O Estado de S.Paulo - 05/04
A tropa do PSL, com general, coronel, major e delegado, deixou Paulo Guedes na mão
Cenas com Guedes na CCJ foram lamentáveis, com a ausência de governistas e a esquerda despertando de sono profundo.
Foram dois movimentos em sentido contrário. Ontem, o presidente Jair Bolsonaro finalmente recebeu em palácio os “velhos políticos” dos “velhos partidos” e da “velha política”. Na véspera, o PSL, sigla do presidente, havia lavado as mãos e abandonado o ministro Paulo Guedes na CCJ, cara a cara com os leões da oposição.
Nas conversas com presidentes e líderes de MDB, DEM, PSDB, PP, PRB e PSD – alguns deles enrolados na Justiça, como Romero Jucá e Gilberto Kassab –, Bolsonaro foi menos presidente e mais ex-colega de Congresso. Nada foi pedido, nada foi prometido, mas foi um marco mesmo assim: o presidente assumiu um firme compromisso com a reforma da Previdência. E decidiu fazer política.
Já as cenas na CCJ foram lamentáveis, com a ausência dos governistas e a esquerda despertando após um sono profundo desde as eleições. Bolsonaro vem chocando setores da opinião pública e despenca nas pesquisas, mas isso não tem nada a ver com PT, PCdoB e seus primos, mas sim com arroubos de “olavetes”, inexperiência dos aliados, agressividade da tropa da internet e erros crassos do próprio Bolsonaro e de seus filhos. Não é nem por mérito nem por culpa da oposição.
Na sessão da comissão, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, os deputados e os aliados petistas mostraram que não aprenderam nada. O importante continua sendo ganhar no grito, manter as bases em pé de guerra, trocar o debate por pegadinhas e insultos contra adversários e negar o óbvio, que os ex-presidentes Lula e Dilma estavam cansados de saber: a reforma da Previdência é fundamental para o País.
Quando Guedes se retirou da comissão, após Zeca Dirceu partir para o achincalhe, com a história do Tigrão e do Tchutchuca, a esquerda comemorou como vitória. Que vitória? O PT apenas agradou à sua militância e os convertidos e pode ter irritado todos os demais, inclusive quem já foi PT um dia e hoje não é nada.
Mas, se as esquerdas perderam, o grande derrotado foi o PSL. A oposição articulou-se antes, traçou uma estratégia, chegou cedo e ocupou todos os espaços – as primeiras cadeiras e as primeiras perguntas. Onde estavam os líder do governo, do PSL, das siglas aliadas? Ninguém sabe, ninguém viu. Para piorar, a experiência e disciplina dos petistas contrastaram com a falta de traquejo do jovem presidente da CCJ, Felipe Francischini, de 27 anos, e do relator da reforma, Marcelo Freitas, que, enquanto deputado, continua sendo um bom e articulado delegado.
Aliás, após o encontro de Paulo Guedes com a bancada do PSL, no ministério, brincou-se que, enfim, estava formada a “tropa de elite” para a defesa da reforma. Foi uma alusão clara às variadas patentes do partido do presidente, que tem general, coronel, delegado, major... E, por isso, tem muito a aprender dos meandros do Congresso, da malícia da ação parlamentar.
Ontem, a metáfora já era outra: Guedes é um bom centroavante e foi bem no ataque, o que falhou foi a defesa. Ele se apresentou à CCJ, uma semana atrasado, com a mesma cara e o mesmo estilo, sem maquiagem e sem fantasia. Paulo Guedes foi Paulo Guedes, não pretendeu ser o político que não é, o tribuno que nunca foi. Isso implica usar um tom técnico e respeitar sua própria personalidade. Em nome de quê deveria engolir calado os ataques, ironias e tchutchuquices?
O importante é mostrar incansavelmente que aquele espetáculo lamentável foi com um grupo específico e não representa a disposição do Congresso em relação à reforma da Previdência. Afinal, nem a CCJ é o plenário nem a esquerda domina a Câmara. Os ataques ao ministro, principal articulador da reforma, não foram “do Congresso”, foram “da oposição”, que é minoritária.
A tropa do PSL, com general, coronel, major e delegado, deixou Paulo Guedes na mão
Gazeta do Povo - PR - 05/04
O deputado federal Zeca Dirceu durante palestra no diretório do Partido do Trabalhadores, em Curitiba (Foto: Albari Rosa / Agência de Notícias Gazeta do Povo)
Uma discussão entre o Ministro da Economia, Paulo Guedes, e o deputado federal Zeca Dirceu (PT-PR) levou ao encerramento da audiência na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara na noite desta quarta-feira (03). O objeto era a proposta de reforma da Previdência feita pelo governo Bolsonaro.
O conflito se deu quando o petista afirmou que o ministro age como "tigrão" em relação a aposentados, idosos e pessoas humildes, mas como "tchutchuca" no tocante à "turma mais privilegiada do nosso país".
Há um problema na análise de Zeca Dirceu: para adotar o mesmo termo esdrúxulo, ninguém neste país foi mais “tchutchuca” de poderosos e bilionários do que o partido ao qual Zeca Dirceu é filiado, e que ficou 14 anos, 5 meses e 12 dias no poder. Houve diversos programas de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos protagonizados por mandatários do Partido dos Trabalhadores enquanto estiveram no Palácio do Planalto.
