domingo, janeiro 14, 2018

Os intangíveis - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 14/01

Meu primeiro curso de economia foi de "economia brasileira", como aluno ouvinte. Matéria da graduação da FEA-USP ministrada por José Roberto Mendonça de Barros no segundo semestre de 1986.

José Roberto, profissional com carreira muito exitosa, tanto na academia –estudos sobre história econômica e economia agrícola– quanto no setor privado –lidera há anos sólida empresa de consultoria–, ficava a cargo da disciplina mais interessante e complexa da grade da graduação. Éramos apresentados à história econômica brasileira do período do café, a partir de 1860, aproximadamente, até a época atual, no caso, os conturbados anos 1980.

O jovem físico (isto é, eu) achava, como é comum entre os físicos, que o desenvolvimento de uma sociedade resultava do domínio das técnicas mais avançadas e da produção de bens mais complexos. Achava que o orçamento da Nasa e do Pentágono e a política de compras do governo americano eram responsáveis pelo desenvolvimento daquela sociedade.

Era entusiasta da reserva de mercado de informática. Essa política pública era muito popular entre os físicos à época. Lembro-me de meu professor da disciplina de "fenômenos aleatórios em física" entusiasmado com os computadores que produzíamos. O que o desanimava era o custo: "Samuel, temos um problema de custos...".

Perguntei a José Roberto sobre a reserva de mercado. Sorrindo para o jovem físico e sabendo que iria desapontar, falou: "Nessa área, o maior valor adicionado não está nas máquinas, no hardware, mas sim nos programas, no software. É aí que o ganho se encontra. A reserva de mercado obrigará nossos programadores a trabalhar com as piores máquinas. Não vai funcionar".

José Roberto, em 1986, sabia o que muito economista não consegue entender até hoje.

A esquerda (mas não somente a esquerda) tem particular dificuldade de entender que o crescimento não é produzir coisas tangíveis. Talvez a leitura, por gerações e gerações, de "O Capital", obra escrita no início da segunda Revolução Industrial, e a referência obrigatória a diversos escritos de Lênin –autor do auge da segunda Revolução Industrial, aquela do aço, das grandes siderúrgicas e seus gigantescos altos-fornos, das usinas hidroelétricas e do motor a combustão interna–, tenham moldado essa visão de mundo.

Desenvolvimento econômico ficou associado a produzir navios, locomotivas, carros e armas –tanques, canhões, grandes encouraçados etc.

Lembro-me de minha infância e de minha avó horrorizada com o fato de os atravessadores ficarem com toda a margem de comercialização de um litro de leite. De fato, rápida consulta à internet indica que um litro de leite na porteira da fazenda custa por volta de R$ 1, enquanto na prateleira do supermercado sai por uns R$ 2,5. Naquela época, com pior infraestrutura e sem os ganhos da tecnologia de informação, essa diferença deveria ser ainda maior.

Foram necessárias muito reflexão, aula de microeconomia e introspecção para que o jovem físico se convencesse de que um litro de leite na prateleira de um supermercado é produto muito distinto do que um litro de leite na porteira da fazenda. E que, de fato, há muito trabalho para retirar o leite da fazenda e colocá-lo certificado, com prazo de validade, na prateleira de um mercado a 50 metros da casa do consumidor.

Infelizmente boa parcela das políticas de desenvolvimento econômico adotadas nos últimos anos é informada pela visão pobre descrita neste artigo. Repetimos erros e desperdícios.

Do pedalinho ao viaduto - GUILHERME FIUZA

REVISTA ÉPOCA

O Brasil está brincando de passar a mão na cabeça de bandido simpático para ver se salva a lenda populista


O Viaduto Dona Marisa Letícia leva ao paraíso. Não o bairro paulistano, mas o Nirvana mesmo. O lugar onde não há culpa, só prazer. Exemplo: o contribuinte brasileiro (você) está pagando US$ 3 bilhões aos americanos pelo assalto de Lula à Petrobras. Enquanto isso, o próprio Lula é convidado para uma animada partida de futebol com Chico Buarque – uma espécie de celebração à delinquência, provando de uma vez por todas que o crime compensa, se tiver a embalagem certa. A única injustiça é você pagar e não ser convidado para jogar também.

