terça-feira, agosto 21, 2018

O preço da procrastinação - EDITORIAL O ESTADÃO

O preço da procrastinação - EDITORIAL O ESTADÃO

Há reformas cuja oportunidade está passando e que, mais tarde, serão feitas provavelmente em circunstâncias piores. É o caso da reforma da Previdência


O Estado de S.Paulo - 21 Agosto 2018

Em 12 de maio de 1870, 18 anos antes da Abolição da Escravatura, Joaquim Nabuco, um dos mais brilhantes abolicionistas, fez um duro discurso em que censurou a omissão da Coroa em relação à escravidão. Àquela altura, como lembrou Nabuco, o Brasil era, “no mundo cristão, a única nação que tem escravos”, a despeito de uma opinião pública cada vez mais crítica a essa situação. A oportunidade para a Coroa resolver o que Nabuco reputou ser “a questão mais importante da sociedade brasileira” estava, portanto, plenamente dada – mas eis que o governo vacilou. Considerou que uma eventual emancipação do “elemento servil” poderia causar abalos econômicos e na ordem pública. Ao rebater esse argumento a favor da procrastinação, Nabuco ofereceu reflexões que transcendiam aquela importante discussão – e que deveriam servir para iluminar os governantes do Brasil hoje.

Para Nabuco, “o pouco serve hoje, o muito amanhã não basta”. Ou seja, o bom governante é aquele que não hesita diante dos grandes desafios e não deixa passar a oportunidade de fazer o que tem de ser feito, mesmo que a perspectiva, num primeiro momento, seja de muitas dificuldades e de eventuais desentendimentos; do contrário, segue o raciocínio, a mesma resolução, se tomada tardiamente, terá de ser muito mais grave e abrangente, com resultados todavia incertos. “As coisas políticas têm por principal condição a oportunidade; as reformas, por pouco que sejam, valem muito na ocasião; não satisfazem ao depois, ainda que sejam amplas”, discursou Nabuco, como se estivesse a falar com a classe política atual.

Pois é óbvio que há reformas absolutamente inadiáveis cuja oportunidade já está passando e que, mais tarde, terão de ser feitas provavelmente em circunstâncias muito piores, sobre as quais nenhum administrador ou líder político, por melhor que seja, terá qualquer controle. É o caso da reforma da Previdência.

Não fossem as irresponsáveis denúncias ineptas da Procuradoria-Geral da República contra o presidente Michel Temer, que saiu enfraquecido desse lamentável episódio, muito provavelmente a reforma da Previdência já teria sido aprovada, disso resultando um cenário bem menos tormentoso para a economia. Com isso, o próximo presidente, munido da força política que a eleição costuma conferir a seu vencedor, poderia concentrar seus esforços em outras medidas necessárias, mas bem menos desgastantes do que a reforma da Previdência.

A despeito das dificuldades, isso ainda é possível. Restam pouco mais de quatro meses para o final deste mandato, e tanto o presidente Temer como o atual Congresso poderiam se mobilizar para aprovar a reforma da Previdência, ainda que numa versão enxuta – com o estabelecimento de idade mínima e equiparação entre o regime de servidores públicos e o regime geral. O presidente Temer já mencionou, em mais de uma oportunidade, sua disposição de combinar com seu sucessor eleito uma forma de encaminhar a votação no Congresso.

Muitos dirão que se trata de uma quimera – sensação reforçada pelo fato de que poucos candidatos à Presidência demonstraram sólido compromisso com a reforma da Previdência. A maioria prefere, pelo contrário, defender a revogação do teto dos gastos – já que, sem a reforma da Previdência, é praticamente impossível cumprir aquele limite constitucional e manter a máquina do Estado em funcionamento.

No entanto, é justamente em momentos como este, em que a razão perde terreno para a empulhação populista, que é preciso resgatar os ensinamentos de Joaquim Nabuco – que esperava falar a verdadeiros estadistas. Se eles existem, é preciso que se apresentem, afinal, e tomem a iniciativa, mesmo ao custo de um eventual desgaste momentâneo, para defender o que Nabuco chamou de “grandes interesses coletivos do Estado”. Para aquele tribuno, o governo deve dirigir a maioria, e não estar a reboque dela – isto é, deve ser capaz de convencer a opinião pública da urgência de medidas amargas, e não vacilar diante da gritaria dos irresponsáveis que oferecem ao eleitor soluções fáceis para procrastinar a tomada de decisões difíceis, porém incontornáveis.