As críticas direcionadas a Guedes são, basicamente, fruto de um desconhecimento acerca da urgência de reformar a Previdência e sobre quem ela irá afetar, uma vez que o ônus é falsamente atribuído aos brasileiros de menor renda. É estimado que em dez anos ela poderá gerar R$ 1,1 trilhão de economia. Ocorre que todo gasto do governo é custeado mediante tributação, seja impostos, dívida pública ou emissão de moeda. Ao economizar por meio de um ajuste do sistema previdenciário, busca-se equilibrar as contas públicas. A União não consegue fazer um superávit primário — despesa do governo inferior ao que ele arrecada em impostos — desde 2014.
Além de insustentável, a atual Previdência é injusta: apenas 3% de toda a despesa previdenciária vai para os 20% mais pobres. Já 41% é destinada aos 20% de brasileiros de maior renda. Enquanto o Bolsa Família custa anualmente cerca de R$ 30 bilhões e atende 46 milhões de pessoas, o rombo da aposentadoria rural é de R$ 110 bilhões, sendo destinada a apenas 9 milhões de beneficiários. Quão mais tímido é o ajuste, mais prejudicados serão os mais pobres, já que o status quo os afeta de maneira negativa.
Assim, ainda que indiretamente, a aprovação da reforma da Previdência é que beneficiará os mais pobres: além de combater desigualdades, ela é essencial para uma recuperação mais vigorosa da economia. Sem um ajuste, tenderá a haver menor crescimento, bem como aumento dos juros e impostos.
Segundo levantamento de Felippe Hermes, do site Spotniks, durante o governo Lula, a despesa do governo cresceu 2,4% do PIB. Todavia, apenas 0,05% disso foi para a saúde, 0,2% para a educação e, mais da metade, 1,37%, para Previdência. Tamanho aumento de gasto é o resultado de postergar a reforma. Da forma como funciona hoje em dia, a despesa com aposentadorias e pensões está canibalizando outras fatias do orçamento.
Para além das falsas narrativas defendidas pelo partido, selecionamos 4 oportunidades principais em que o PT foi a tchutchuca de poderosos, e quem pagou a conta do baile foi você.
1) O baile do BNDES
A estratégia, idealizada pelo economista Luciano Coutinho, mas abraçada por Lula e, posteriormente, Dilma, era escolher determinadas companhias para se tornarem gigantes em seus setores e competir no mercado internacional. E tudo isso turbinado a partir de empréstimos do BNDES.
Os juros eram subsidiados. Empresas que não eram amigas do governo tinham de competir arcando com taxas de juros mais altas, cobradas pelo mercado. Boa parte dos empréstimos foi feita com juros negativos, ou seja, a devolução dos valores contratados era inferior à inflação do período.
Em um período de nove anos, entre maio de 2007 e maio de 2016, a conta do BNDES fechou em R$ 1,2 trilhão, valor equivalente a 40 vezes o atual orçamento do Bolsa Família — previsto para R$ 30 bilhões em 2019. Esse montante era destinado geralmente a empresas amigas, como o frigorífico JBS, a telefônica Oi e a petroleira OGX de Eike Batista. Os ex-presidentes contribuíram com R$ 13,6 bilhões para que empreiteiras brasileiras realizassem obras em países da África e América Latina. Essa quantia corresponde a 93% do que foi desembolsado pelo banco estatal para exportação de bens e serviços. A Odebrecht, sozinha, abocanhou 64% do total.
Foi o auge do capitalismo de laços — um sistema que se realiza mediante a criação de alianças e emaranhados comerciais estabelecidos entre grupos privados com o governo, na definição do professor do Insper Sérgio Lazzarini.
O gasto com essa festa de crédito foi superior ao do Plano Marshall, realizado pelos Estados Unidos para ajudar na reconstrução da Europa após a II Guerra Mundial.
2) O baile dos ditadores
Em 2009 o então presidente Lula afirmou, na cúpula das nações africanas, que “não podemos ter preconceito com países não democráticos”. Não à toa, enquanto sua agremiação esteve no comando do Executivo, bilhões em impostos arrancados do trabalhador brasileiro foram destinados a ditaduras.
Diversos desses contratos são caixas-preta até os dias atuais. Foram construídas obras de infraestrutura, como rodovias, ferrovias e aeroportos, sobretudo em países da América Latina e na África. Segundo o jornal O Globo, tais empréstimos causaram prejuízo anual de R$ 1,1 bilhão ao trabalhador, uma vez que são realizados com recursos do FAT, um fundo financiado com parte dos salários de cada trabalhador brasileiro.
Angola, Congo, Cuba, Gabão, Guiné Equatorial, Moçambique, Venezuela e Zimbábue foram os destinos prediletos dos presidentes petistas. Venezuela, Cuba e Moçambique deram calote de R$ 1,7 bilhão.
3) O baile dos empreiteiros
Segundo as investigações da Operação Lava Jato, as maiores empreiteiras do país formaram um cartel e dividiam as obras que cada um ganharia com a Petrobrás. Tudo sob o comando do PT, mas com favorecimentos ainda ao MDB e PP. No meio disso, empresas como Odebrecht e OAS, além da Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez foram largamente as maiores beneficiárias pelo governo petista — embora houvesse várias outras — e retribuíram com pagamento de vultosas quantias de propina.