Aí a maior cidade da América Latina inaugura uma obra viária com o nome da recém-falecida esposa do maior assaltante da história nacional. Criminoso este já condenado e, agora, em vias de ser preso. Detalhe: a própria homenageada, antes de falecer, estava sendo investigada como cúmplice do marido em seus crimes de corrupção passiva – sendo os mais visíveis deles o do tríplex em Guarujá e o do sítio em Atibaia, aquele que tinha os pedalinhos personalizados “Lula & Marisa”. Os autores da homenagem devem ter imaginado que quem já batizou pedalinho pode batizar viaduto sem problema nenhum.

É disso que o Brasil está brincando nos dias de hoje: passar a mão na cabeça de bandido simpático para ver se salva a lenda populista. Está dando certo. Existe por exemplo uma horda de indignados com o desabafo comovente do mesmo Chico Buarque, dando conta de que não consegue mais andar nas ruas do Leblon sem ouvir o bordão “vai pra Cuba, viado”. É mesmo uma grosseria. Resta saber onde estariam os grossos se o cantor não tivesse virado marqueteiro de bandido. Possivelmente estivessem remoendo em silêncio a sua grossa insignificância.

É um enigma insondável essa compulsão de alguns grandes artistas por causas vagabundas. Em Hollywood há uma penca de estrelas, também de inegável talento, comprometidas com a ditadura sanguinária da Venezuela – todos fingindo que o chavismo é a redenção dos pobres do Terceiro Mundo. Assim como os falsos heróis brasileiros, são personalidades que não precisariam dessas lendas fajutas, por já serem, eles mesmos, figuras lendárias (graças à sua própria obra). Ou seja: renunciam à grandeza para besuntar a reputação de verniz falso. Poderia ser altamente pedagógico se, entre um e outro “vai pra Cuba, viado”, surgisse um “se olha no espelho, querido”.

Enquanto houver gente para propor e para tolerar um viaduto homenageando a primeira-dama do petrolão, esse espelho vai sempre refletir um líder revolucionário em lugar do oportunista melancólico. E esse oportunismo faz escola. Entre os candidatos a reabilitar o PT do maior assalto da história estão também procuradores, juízes e outros fascinados com os ganhos fáceis proporcionados pelo tal verniz de esquerda – cuja falsidade se constata num simples olhar para Lula ou Maduro: picaretagem não tem lado, muito menos ideologia.

Rodrigo Janot, de triste memória, está sendo convocado pela Polícia Federal para depor sobre a farsa da delação de Joesley – na verdade uma conspiração tosca para tentar devolver o poder aos companheiros. Entre os cúmplices da malandragem malsucedida estão ministros do STF como Edson Fachin, hoje também conhecido como Edson Facinho, dada a celeridade sem precedentes com que homologou o truque mambembe – contando com a altiva cobertura da companheira presidenta da Corte. Aí você fica sabendo que as provas de Mônica Moura (alguém se lembra dela?) contra Lula e Dilma ficaram sete meses paradas no Supremo – e constata até que ponto pode chegar o altruísmo para com os protagonistas da lenda.

Personagens soltinhos da silva como Dirceu, Dilma e agora até o lendário mensaleiro Pizzolato (obrigado, companheiro Barroso) estão conspirando à vontade e falando pelos cotovelos, com o caixa cheio para promover suas micaretas revolucionárias. Enquanto isso, os outrora diligentes investigadores da Lava Jato – destaque cheio de purpurina para o mosqueteiro Dartagnol Foratemer – estão fazendo comício no Twitter e cuidando, também eles, de se besuntar da lenda salvacionista à prova de espelho.

Ou o Brasil sobe o viaduto das panelas acelerando para ver se chega ao paraíso ou mostra com todas as letras que futebol de bandido é no presídio.

Uma breve defesa do cromossomo Y - VILMA GRYZINSKI

REVISTA VEJA

O conceito de igualdade foi carregado nas costas do homem branco


O poderoso de Hollywood vê uma reportagem que exalta partes corporais de uma atriz iniciante, manda chamá-la para um teste, pede para ver as tais partes. Tornam-se amantes, e ela aparece em muitos filmes dele.

