói o equilíbrio do sistema, contaminando de forma tóxica as expectativas dos agentes econômicos.

E o déficit previdenciário é a locomotiva que puxa o desbalanceamento das contas públicas. Um buraco que cresce sem controle, provocado por regras que só podem ser alteradas por emenda constitucional. Daí o nó político e econômico em que o Brasil se encontra.

Mas isso não significa que esta reforma remova todos os obstáculo à frente do país. É condição necessária para a entrada em um ciclo de crescimento sustentável — o que não acontece desde pelo menos o final do primeiro governo Lula —, mas não suficiente.

Em entrevista ao jornal “O Estado de S.Paulo”, o economista Carlos Geraldo Langoni, ex-diretor do Banco Central, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas (FGV), trata dessa fase pós-reforma, estratégica para mudar a dinâmica da economia brasileira.

Langoni defende que se apresse o passo, para que, depois da Previdência, venha a reforma tributária, a fim de que seja possível abrir a economia ao exterior, a “reforma esquecida”.

Sem um choque de concorrência, os padrões de produtividade do país continuarão medíocres, fatal para uma sociedade cuja demografia aponta para o envelhecimento inexorável da população.

Com o “bônus demográfico” decrescente — o encolhimento da parcela de jovens da população —, mais ainda é preciso um sistema produtivo eficiente para sustentar o crescimento. Que deixa de depender da crescente entrada de mão de obra no mercado de trabalho. Ganha importância decisiva o crescimento da produtividade.

Mas, para abrir-se a economia, as reformas, para além da Previdência, precisam dar condições de competitividade às empresas. Em vez de quebradeira, é vital concorrência, absorção de tecnologia, integração a cadeias globais de produção etc. E não falências em série.

Langoni e Paulo Guedes fizeram doutorado na Universidade de Chicago, referência do pensamento econômico liberal. Afinados no diagnóstico da crise brasileira, têm conversado com frequência, entre outros assuntos, sobre o “choque da energia barata”, a partir da desregulamentação do mercado de gás. O que passa pela extinção de mais um monopólio da Petrobras, daí as resistências.

O assunto já foi tratado publicamente por Paulo Guedes, e tem relevância estratégica. O ministro já previu que o gás de cozinha pode ficar 50% mais barato.

O tema é ainda mais relevante porque, com a exploração do pré-sal, aumentará bastante a produção de gás, e é preciso usá-lo como insumo industrial, combustível, entre outros fins, e não queimá-lo como simples subproduto da extração de petróleo. A custo baixo, o efeito positivo deste gás no sistema produtivo será incalculável como deflagrador de novos investimentos. Mas antes é preciso remover o entulho previdenciário.

Porém, é preciso pressa, alerta Langoni, diante da previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) de que o mundo entra num ciclo de desaceleração. Quanto mais forte estiver a economia brasileira, mais protegido o país estará.