Refazendo o capitalismo - EDMAR BACHA

Refazendo o capitalismo - EDMAR BACHA

O GLOBO - 21/08

No regime idealizado pelos autores do livro, não há mais capitalistas no sentido corrente, de detentores de bens de capital


Está em curso um amplo debate sobre o futuro do capitalismo e da democracia em função da concentração de renda no topo da pirâmide social e dos avanços do autoritarismo e do populismo mundo afora. Pensadores de diversas áreas de conhecimento buscam alternativas que assegurem um sistema econômico e político mais equitativo e equilibrado do que o atual.

Livro recentemente lançado nos EUA, e que será publicado em português pela Cia. das Letras, é extremamente provocativo a esse respeito. Trata-se de “Uprooting Capitalism and Democracy for a Just Society” (“Desenraizando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa”). Seus autores são o economista da Microsoft e da Universidade de Yale Glen Weyl e o jurista da Universidade de Chicago Eric Posner.

Os autores explicam no prefácio que a motivação para o livro foi o contraste que eles constataram visualmente no Rio de Janeiro entre a riqueza do Leblon e a pobreza da Rocinha. Seu temor é que os países industriais caminhem para reproduzir esse mesmo padrão, numa espécie de Belíndia mundial.

Sua proposta para resolver esse problema é radical como diz o título do livro: trata-se de superar a propriedade privada tal como a conhecemos, por eles identificada com o monopólio.

Ao asseverarem que a propriedade é o monopólio, os autores fazem lembrar o socialista francês Proudhon, para quem a propriedade era o roubo. Mas Posner e Weyl não propõem substituir os capitalistas pelo Estado. Ao contrário, eles buscam dissociar a propriedade privada do mercado. Aí reside a grande novidade do livro, pois propriedade privada e mercado são normalmente tratados como se fossem irmãos siameses. Mas não para os autores, que buscam radicalizar o uso do mercado para lidar com as ineficiências e as desigualdades geradas pela propriedade privada.

Sua proposta é que os proprietários de bens de capital (terras, máquinas, estruturas etc.) tenham que declarar em registro público os preços desses bens, sendo esses preços de sua livre escolha. Mas com duas importantes restrições. Sobre os valores declarados, os proprietários pagam um imposto, semelhante ao atual IPTU, a uma taxa média que os autores estimam em 7% ao ano. Segundo eles, esse imposto sobre o capital geraria uma arrecadação de cerca de 20% do PIB, suficiente para garantir uma renda básica digna a todos cidadãos.

Ainda mais importante, aos preços declarados pelos proprietários, qualquer pessoa terá o direito de comprar os bens de capital. Assim, enquanto o imposto faria com que o proprietário tendesse a subestimar o preço do bem, a obrigação de vendê-lo, e ao preço declarado, faz com que ele tenda a declarar um preço honesto.

Esse mecanismo, uma espécie de leilão permanente dos bens de capital, garantiria que eles fossem possuídos por aqueles que deles possam fazer o uso mais produtivo a cada momento. O mecanismo garante equidade (via imposto) e eficiência (via leilão), sem prejudicar o investimento como arguem os autores.

No regime econômico idealizado pelos autores, não há mais capitalistas no sentido corrente, de detentores de bens de capital sobre os quais têm uso monopólico. Todo capitalista passa a ser uma espécie de posseiro. Eles retêm o direito ao uso do bem, mas têm que vendê-lo caso alguém ofereça um preço maior do que o seu por ele.

Trata-se de uma bela utopia. Se terá efeito prático, somente o tempo dirá. O fato é que já causa sensação entre os leitores do livro, que contém outras propostas, também radicais mas sempre baseadas no mercado, para lidar com as iniquidades dos sistemas eleitorais, o poder dos conglomerados financeiros, as restrições à imigração, o uso abusivo de dados pessoais por parte dos gigantes da internet.

“Radical Markets” é um livro cuja importância para repensar o capitalismo rivaliza com o best-seller de Thomas Piketty, “O capital no século XXI”.