Harvey Weinstein ou Cecil B. DeMille? O segundo, é claro. A atriz era Julia Faye e a parte anatômica eram os pés, fetiche do diretor de ego de proporções bíblicas, como seus filmes mais conhecidos. Era também republicano, macarthista (amigo do Joe McCarthy original) e até antissemita, pelo menos antes de descobrir que a mãe era de origem judia. “Vocês estão aqui para me agradar, nada mais interessa”, dizia, à la Trump, para atores e extras, a quem tratava com igual desprezo, passando-lhes sermões de horas (“Posso deixar Jesus se sentar? Estou segurando ele há um tempão”, pediu numa dessas “fideladas” o intérprete cansado de Judas Iscariotes em Rei dos Reis).

Quem se lembra dessas coisas certamente não falou nada durante a festa de premiação do cinema em que muitas das mulheres mais lindas do planeta usaram vestido preto para enterrar o Homo hollywoodianus branco e eleger a apresentadora negra Oprah Winfrey, contemplada com o prêmio que leva o nome de DeMille, como a próxima presidente dos Estados Unidos. Dificilmente as muitas contradições desse espetáculo da elite da beleza e da fama teriam resumo mais realista do que o comentário de um leitor algo exasperado diante dos decotes até a cintura das militantes mulheres de preto: “Elas mostram os peitos e não querem que a gente olhe”.

No mundo habitado pela “gente”, um decote infinito numa mulher bonita desencadeia olhares e talvez até alguma ­outra coisa, mas as noções fundamentais do que é certo e do que é errado, geralmente “como meu pai ensinou”, não permitem que o envolvido faça alguma coisa mais séria do que a si mesmo de bobo. Quanto mais enraizadas essas noções, que também podem ser chamadas de superego, mais os homens são seguros de si mesmos e do papel que a força física superior lhes confere. Proteger os mais fracos e até se sacrificar por eles não são responsabilidades fáceis. Faça-se o “teste do Titanic”. Das 2 200 pessoas a bordo, salvaram-se 700. Entre as 425 mulheres, foram 316 sobreviventes. Dos 1 690 homens, 338. Leonardo DiCaprio não estava entre eles.

Em defesa do cromossomo Y — descoberto por uma mulher, a bióloga americana Nettie Stevens —, também não custa lembrar o arco histórico que começa em algum ponto da Grécia antiga e desemboca nos conceitos contemporâneos de igualdade. No lugar onde nasceram a democracia, a filosofia e os fundamentos do pensamento científico, as mulheres ficavam trancadas no gineceu e todo homem com alguma posição social só queria saber de seu paidika, ou seu garoto. Tipo o roteirista bonitão por quem a atriz decadente Norma Desmond se apaixona e que termina assassinando em Crepúsculo dos Deuses, o filme em que DeMille faz o papel de si mesmo. Sem os cromossomos Y e sua extraordinária trajetória no mundo ocidental, seria possível uma mulher protagonizar em 1950 a autorreferente versão hollywoodiana de uma tragédia grega?

O último da fila - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA

Da etnia taushiro, habitante das profundezas da Amazônia peruana, só restavam quinze sobreviventes, poucas décadas atrás, e eles foram caindo um a um. Uma criança foi morta por uma onça enquanto dormia; duas outras morreram por picadas de cobra; um rapaz sangrou até morrer quando caçava na floresta. Enfim, a malária levou o chefe do grupo e só sobraram dois de seus filhos, Juan e Amadeo. Juan morreu em 1999, também de malária, e Amadeo se converteu no último sobrevivente de sua pequena nação, e no único, neste vasto mundo e alhures, falante de seu idioma. Amadeo vive hoje em Intuto, um posto avançado do governo peruano à beira do Rio Tigre, perto da fronteira com o Equador e longe do recanto da selva onde viviam os taushiros. Com presumíveis 70 anos (ele não sabe o ano em que nasceu), passa os dias numa rede, frequentemente embriagado; às vezes recita versículos da Bíblia traduzidos para sua língua natal.

