Há quem veja no filhote Simba um tirano que odeia as minorias
Anos atrás, se me perguntassem qual era o livro que eu mais vezes tinha lido na vida, não saberia responder. Há autores —Evelyn Waugh, Jane Austen, Machado, Eça, os russos de praxe etc.— que releio com frequência.
Hoje, não haveria qualquer dúvida: “O Rei Leão”. Fazendo contas de cabeça, já visitei a savana umas cem vezes por escrito. E outras cem só com o filme.
A culpa é do meu filho, que, aos quatro anos, desenvolveu uma paixão por Simba e Mufasa —e um repúdio intenso por Scar, o vilão da história. Haverá algo de errado nisso?
Já respondo. Mas, antes de responder, convém relembrar de que falamos.
Estamos na selva. Mufasa, o rei leão, teve um filho, Simba, que será seu herdeiro. Quem desespera com isso é Scar, seu tio. Para usurpar o trono, Scar e uma quadrilha de hienas vão matar Musafa e tentar o
mesmo com Simba.
Não conseguem. Simba, que consegue fugir e crescer no exílio, acabará por regressar à terra dos leões para vingar o pai, matar Scar e recuperar o trono.
Que existe alguma violência na história, ninguém duvida: o tipo de violência que é possível observar nos documentários da BBC sobre a vida selvagem, onde as preocupações igualitárias não têm vez. Mas será que “O Rei Leão” é uma história fascista?
A pergunta tem sido formulada por aí no momento em que há uma nova versão nas salas. Dan Hassler-Forest, colunista do Washington Post e professor universitário de estudos culturais, é uma das vozes mais enfáticas: se existe moral no “Rei Leão” é que os fracos devem curvar-se perante os fortes.
Os fortes são Mufasa e o filho —uma metáfora de Donald Trump eIvanka, talvez; ou Jair Bolsonaro e o “embaixador” Eduardo, melhor dizendo.
Os fracos são Scar e as hienas. Scar, com seus maneirismos delicados, será uma caricatura gay. As hienas, convenientemente escuras, representam os negros e os latinos.
E quando Scar pretende tomar o trono para emancipar as minorias, o fascista de serviço não deixa, repondo a ordem e a autoridade.
O texto de Dan Hassler-Forest, para além de ser uma interessante confissão de loucura, é também representativo da hiperpolitização que se abateu sobre tudo que se mexe. Nem as histórias infantis escapam.
“A Bela Adormecida” é uma apologia da violação, com o beijo final (e não consentido) do príncipe enquanto a beldade dorme. “A Pequena Sereia” é uma exortação da misoginia e do sexismo, com a sereia a sacrificar a vida (marinha) por um homem (terreno).
E “Chapeuzinho Vermelho” é um convite à pedofilia, com o lobo a querer comer a menina.
Por outras palavras: nada é o que parece. Como nas perseguições das bruxas de Salem, em que uma cicatriz não era apenas uma cicatriz mas a marca indelével de Belzebu, as novas mentes puritanas, que só por piada se consideram “progressistas”, também vivem no terror permanente de que o diabo caminha entre nós.
Se as mentes puritanas fossem menos histéricas e mais humildes, talvez pudessem aprender alguma coisa com as crianças. Por exemplo, por que motivo essas histórias as encantam.
Fiz o teste com o meu Mussolini de quatro anos e mais três amiguinhos da mesma idade. As respostas são uniformes. Gostam do rei Mufasa porque ele é amigo e protetor do filho. Não gostam de Scar porque ele é um assassino. O mesmo vale para as hienas, que consideram falsas e mentirosas.
E, sobre a moral da história, não é o triunfo da força sobre a fraqueza que lhes interessa. Por mais reacionário que pareça, é o triunfo do bem sobre o mal —a dicotomia mais básica, e mais universal, da nossa civilização. Independentemente de cores, classes, sexos ou “identidades”.
Um ponto, porém, não deixa de me perturbar: o meu rapaz perde algum interesse em “O Rei Leão” quando Simba abandona o seu exílio —período em que vive sem regras e sem preocupações— para vingar o pai e reclamar o trono.
Pressinto que, para ele, trocar a boa vida na selva pelas responsabilidades da profissão e do dever foi uma péssima escolha de carreira.
Aliás, não é apenas pressentimento meu. Nas rotinas do cotidiano, sempre que eu lhe dito algumas obrigações (comer a sopa, escovar os dentes, dormir cedo etc.), a resposta dele é quase instintiva:
“Hakuna Matata!”.
Se eu fosse um puritano, diria que o principal perigo de “O Rei Leão” não é fazer do meu filho um fascista, mas um preguiçoso.
O que, bem vistas as coisas, sempre é uma hipótese mais civilizada.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
Muito bom.
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