A Odebrecht, por exemplo, retribuiu o favor depositando a título de propinas a importância de R$ 324 milhões ao longo de 5 anos para o PT, segundo delações premiadas. Entre os principais benefícios, ampliação de crédito para exportação a Angola e aprovação de medida provisória de Refis.
Já em relação a OAS, Lula realizou tráfico de influência para a empreiteira no exterior. A empresa tinha desejo de incrementar negócios em países como Peru, Chile, Costa Rica, Bolívia, Uruguai e nações africanas. lula se prontificou em ajudá-los. Em retribuição, foram feitas obras e reformas no sítio em Atibaia e no triplex do Guarujá, pelos quais Lula foi condenado. Ademais, a OAS deu R$ 215 milhões de reais em propina ao PT.
O Grupo Andrade Gutierrez fez doações ao PT em troca de favorecimento em contratos com estatais. Entre as denúncias, consta que bancou pagamentos de fornecedores da eleição da presidente Dilma Rousseff, em 2010, no valor de R$ 6,1 milhões, além de outros R$ 10 milhões na campanha de 2014. Estima-se que metade dos R$ 100 milhões da empresa 'doados' ao PT foi propina.
4) O baile dos lobistas
Segundo delação de Antônio Palocci, homem forte tanto do ex-presidente Lula quanto de Dilma, pelo menos 900 das mil medidas provisórias editadas nos quatro governos do PT motivadas por propinas.
Embora possa haver uma imprecisão nas informações — o PT editou 623 MPs —, e a delação ainda seja alvo de trâmite processual, há fortes evidências de que em algumas das MPs houve negociações ilícitas para inserir determinados conteúdos que beneficiassem grupos privados. Entre elas, duas são alvo de ações penais, como a MP 627, de 2013, que prorrogou incentivos fiscais destinados a montadoras de veículos, além da MP 471, de 2009, que também beneficiou montadoras com a prorrogação de incentivos fiscais. As empresas automobilísticas Mitsubishi e Caoa estariam envolvidas, e ainda respondem por ação penal que investiga o caso.
O Estado de S.Paulo - 05/04
O presidente Jair Bolsonaro continua firme em sua campanha contra a realidade. O alvo da vez é o índice de desemprego medido pelo IBGE. Há uma semana, o IBGE informou que a taxa de desemprego no País havia subido para 12,4% no trimestre encerrado em fevereiro, atingindo 13,1 milhões de pessoas, um acréscimo de 892 mil em relação ao período anterior. A população fora da força de trabalho alcançou o recorde de 65,7 milhões de pessoas, e também bateu recorde a taxa de subutilização da força de trabalho, chegando a 24,6%. Há fatores sazonais, como o esfriamento dos negócios depois das festas de fim de ano. “A desocupação voltou a subir, mas não é a maior da série. Neste mesmo trimestre, a maior taxa foi de 13,2%, em 2017. Esperava-se que ela fosse subir, é um aumento que costuma acontecer no começo do ano”, comentou o coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo.
Essas ponderações, contudo, não foram levadas em conta por Bolsonaro, que demonstrou contrariedade com os dados do IBGE. Não à toa: noves fora os fatores sazonais, os números indicam que o desemprego continua muito alto, a despeito da crença bolsonarista de que o País está às portas de uma nova era de prosperidade.
“Com todo o respeito ao IBGE, essa metodologia, em que pese ser aplicada em outros países, não é a mais correta. (...) Tenho dito aqui, fui muito criticado, volto a repetir, não interessam as críticas. Tem de falar a verdade”, afirmou o presidente. Tentando demonstrar insuspeita familiaridade com a estatística, Bolsonaro seguiu adiante: “Como é feita hoje em dia a taxa? Leva-se em conta quem está procurando emprego. Quem não procura emprego não está desempregado. (...) Então, quando há uma pequena melhora (na economia), essas pessoas que não estavam procurando emprego passam a procurar, e quando procuram e não acham aumenta a taxa de desemprego”. Segundo o presidente, isso “não mede a realidade”. Não se sabe a que “realidade” ele estava se referindo, mas a única disponível no momento é a que indica uma projeção de crescimento do PIB inferior a 2% neste ano, mostrando uma recuperação bem abaixo das expectativas do governo, com previsível impacto negativo sobre o emprego.
Para Bolsonaro, contudo, se os números não refletem a melhora da economia decorrente de sua administração, então algo está errado – mas não com sua administração, e sim com os números. O presidente foi mais longe e lançou suspeitas sobre o próprio trabalho do IBGE, ao dizer que os indicadores de desemprego do instituto “parecem índices que são feitos para enganar a população”.
De uma só tacada, o presidente colocou em dúvida as estatísticas sobre o desemprego e a própria lisura do trabalho do IBGE, o órgão responsável pelas estatísticas oficiais sobre inflação, mercado de trabalho e demografia, entre outras. Afinal, ao dizer que os índices parecem “feitos para enganar a população”, Bolsonaro sugere que há uma conspiração no IBGE para prejudicar seu governo. Sendo assim, todos os outros números produzidos pelo IBGE seriam suspeitos, caso não agradem ao presidente.