A história de Amadeo, o último falante da língua taushiro, é tema de uma reportagem recentemente publicada pelo The New York Times, assinada pelo correspondente do jornal no Peru, Nicholas Casey. De nações que morrem, e com elas seu idioma, a história mundial está cheia. No Peru, 37 línguas desapareceram no século XX, informa a reportagem. Subsistem 47, metade das quais ameaçada. A Wikipedia lista dezenove desaparecidas no século XXI (verbete “extinct language”), nem sempre faladas por povos perdidos na selva. Fazem parte da lista um dialeto de pescadores da Escócia, desaparecido em 2012, e uma variante do português praticada na região de Cochin, na Índia, desaparecida em 2010. A originalidade da reportagem de Casey está em dirigir o foco não a uma comunidade, mas ao último falante, alguém que sobrou, descartado como um solitário fragmento no espaço, depois de um asteroide ter atingido seu planeta.

A desgraça dos taushiros teve início quando a área em que viviam foi invadida por exploradores de seus seringais. Forçados a trabalhar como escravos na extração do látex, até então eles nem tinham nome — eram identificados por palavras equivalentes a “pai”, “mãe”, “irmão”. Para distingui-los, os patrões lhes conferiram nomes espanhóis, e foi assim que Amadeo virou Amadeo, e seu irmão virou Juan. Nos anos 1970, junto com a Occidental Petroleum Corporation, empenhada em prospectar petróleo na região, vieram missionários evangélicos que, no propósito de ensinar a Bíblia, começaram por pesquisar a língua dos taushiros. Amadeo, então com 20 e poucos anos, foi escolhido como professor — e objeto de pesquisa — da missionária-linguista Nectali Alicea. A linguista anotava as palavras que ele lhe ditava, ao mesmo tempo em que procurava penetrar na sintaxe do misterioso idioma. Com tais métodos, produziu uma tradução de trechos do Gênesis e do Novo Testamento que se constitui na única literatura existente em taushiro.

Ter sido peça estratégica nesse trabalho exacerbou a relação afetiva de Amadeo com seu idioma. Também lhe exacerbou a angústia de se ver como o último falante, uma condição que, segundo Nicholas Casey, representa para ele um pesado fardo. Uma nação morre dentro dele. Também lhe pesa não ter mais com quem conversar no idioma nativo, desde a morte do irmão. Amadeo fala um espanhol rudimentar. Mesmo que o falasse melhor, certas intimidades e certas nuances não se expressam senão no idioma ouvido da mãe quando se ainda é um bebê. O idioma está enclausurado nele, sem ter como sair. Não existe parceiro que, ao emitir os mesmos sons, proporcionaria o aconchego do pássaro ao ouvir de volta o canto lançado aos ares. O caso de Amadeo é de uma solidão única e irremediável.

O ano de 2018 se inicia com dramas de variada índole. Os Estados Unidos se defrontam com a inédita questão da sanidade mental de seu presidente. A Coreia do Norte faz acenos de paz à do Sul sem tirar o dedo do gatilho nuclear. Multidões nas ruas abalam o regime dos aiatolás no Irã. O papa enfrenta conspirações dos cardeais conservadores. A Venezuela prossegue na política de extermínio da população como meio de salvá-la do capitalismo. O Brasil velho de guerra, de corrupção e de atraso, com a gente errada no comando, aprofunda-se na corrupção e no atraso. O distante, isolado e esquecido drama de Amadeo é maior que tudo isso, na opinião do colunista, na medida em que diz mais sobre a trajetória do bicho­-homem no universo.

Hollywood, a contradição e o ridículo - BERNARDO SACADURA

Jornal Observador - Portugal - 13/01
A mesma Hollywood que aplaude de pé o discurso de Oprah Winfrey é a que aplaude de pé Roman Polanski, alguém que confessou ter drogado e abusado sexualmente de uma criança de 13 anos.

