quarta-feira, maio 29, 2019

Sorte e azar - ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 29/05

Sinto-me azarado quando redescubro uma sistemática roubalheira desfigurando o sistema financeiro


Formam um idioma destinado a explicar eventos marginais as rotinas. Quando “a vida” nega ou dá mais do que se espera — uma loteria, por exemplo, entra em cena o dualismo azar ou sorte.

Travei conhecimento com essa linguagem quando minha avó Emerentina me pediu um palpite para o jogo do bicho. Vovó jogava no bicho diariamente e frequentava uma roda de pôquer de “gente educada” e “bem-vestida”, incapaz de uma “grosseria”. Um dia, ela me explicou essa aristocracia das cartas:

— Eles sabem perder, e só quem perde sabe ganhar. Ademais — continuou — é preciso jogar para se descobrir vivo ou morto. Minha avó sabia o que dizia. Seu primeiro marido foi assassinado à bala por um rival inconformado.

— Meu netinho — disse a um garoto de 8 anos — dê um palpite para o jogo do bicho.

— Como assim?

— Diga o nome de um bicho que você gosta, e eu vou jogar.

— Elefante! — pronunciei, orgulhoso porque estava usando na prática e na vida o que havia visto com admiração e alegria num filme de Tarzan no dia anterior.

No final da tarde, fui chamado por vovó e a encontrei na sala de visita muito bonita no seu austero vestido preto. Estava empoada e com cabelos cuidadosamente penteados. Fui recebido com um sorriso tão aberto como seus braços, nos quais eu caí para receber o incondicional afeto que nos abandona quando viramos adultos.

— Você acertou, deu elefante na cabeça! — disse, passando para minhas mãos uma moeda com a qual eu me entupi de chocolates comprados na esquina da nossa rua no Bar do Soares.

Criado num país no qual quem segue as leis, paga imposto e lê instruções é considerado um babaca, conforme ouvi numa pesquisa, confesso o meu inconformismo com a desobediência malandra e esperta como norma, vigente no espaço público. Quando atravesso uma rua movimentada e fico diante de um automóvel que aguarda minha passagem; ou entro numa fila na qual abrem caminho para o idoso que hoje sou, entendo que estou com sorte. Do mesmo modo e pela mesma regra, sinto-me azarado quando redescubro uma sistemática roubalheira pública desfigurando o sistema financeiro nacional.

Quando saio de casa para o trabalho, oscilo diante de um trânsito normal (quando tenho sorte) ou engarrafado (nos dias de azar). Ademais, enfrento a incerteza de não saber se as tais reformas sem as quais o Brasil vai acabar serão ou não aprovadas. Ou se o supremo magistrado da nação vai bosquejar mais uma crise. Aos 82 anos, eu ainda vivo num país que não se acertou com suas rotinas.

Sei, porém, do seguinte: minha vida em casa é mais previsível do que na rua. Em meio à pessoalidade, muitas vezes exagerada ao ponto de englobar o mérito, o lar ainda é mais seguro do que as decisões dos poderes da República. No nevoeiro das minhas dúvidas, não posso deixar de imaginar que a aprovação da reforma da Previdência será mais ou menos equivalente a acertar no elefante!

A experiência do menino transformou-se na obsessão profissional do estudante de sistemas culturais que são alternativos. Assim aprendi que nenhuma cultura suprime o idioma das coincidências, das fortunas e dos acidentes. Não existem sociedades perfeitas, aprendi, um tanto chocado, com um Lévi-Strauss que contrariava meus professores certos dos rumos da História Universal...

Poucas sociedades jogam tanto com a sorte como a brasileira. Poucas entram na nossa feroz jogatina com suas leis e instituições. E têm tanta familiaridade com a proximidade de um abismo social que é um flerte com o desastre. Somos, como diz meu ex-mentor, o brasilianista Richard Moneygrand, inimigos tenazes de nós mesmos.

Como não tenho e nem acredito que exista uma chave para o futuro — exceto a do risco e da boa-fé — sou um cultor da esperança.

Como tal, estou mais ou menos convencido de que, se fiz minha avó acertar no elefante, um dia vou ganhar na Mega-Sena. Então, entupido de dinheiro, irei inaugurar a Era da Filantropia no Brasil, tirando a pátria de uma piedosa e sovina caridade.

A quem possa interessar, informo que os diplomas de Harvard são escritos em latim.

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