Não é a primeira vez que Bolsonaro age assim. No ano passado, na condição de presidente eleito, ele chamou de “farsa” a estatística de desemprego que, segundo ele, considerava empregado quem estava desempregado – uma leitura obviamente equivocada da estatística. Seu objetivo era insinuar que o desemprego era maior do que o IBGE calculava. Ou seja, a depender do momento, a metodologia do IBGE, na opinião do presidente, erra para cima ou para baixo.
Nenhum presidente gosta de números oficiais que contrariam seu discurso. Há os que preferem simplesmente fechar os institutos responsáveis por coletar e interpretar os dados, como aconteceu na Argentina sob o governo dos Kirchners e na Venezuela sob a ditadura chavista. Espera-se que o presidente Bolsonaro, por mais aborrecido que esteja, se dedique a resolver os problemas apontados pelos indicadores, em vez de vituperar contra quem os produz.
ESTADÃO - 05/04
O antropocentrismo vai, aos poucos, enfraquecendo, apesar do mundo institucional
O Supremo Tribunal decidiu que o sacrifício de animais em cultos religiosos afro-brasileiros é constitucional. Foi por unanimidade. E isso me decepcionou um pouco. Esperava uma corrente mais crítica ao antropocentrismo e sensível à dor dos animais.
Esses ventos ainda não sopram na Justiça brasileira. Mas já chegaram aqui da Argentina. Foi o caso de um habeas corpus concedido à chimpanzé Cecília, que visitei no Santuário dos Grandes Primatas, em Sorocaba. Cecília vivia triste e maltratada num zoo, mas ao chegar ao Brasil recuperou a alegria e até acasalou. Fiz um documentário sobre sua sorte.
Na mesma época entrevistei o escritor Peter Singer, autor do livro Libertação Animal, lançado em 1975, um texto inspirador do movimento moderno de defesa dos bichos. Singer estava exultante com a libertação de Cecília. Ele via ali os primeiros lampejos da aceitação de sua tese sobre os direitos dos animais.
Na vida cotidiana sabemos que essa é uma bandeira de minorias. E como tal precisa ser tratada com habilidade para atravessar a bandeira de ironia que se ergue diante dela.
Foi assim, por exemplo, que vi em Santa Catarina o movimento que criticava a Farra do Boi. É uma festa popular, tradicional na costa catarinense, onde para, os pescadores, o boi aparece como um invasor. A ideia na época não era acabar com a Farra do Boi, mas, na medida do possível, ajudar a transitá-la do boi real para um boi figurado, como, por exemplo, no Bumba meu Boi.
Creio que haveria uma possibilidade de argumentar com adeptos dos rituais de origem africana. Será que o sacrifício de animais é essencial para sua existência? Assim, como um leigo, posso afirmar que um dos mais belos rituais religiosos, envolvendo milhões de pessoas, são as oferendas a Iemanjá. Flores, quase todas flores. Na Baixada Fluminense documentei inúmeros trabalhos religiosos, nem todos usavam animais e, quando usavam, eram apenas uma parte das oferendas.
Creio que na própria religião afro-brasileira estão contidos os elementos que poderiam facilitar uma transição do corpo animal para o símbolo. Uma transição que a cultura popular brasileira, com suas representações do boi, já realizou.
Falei com um jovem político sobre o tema. Ele me respondeu: “Se me preocupar com isso, vou denunciar o peru de Natal”. Mas o peru de Natal é diferente. Ele é comido. Sempre afirmei que a proteína animal ainda é a maneira de alimentar tantas bocas no mundo. Mais ainda, para desalento dos vegetarianos, considero que o crescimento da humanidade, que nos levará aos 9 bilhões de pessoas em 2050, dificilmente dispensará a proteína animal. Mas o fato de comermos peru no Natal e sabermos que milhares morrem diariamente não justifica arrancar o pescoço de uma ave numa celebração mística.
A votação do Supremo lembrou-me de uma coisa: adianta apenas proibir? A experiência com a Farra do Boi, levei muitas pancadas por causa disso, é diálogo e compreensão. Mais que uma decisão da Corte, o ideal é uma transição em que o debate cultural realize o trabalho de suprimir maus-tratos aos animais.
Essa discussão no Supremo foi apenas um momento. Animais morrem inutilmente em grande escala no Brasil. E a causa, de certa forma, é o progresso material. Tenho documentando a mortandade dos jegues no Nordeste. Estão sendo substituídos pelas motocicletas. Morrem atropelados, abandonados pelos donos na margem das estradas.
Em alguns lugares, como em Apodi (RN), os jumentos foram recolhidos. Um promotor propôs que as pessoas passassem a comer carne de jegue. Ofereceu um churrasco. Sua proposta não vingou. Alguns empresários ainda esperam vender carne de jegue para a China.
Na verdade, uma extinção gradual vai tirando os jegues do cenário nordestino. Isso valeria uma política pública. Assim como o sacrifício de animais em cultos religiosos merecia um debate mais amplo.
Felizmente, nada vai deter o trabalho que se faz no Brasil. O próprio Santuário de Primatas em Sorocaba é um exemplo internacional. Em Três Rios há uma pousada que recebe bichos resgatados. A dona adotou uma jaguatirica que cruzou com uma gata e deu um belo gato mestiço. Na Serra da Mantiqueira, os chiqueiros estão cheios de filhos de javalis que cruzam com as porcas de madrugada. O que fazer com os javalis devastadores?