Hollywood é um poço sem fundo de contradições, um verdadeiro mundo à parte do comum dos mortais. O escândalo sexual da indústria de cinema americana e a histeria que rodeia o discurso de Oprah Winfrey nos Globos de Ouro, tornam esta ideia ainda mais evidente.

Oprah, a cara mais conhecida e poderosa da televisão americana, que tem uma história de vida extraordinária, de constante superação de dificuldades, uma prova viva da mobilidade social promovida em economias abertas e livres, proferiu um discurso nos Globos de Ouro que já foi por muitos considerado como a rampa de lançamento da sua candidatura presidencial em 2020.

Um discurso para ser aclamado por quase todos deve ser vazio, inconsequente, leve, idealmente com um toque anti-Trump e que apenas passe mensagens no qual todos acreditamos. O discurso foi um tremendo sucesso, preencheu todos os requisitos. Afinal, não deve haver ninguém que seja a favor do assédio sexual, nem que aprove a conduta dos homens que abusaram da sua posição para obterem favores sexuais, nem que aprove o controlo da imprensa. No mundo normal isto é verdade, no mundo de Hollywood não é assim.

A mesma Hollywood que aplaude de pé o discurso de Oprah é a que aplaude de pé Roman Polanski quando ganhou o óscar de melhor realizador pelo filme Pianista em 2003. Este homem foi o mesmo que confessou ter drogado e abusado sexualmente de uma criança de 13 anos. Uma criança que estava a fotografar para um trabalho para uma revista americana. Quando percebeu que iria ser preso de vez no âmbito deste processo, fugiu para a Europa e continua a ser perseguido pela justiça americana para que seja preso. O caso deste realizador é paradigmático, junta a posição de abuso de poder, drogas, assédio sexual e ainda pedofilia. Mas não é por isso que deixou de ser aplaudido de pé pelos mesmos homens e mulheres que agora gritam #MeToo.

A referência à Hollywood Foreign Press Association, passando a mensagem de que nos EUA a imprensa está a passar por um momento complicado, numa óbvia referência a Donald Trump, acentua a contradição em que aqueles senhores vivem. O Presidente amado por Hollywood – Barack Obama – foi considerado a maior ameaça na história dos EUA à imprensa livre. O seu governo perseguiu jornalistas, colocou escutas em telemóveis de forma abusiva, teve acesso indiscriminado a emails e correspondência privada. O Governo de Obama processou seis colaboradores do seu Governo sob acusação de espionagem. Até Obama isto apenas tinha acontecido três vezes em toda a história americana. Mensagens como “this is the most closed, control freak administration I’ve ever covered” (David E. Sanger, jornalista do The New York Times) ou “it’s turning out to be the administration of unprecedented secrecy and unprecedented attacks on a free press.” (Margaret Sullivan, editora do The New York Times) são referentes à administração Obama e não a Trump ou Bush.

É tudo tão ridículo e triste que custa a crer ser verdade. Com tantas contradições destes senhores, continua a ser extraordinário que olhemos para eles como algo mais do que entretenimento.

O novo rebaixamento, versão Charles de Gaulle - ROLF KUNTZ

ESTADÃO - 14/01

Além de ser rebaixado mais uma vez e apontado como devedor um tanto perigoso, o País poderia ter virado assunto de piada em todo o mundo se a Standard & Poor’s (S&P) tivesse agido com menor discrição


A nova reprovação do Brasil poderia ter vindo com uma pitada de grotesco e seria, portanto, muito pior. Além de ser rebaixado mais uma vez e apontado como devedor um tanto perigoso, o País poderia ter virado assunto de piada em todo o mundo se a Standard & Poor’s (S&P) tivesse agido com menor discrição – ou menor caridade – ao anunciar o novo corte da nota de crédito do País. Uma explicação mais detalhada teria exposto um quadro patético. Mais uma vez seria confirmada a opinião, atribuída ao presidente francês Charles de Gaulle, sobre a falta de seriedade no Brasil.

