Será eticamente aceitável viajar por ditaduras que não respeitam direitos humanos?
Nunca visitei Cuba. Nunca visitei o Irã. Nem a China. Nem Angola. Não tenciono fazer turismo na Venezuela ou na Arábia Saudita. Há pessoas que têm como critério nunca viajar para países onde é necessário tomar vacinas primeiro. O meu critério é outro: ditaduras. Não são a minha praia, mesmo que tenham boas praias.
Cuba é o melhor exemplo. Anos atrás, quase fui espancado quando me recusei a partir para Havana. Nas palavras imortais de uma amiga, Cuba só tem piada enquanto o regime durar. Depois, não vale a pena. Será uma Ibiza no Caribe.
Entendo o raciocínio: “ter piada”, no contexto, é poder circular numa ilha como circulamos no zoo. Nós estamos fora da jaula, comendo pipocas. Atrás das grades estão seres humanos que só podem fugir dali remando ou nadando.
Minha primeira objeção é moral: fazer turismo em ditaduras é uma forma de ajudar os ditadores. Também é uma forma de ajudar os habitantes dessas ditaduras, que precisam do turismo para a sobrevivência. Certo.
Mas o desconforto moral permanece: eu, cidadão livre, vivendo entre escravos, mesmo que os ajude. Não dá.
Mas as minhas reservas não são apenas éticas. São, à falta de melhor palavra, covardes. A minha “imaginação para o desastre” é uma maldição que nunca me abandona.
Há gente que teme vacinas, repito. Mas eu, olhando para o mapa-múndi, dedico-me a meditações mais prosaicas: o que será de mim se as coisas correrem mal na Argélia? Na Rússia? No Egito? Como confiar naqueles sistemas de justiça?
A minha paranoia é tão intensa que, mesmo viajando pelos Estados Unidos, sinto desconforto quando estou em estados com a pena de morte. Calma, gente. Não confundo um estado de Direito com estados sem direito. Mas há uma certa repugnância que não consigo evitar. E temor, ainda que irracional.
Pois bem: o New York Times resolveu partilhar o assunto com sete escritores de viagens. Será eticamente aceitável viajar por ditaduras que não respeitam os mais básicos direitos humanos? Todos os autores discordam das minhas premissas.
A escritora Noo Saro-Wiwa, por exemplo, defende que é preciso uma certa “dissonância cognitiva” quando deambulamos por lugares problemáticos. É a única forma de os tolerarmos e, já agora, de chegarmos às pessoas, às suas histórias, aos seus dramas.
O mesmo defende Pico Iyer: não seria pior para as populações desses países se vivessem em permanente isolamento? O contato com os estrangeiros é uma benesse quase humanitária.
É por isso que a escritora Dervla Murphy, magnânima, declara: ir ou não ir é uma questão de “consciência individual”. Não será ela a julgar os outros por fazerem viagens ao Egito ou... ao Brasil.
Descanse, leitor: não vou perder tempo com a observação. Uma “intelectual” que confunde o Egito (uma ditadura) com o Brasil (uma democracia) revela uma atrofia neuronal que não tenho competência para curar.
Mas vou fazer duas observações sobre a sabedoria dos sete autores.
A primeira, mais ou menos óbvia, é que eles confundem “turismo” com “reportagem”. Não são confundíveis. Turismo é lazer. Reportagem é testemunho. Viajar para o coração das trevas não é apenas uma questão de “consciência individual”.
É um dever de qualquer jornalista, sobretudo se ele tiver como propósito compreender e relatar a verdade.
A segunda observação, menos óbvia, é que os sete autores vivem nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Irlanda. E nenhum deles refletiu sobre o fato: a possibilidade salvífica de terem sempre o passaporte certo para poderem regressar a Londres ou a Nova York.
Não que isso seja garantia de nada: o meu passaporte europeu não me protege da paranoia.
Mas o que eu tenho a mais, eles têm a menos. Ah!, como seria bom chegar a um consenso e fazer férias, sei lá, no Marrocos.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa
desconheço ditadura que tenha respeitado os direitos humanos.
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