É todo um mundo girando. Levá-lo em conta ainda é muito difícil numa cultura em que o ser humana é o centro de tudo. Mas, apesar de decisões como a do Supremo, é possível dizer que está melhorando. Além disso, as crianças vêm aí e não são as mesmas do passado.
São Paulo já tem um hospital gratuito para animais. Em dezenas de lojas e restaurantes é possível ver tigelas de água para os animais de rua. Quando implodiram o presídio da Ilha Grande muitos cachorros fugiram para o mato. Hoje a ilha é cheia deles. Alguns estrangeiros às vezes retardam sua passagem pelo País apenas para adotar um cachorro da ilha.
O antropocentrismo aos poucos vai enfraquecendo, apesar do mundo institucional. Lembro-me das difíceis discussões no Congresso sobre experiências científicas com animais. Algumas envolvem a salvação de vidas humanas. No entanto, foi possível um nível de acordo. Acredito que hoje já exista uma tendência à simulação, fórmulas de cada vez eficazes para poupar os animais.
É uma escolha que transcende a polaridade esquerda-direita: um tipo de civilização está em jogo. Isso escapa ao próprio governo, preocupado, corretamente com a morte de 60 mil brasileiros por ano, mas totalmente perdido nas suas dúvidas sobre aquecimento global, nas suas estúpidas certezas como dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Invadiu a União Soviética por engano? Milhões de mortes foram resultado de fogo amigo?
Animais racionais têm cada ideia.
*JORNALISTA
FOLHA DE SP - 05/04
Etimologia não distingue 'rememorar' de 'comemorar'; só as separa mesmo a hipocrisia
E não é que voltamos a falar em "golpe" como quem diz "hoje é sexta-feira?" E, desta feita, não se trata apenas de uma leitura política interessada da realidade, vertida em palavra de ordem, como as esquerdas fizeram por ocasião do impeachment de Dilma: "Não vai ter golpe/ vai ter luta". Não! Agora, conversa-se abertamente sobre a hipótese ela mesma, com coturno, uniforme, tanques, palavras de inspirado patriotismo sobre a verdadeira índole do povo brasileiro... É um despropósito!
Os que viveram 1964 sabem que havia, entre os que se ocupavam da questão política, uma dúvida: "O golpe será dado pelos militares contra João Goulart, ou ele conseguirá se acertar com parte considerável das Forças Armadas e desfechar um autogolpe?" Quando se mergulha nos bastidores que condicionavam os papéis dos atores relevantes da quartelada, vê-se que a dúvida era tola.
O governo que foi derrubado, "que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o país", a que se refere o preâmbulo indecoroso do Ato Institucional nº 1, não dispunha de bala para dar um tiro. Conspiração de desarmados, por mais errados que sejam (e eram!), contra tanques é o que é: golpe dos tanques contra os desarmados. Não há mistério nisso. A propósito: a ditadura começou no dia 9 de abril, justamente com o AI-1, que determinou a forma da eleição indireta. É apenas mentira que se estava cumprindo a Constituição de 1946, como consta da Ordem do Dia que "rememora" o golpe. A propósito: a etimologia não distingue a palavra "rememorar" da palavra "comemorar". No contexto em espécie, só as separa mesmo a hipocrisia, o tal tributo que o vício presta à virtude.
Fique avisado o leitor que anda descolado da realidade de Brasília e dela só tem notícia quando ecos de um funk já antigo trata de "tigrões" e "tchutchucas": nos "becos e nos breus das tocas" da capital federal de Banânia, que são os corredores dos palácios, já se fazem apostas: será Bolsonaro só o boneco de mamulengo do Partido Militar, que resolveu se reestruturar, ou ele próprio, insuflado por meia dúzia de reacionários delirantes, está a mandar recados para os "cabos" da hora, tentando colá-los a seu "capitão"?
A julgar pelo tratamento dispensado pelo autoproclamado filósofo e professor Olavo de Carvalho aos generais do governo —e, por extensão, aos da ativa— e pela reverência de Bolsonaro e filhos ao Bruxo da Virgínia, dada a hipótese de golpe, parece que o próprio presidente da República se mostraria disposto a "ir aos bivaques para bulir com os granadeiros".
Repararam o quadro de insanidade? Vejam o abismo em que nos metemos e para o qual nos empurrou a Lava Jato, que nunca viu distinção entre caçar corruptos e cassar direitos fundamentais, fazendo do ódio à política o combustível a inflamar consciências.
Ora, quem destrói, ainda que possa alegar bons propósitos, o arcabouço legal que nos deu a democracia, não a ditadura, está fazendo a aposta na ditadura sob o pretexto, então, de nos revelar a verdadeira democracia —mais ou menos como Vélez Rodríguez, essa figura patética, quer ver "a verdadeira história" contada nos livros didáticos. A propósito: considero obrigatória a entrevista concedida a esta Folha, nesta quinta (4), pelo advogado Marcelo Nobre.