Edmar Bacha é economista

Plano Haddad de revanche - CARLOS ANDREAZZA

Plano Haddad de revanche - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 21/08

Haddad tem ideias particulares muito elaboradas sobre o que seja democracia. Ele engana, mas é transparente


Autossuficiente, a estratégia político-eleitoral de Lula — também brilhante, ética à parte — tem como uma das perigosas consequências a subestimação daquele escolhido para lhe ser cavalo. Há tempos escrevo que o ex-presidente, senhor e âncora do tabuleiro, concebera e dominara um jogo em cujo fim colocaria seu representante, quem quer que fosse entre os petistas, no segundo turno. Nunca tive dúvida de que assim será. Mas é na análise desfulanizada — soberba, afinal acomodada — do método eleitoral lulopostista que se desdobra o risco de não se avaliar se o indicado, por ora capacho de um presidiário, pode ir além.

Convém estudar Fernando Haddad. As circunstâncias lhe são favoráveis. Sim, é verdade: poderia ser qualquer lulista, e o ungido avançaria ao segundo turno. Isso não significa que a escolha não decorra de cálculo. Uma obviedade: a indicação é componente fundamental da estratégia de Lula; não marco de seu fim. Ou alguém pensa que ele pensava que poderia concorrer à Presidência? Na exemplar briga de advogados havida no coração de sua banca, Lula nunca teve dúvida sobre sacrificar Sepúlveda Pertence. Sua defesa sempre foi política. Entre alguma medida cautelar, como prisão domiciliar (que poderia ser percebida como exceção em seu benefício), e permanecer em cárcere até a eleição, desde a cadeia vendo sua inelegibilidade formalizada, jamais hesitou sobre ficar no lugar em que melhor se vitimizaria. Daí por que tampouco cogitou antecipar-se à oficialização de sua inelegibilidade para apontar Haddad como o Lula de 2018. Para quê? Ele precisa do evento por meio do qual a Justiça Eleitoral se tornará adversária, também ela agente da concertação institucional elitista que trabalha para impedi-lo de voltar a presidir o Brasil. E então, ato contínuo, Haddad — Haddad será: é Lula, é Lula, é Lula.

Ocorre, contudo, que Haddad — ao contrário de Dilma Rousseff — existe; tem existência própria. Chego ao ponto. Ele é — será — corpo para duas operações. Não à toa se fez circular que seria uma espécie de petista com cara de tucano. Há ciência nessa formulação. Haddad, um acadêmico, tido como alguém aberto ao diálogo, limpa a imagem mais pesada do petismo sindicalista. O novo PT possível. E não sem alguma sorte. Em São Paulo, por exemplo, cresce inesperadamente, muito beneficiado, por efeito de oposição, pela percepção eleitoral de que João Doria abandonou a prefeitura da capital sem qualquer realização. Doria revitalizou Haddad, que disputará a Presidência com razoável base eleitoral de partida no mesmo município cujos cidadãos, não faz dois anos, desprezaram-no. Essa é a primeira operação — plástica, no caso — a que seu corpo se submete. Lifting?

A segunda, uma transfusão, ainda terá vez e se dará no Nordeste, lá onde Haddad é perfeitamente o que precisa ser para Lula ser: um desconhecido. Um elemento — de acordo com os princípios do lulopostismo — a ser construído, superfície plana para depósito dos votos que o ex-presidente transfere, naquela região, sem quase prejuízo derivado de sua condição de preso. E assim se planta a “ideia Lula” na fé daqueles cerca de 30% aos quais comunica: em parte com o Haddad revigorado no maior colégio eleitoral do país; em outra com a transmissão de votos lulistas em grande monta provenientes do aparelhamento do Bolsa Família, maior programa de cadastramento do mundo, como propriedade político-eleitoral do PT.

Haddad, pois, será — já é — Lula. Mas também é Haddad, como expressa o programa de governo que concebeu. Estão lá, publicamente assumidos, todos os compromissos de vingança. Contra a democracia representativa, contra, portanto, o Parlamento, que derrubou Dilma, investe na democracia direta e na ameaça de nova Assembleia Nacional Constituinte — com a evidente pretensão de esvaziar o Congresso por meio de Legislativo paralelo. Contra a imprensa, aquela que apoiou o golpe, a palavra de ordem é controle social para, por meio da sociedade civil organizada (pelo comissariado), regular — tutelar, claro, democraticamente — os meios de comunicação. Há muito mais. Contra o Judiciário, por exemplo: um projeto declarado de desforra.

Atenção a Haddad. O escolhido tem ideias particulares muito elaboradas sobre o que seja democracia. Ele engana, mas é transparente.