Uma atmosfera tóxica ameaça a vida democrática quando o STF recebe, em sessão solene, o apoio de entidades que representam a sociedade civil. E notem que não estou aqui a contestar a necessidade do ato ou a menosprezar a sua importância. Dois dias antes, Luís Roberto Barroso, membro do tribunal, havia participado de um seminário em que anteviu a perda de legitimidade da corte caso esta não vote de acordo com o alarido de parte das ruas. No caso, ele deixou claro que só uma escolha é cabível ao Supremo: arbitrar contra, na votação da ADC sobre o artigo 283 do Código de Processo Penal, o que dispõe o inciso 57 do artigo 5º da Constituição, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Trata-se de cláusula pétrea. Dane-se!
Conversas sobre golpes só prosperam quando aqueles que deveriam proteger as instituições, e vale também para a imprensa, se dispõem a pegar pedras para depredá-las. Aí qualquer figurante de quinta categoria, alçado a ator principal, se sente estimulado a ir aos bivaques para bulir com granadeiros. Em contexto novo, é preciso, sim, que nos demos conta de que "o preço da liberdade é a eterna vigilância".
Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”
O GLOBO - 05/04
Paulo Guedes a cargo da articulação política é solução equivocada
Mal sabendo da crise que estava prestes a eclodir em Brasília, dei a meu último artigo, publicado há duas semanas, o título “Presidencialismo de improvisação”. Tivesse o artigo sido escrito na semana passada, em meio à ruidosa e desajuizada escalada de hostilidades entre o Planalto e o Congresso, o título talvez pudesse ter sido “Presidencialismo de confrontação”.
É bem possível que a forma desastrada com que o governo deu início às negociações com o Congresso já tenha condenado a reforma previdenciária a ser bem mais acanhada do que poderia ter sido. O certo é que o clima excepcionalmente favorável, de harmonia e colaboração, que se estabelecera entre o governo e os presidentes da Câmara e do Senado, foi perdido. E não será fácil restaurá-lo.
O estremecimento nas relações do Planalto com o Congresso deu novo alento às resistências à reforma. Os que a ela se opõem mostram-se agora bem mais aguerridos. E até dispostos a tentar barrar partes importantes da proposta do governo já na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), antes mesmo da sua tramitação na Comissão Especial e no plenário da Câmara.
Por sorte, a crise da última semana de março parece ter sido contornada, pelo menos por ora, com a celebração de um armistício pautado por gestos de reconciliação de lado a lado. E, nos segmentos mais lúcidos e ponderados do governo, ganhou força a percepção de que, além da incontrolável propensão ao destempero de Jair Bolsonaro, há algo de profundamente errado na forma com que o Executivo vem conduzindo sua relação com o Congresso.
Em audiência no Senado, na semana passada, o ministro da Economia reconheceu que estava havendo uma “falha dramática” do lado do governo. E, no próprio Planalto, os ministros militares começam a reconhecer que a articulação do Palácio com o Congresso não está funcionando e que a Casa Civil não está cumprindo seu papel. O ministro Santos Cruz, que responde pela Secretaria do Governo, não poderia ter sido mais franco: “O Onyx, como gaúcho da fronteira, não tem perfil conciliador” (“Valor”, 29/3).
Reconhecer com todas as letras que a articulação do Planalto com o Congresso não está funcionando foi um grande avanço. O problema é que, em face desse diagnóstico essencialmente correto, o governo está contemplando uma solução improvisada e altamente problemática para corrigir a deficiência: deixar a articulação com o Congresso a cargo do ministro Paulo Guedes.
Sobram razões para desaconselhar essa suposta “solução”. É bom lembrar que o ministro da Economia tem hoje sob sua alçada vasto leque de atribuições que, até dezembro, justificavam a existência de nada menos que quatro ministérios de porte: Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento, Indústria e Comércio e Trabalho.
Conciliar tais atribuições com a concepção e a tramitação de uma proposta tão complexa como a da reforma da Previdência já tem sido um desafio mais do que extenuante. Especialmente agora, quando perspectivas menos promissoras para a economia brasileira nos próximos meses passaram a exigir do ministro dedicação ainda mais intensa à condução da política econômica.
É completamente despropositado esperar que, além de dar conta de tudo isso, o ministro possa se desincumbir a contento das intrincadas articulações políticas requeridas para, ao longo de muitos meses, levar adiante a aprovação da reforma previdenciária, num Congresso fragmentado em pelo menos duas dezenas de partidos em que os líderes têm pouca ou nenhuma ascendência sobre suas bancadas.
Não bastassem todas essas dificuldades, há ainda que ter em conta argumentos adicionais, de ordem política, que apontam para a imprudência de se deixar o ministro da Economia exposto na linha de frente das negociações com o Congresso.
Tendo feito o diagnóstico correto, o governo precisa entender que sua articulação com o Congresso não pode ser entregue ao ministro da Economia. Trata-se de função indelegável da Presidência da República que, até o momento, verdade seja dita, não conta com quem possa desempenhá-la com sucesso.
Valor Econômico - 05/04
A expectativa de crescimento da economia para este ano vem murchando, sistematicamente, desde o início do governo e caiu para um percentual abaixo de 2% no último relatório Focus, do Banco Central. Hoje a mediana das expectativas é de uma expansão de 1,98% do Produto Interno Bruto (PIB). Na visão do ministro da Economia, Paulo Guedes, só uma reforma da Previdência Social de impacto como a apresentada pelo Executivo, com uma economia estimada de R$ 1 trilhão nos próximos dez anos, poderá viabilizar outras reformas - como a tributária, a abertura da economia - e tirar o país da mediocridade, elevando a taxa de crescimento da economia para a faixa de 4% ao ano.
Para ter uma ideia do tempo perdido pelo Brasil, a taxa média de crescimento econômico da década atual foi de 0,6%. Nos últimos 30 anos, foi de 2,2%. Sempre abaixo do PIB potencial, o que significou o país abrir mão de prosperidade em nome de sabe-se lá o quê.
O resultado é visível nos mais de 13 milhões de desempregados, no desalento dos jovens e em uma sociedade empobrecida, em que 40 milhões de pessoas estão fora do mercado formal de trabalho. Vivem de bico.
O ministro da Economia contou, certa vez, que aceitou o posto depois de considerar três premissas: o presidente da República, mesmo com suas idas e vindas, apoiaria o seu programa econômico liberal; a classe política, a despeito das dificuldades de aceitação das imperativas limitações fiscais, acabaria entendendo o desafio que lhe está colocado; e a mídia, que não viu o fenômeno eleitoral que foi Jair Bolsonaro, no devido tempo apoiaria a reforma da Previdência.
O governo poderia ter optado pela aprovação da proposta deixada por Temer, que daria uma sobrevida ao regime atual.
O caminho escolhido por Guedes, porém, foi o de produzir um projeto amplo, ousado e com soluções definitivas para o futuro, como o regime de capitalização sugerido no projeto de emenda constitucional da Previdência. Segundo ele a PEC, se aprovada, será capaz de reverter em poucos anos a insustentável trajetória da dívida pública bruta.
O debate na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na quarta-feira, mostrou, porém, uma total descoordenação da base de apoio do governo no Congresso. O ministro ficou exposto à rinha da oposição, que pegou as primeiras filas e lotou a lista de inscrições para perguntas e apartes.
Ali os parlamentares dos partidos de oposição fizeram barulho e cometeram deselegâncias com o ministro, mas não foram capazes de conduzir um debate rumo a uma solução. Guedes, de pavio curto, devolveu com ironias e respostas duras.
Criticado pela proposta de reforma dos militares, considerada muito generosa se confrontada com o projeto que aperta as aposentadorias do INSS, Guedes passou a bola para os deputados. "Cortem vocês. Por que vocês não cortam? Vocês têm medo?", reagiu.
Não é o futuro, mas o aqui e o agora que estão indo para o brejo
O Congresso é soberano para decidir o quão fundo pretende mergulhar para resolver de vez os desequilíbrios da Previdência. A tendência tem sido a de fazer reformas "meia-sola". Foi assim nos governos de FHC, Lula e Dilma. Cada um criou uma restrição à explosão das aposentadorias, mas não houve solução duradoura para um sistema que está condenado, segundo o ministro.
Para uma reforma meia-sola, a resposta da economia será a estagnação ou um crescimento muito modesto, ao redor de 1,5% ao ano, estima ele.
Guedes acena com o paraíso lá adiante e fala com entusiasmo de "uma agenda belíssima" que se viabilizaria com a reformas da Previdência e trabalhista que ele defende.
"Se passar uma reforma branda, não teremos potência para fazer a outras, para levar adiante a reforma tributária que vai simplificar e reduzir impostos, e para lançar o regime de capitalização." Este regime, por sua vez, seria criado sem a contribuição patronal por um prazo de 20 anos. Com isso, ele vislumbra uma explosão de empregos.
"A empregabilidade dos jovens de 16, 17 anos vai ser de 100%. O Chile ficou 30 anos sem ter Previdência com contribuição patronal, cresceu em média 6% ao ano nesse período, gerou emprego e melhorou a vida de todo mundo", argumenta Guedes.
Enquanto discute a reforma da Previdência - ontem Bolsonaro fez um importante movimento de aproximação com as lideranças políticas -, o governo não consegue estabelecer um roteiro para as contas primárias do setor público. Guedes disse, no entanto, que está tranquilo no curto prazo, pois conta com uma massa de recursos para transitar por uma política fiscal que reduza o ímpeto de crescimento da dívida pública como proporção do PIB enquanto soluções estruturais não aparecem.
Ele calcula apurar cerca de R$ 280 bilhões entre este e o próximo ano, sem contar com a cessão onerosa. Desses, R$ 80 bilhões viriam das privatizações, e R$ 126 bilhões, da devolução antecipada de recursos do BNDES para o Tesouro Nacional. O Tesouro tem um estoque de R$ 80 bilhões em instrumentos híbridos de capital e dívida (IHCD) emitidos em favor de bancos federais, que também devem ser devolvidos à União.
A dificuldade de construir uma aliança política para avançar nas reformas está condenando o presente, não só o futuro do país. É o aqui e o agora que estão indo para o brejo!
O GLOBO - 05/04
O tempo passou, e o chavão da ‘defesa do pobre’ foi desmascarado; daí os ataques pessoais ao ministro
As mais de seis horas da sabatina do ministro da Economia, Paulo Guedes, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, sobre a reforma da Previdência, serviram para mostrar a falta que faz uma base parlamentar efetiva do governo para defender no Legislativo suas causas. Por isso, Paulo Guedes ficou exposto a um pelotão de fuzilamento de oposicionistas, PT e PSOL à frente, sem uma defesa à altura.
Mais importante que isso, porém, foi a demonstração dada por parlamentares da oposição de que seu discurso envelheceu. Continuam usando os mesmo chavões nos ataques ao que chamam de um projeto “contra o povo”, um repeteco do discurso do período do governo de FH (1994-2002), em que lulopetistas se opuseram também a mudanças necessárias na Previdência.
Depois, PT e aliados estiveram no Planalto por 13 anos, quando foram forçados a realizar algumas adaptações na Previdência, no caso, do funcionalismo público.
Também se envolveram em pesadas falcatruas, junto a grandes empresas e bancos, que antes demonizavam. Empresários foram beneficiados com farto dinheiro público no BNDES subsidiado pelo contribuinte, e bancos jamais reclamaram das altas rentabilidades amealhadas no ciclo lulopetista de governos.
É com espanto que se ouve agora, no primeiro embate em torno do projeto da reforma da Previdência, petistas e aparentados repetindo a discurseira de antes de 2003, de que a reforma é feita para os “banqueiros” e patrões em geral. É o que se chama de memória seletiva: nada aprendem, lembram-se apenas do que convém.
Parece que não existe a Lava-Jato, em cujos processos está relatado, com detalhes, como a cúpula do PT e de partidos aliados articulou, ao lado de grandes empresas de engenharia, um assalto bilionário à Petrobras e a outras empresas públicas. O ex-presidente Lula não está preso por acaso.
O tempo passou, a crise da Previdência tornou-se mais grave, e o debate que transcorre há anos sobre o tema produziu, e continua a produzir, enorme quantidade de dados sobre a condenação à quebra financeira do sistema de seguridade. Lastreado no regime de repartição (a contribuição dos mais jovens ao INSS é que paga os benefícios aos mais velhos), o sistema tende de forma inexorável à falência, impulsionado pelo fenômeno demográfico do envelhecimento da população.
É impossível a oposição reunir argumentos substantivos contra a reforma. Resta, então, o discurso de chavões político-ideológicos. Sempre foi assim. Inaceitáveis são os termos com que o deputado Zeca Dirceu (PT-PR) — filho do ex-ministro José Dirceu, mensaleiro condenado e preso por corrupção — se dirigiu ao ministro Paulo Guedes. Ferem o decoro nos debates no Legislativo, mas servem para comprovar a impossibilidade de a oposição ser convincente nos ataques à reforma.
Ficou sem resposta a afirmação de Guedes de que, enquanto se gastam R$ 700 bilhões em aposentadorias, destinam-se apenas R$ 70 bilhões para a educação. Descuida-se das novas gerações. Há muitos dados,também, para mostrar que o pobre já se aposenta ao 65 anos, a fim de receber um salário mínimo. Enquanto castas do funcionalismo — como as do Legislativo — ganham R$ 28 mil mensais, como disse o ministro. Este é o debate a ser travado com sindicatos de servidores que se tornaram braços petistas, por meio da CUT. As reações à reforma indicam quem está defendendo privilégios.
FOLHA DE SP - 05/04
Cada lado acha que só a sua, digamos, proposta para o Brasil está certa
No Brasil do passado, havia o partido da situação e o partido da oposição, e seus adeptos eram chamados de simpatizantes. Veja bem, simpatizantes —e não antipatizantes, embora, às vezes, alguns demonstrassem mais aversão ao partido adversário do que afinidade com o seu próprio. Mas, tendo crescido entre partidários do PSD (o partido do governo, das raposas mineiras e dos proprietários rurais) e da UDN (o da oposição, dos “homens de bem” e da classe média urbana), posso garantir que eles viviam em razoável harmonia. Seus líderes se xingavam nos comícios, mas a briga raramente descia do palanque.
De uns tempos para cá, não há mais adversários. Há inimigos, e um quer exterminar o outro. Cada lado se arroga a falar em nome do Brasil, como se só a sua, digamos, proposta estivesse certa. Nesse sentido, os dois lados estão cada vez mais parecidos.
Um deles, o atualmente no poder, tem conseguido juntar todos os seus críticos num vasto aglomerado de esquerdistas-comunistas-marxistas, incluindo políticos, ministros de STF, ecologistas, professores, vários jornalistas, a Folha e a TV Globo. Não muito diferente do que esteve por longo tempo no poder, para quem seus críticos compunham um, idem, aglomerado de coxinhas-golpistas-fascistas, incluindo políticos, empresários, a Lava Jato, o Ministério Público, a Polícia Federal, praticamente os mesmos jornalistas, a Folha e a TV Globo.
Uma amiga minha, de esquerda, acredita que a facada em Bolsonaro foi mesmo armação, com a participação do povo de Juiz de Fora, dos cirurgiões do Albert Einstein e do exército israelense. Outra, de direita, acredita até hoje na lenda do kit gay e da mamadeira de piroca e está convicta de que não houve ditadura militar.
As duas não se conhecem. Estou pensando em apresentá-las. Se não se matarem, arriscam-se a se tornarem amigas de infância —que é a idade mental política de ambas.