Mas o informe sobre a reavaliação foi pouco além das questões técnicas, sem avançar nas trapalhadas e indecências do dia a dia dos leilões de votos no Congresso Nacional. A demora na aprovação da reforma da Previdência foi um dos fatores enumerados para justificar a reclassificação do crédito brasileiro. Sem essa e outras mudanças de grande alcance o governo terá dificuldade para consertar suas contas, conter o endividamento e evitar o perigo de insolvência dentro de alguns anos. Esse é o argumento básico. Há referências a dificuldades políticas, a incertezas quanto às eleições e até à corrupção, mas os detalhes mais cômicos, humilhantes e desmoralizantes foram omitidos.

Um relatório mais completo e impiedoso teria incluído, por exemplo, as dificuldades do presidente Michel Temer para nomear um ministro do Trabalho. A nomeação de uma figura indicada pelo PTB é parte das barganhas para garantir os votos necessários à reforma da Previdência. O primeiro escolhido, o deputado Pedro Fernandes (PTB-MA), foi vetado pelo ex-presidente José Sarney por ser ligado a uma facção adversária do grupo do velho cacique. O ex-presidente negou a interferência. Não precisaria tripudiar. Mas ninguém levou a sério essa negação.

O presidente Michel Temer engoliu o veto e subordinou uma decisão federal a uma rivalidade política no Estado do Maranhão. Não apenas se rebaixou. Rebaixou também o governo central e o interesse nacional supostamente implícito naquela escolha. Vencido nesse lance, tentou partir para uma solução mais segura. Recebeu em Brasília o presidente do PTB, Roberto Jefferson, o primeiro delator do mensalão. Terminada a reunião, o próprio Jefferson anunciou a indicação de sua filha, a deputada Cristiane Brasil, para chefiar o Ministério do Trabalho.

A futura ministra nem chegou a tomar posse. Um juiz federal de primeira instância concedeu liminar contra a nomeação, em nome do princípio constitucional da moralidade administrativa. Explicação: a deputada havia sido condenada em processo na Justiça do Trabalho. Não seria adequada, portanto, para assumir um ministério ligado à área. O governo recorreu à instância imediatamente superior e a posse foi novamente impedida.

Mas a Justiça teria competência para anular uma nomeação decidida pelo presidente no exercício de sua função? Analistas debateram a questão, houve divergências e, é claro, nenhum efeito prático. Até sexta-feira à tarde a nomeação continuava emperrada.

Até esse ponto, o presidente, a deputada e o PTB continuavam à espera de novas decisões da Justiça, sem admitir o encerramento do episódio. Se quisesse apenas nomear um bom ministro, o presidente Michel Temer poderia ter examinado uma lista enorme de pessoas competentes em questões trabalhistas e escolhido, a partir daí, um nome considerado conveniente para comandar o ministério. Não faltariam pessoas qualificadas dentro e fora dos partidos. Mas não se tratava apenas de preencher de forma satisfatória um posto do primeiro escalão.

De fato, as qualidades e competências da figura escolhida nem seriam os detalhes mais importantes. A decisão envolvia muito mais que uma nomeação política e administrativa. O presidente da República deveria, em primeiro lugar, garantir a um partido aliado uma presença adequada em seu governo. No tal presidencialismo de coalizão, hoje levado à versão extrema, a administração – direta e indireta – é uma grande pizza para ser dividida entre os aliados. Em segundo lugar, seria preciso cuidar do assunto com carinho especial, como parte da barganha pelos votos a favor da reforma da Previdência. Partidos da base têm direitos, mas nenhuma obrigação de votar com o governo.

Se os diretores da S&P quisessem publicar uma nota explicativa mais completa e mais clara, leitores de todo o mundo poderiam conhecer as dificuldades do presidente Michel Temer para nomear um ministro do Trabalho. Seriam informados de como nomeações desse tipo entram na compra de votos a favor de reformas importantes para as finanças públicas e, portanto, para a estabilidade fiscal e monetária, o crescimento econômico do Brasil e, em longo prazo, para a segurança dos credores do Tesouro Nacional.

O maior obstáculo à saúde fiscal deste país, poderiam concluir alguns desses leitores, é menos de ordem técnica e econômica do que política. Os mais curiosos poderiam descobrir, em outras leituras, como o Judiciário interfere na política salarial do funcionalismo, impedindo, por exemplo, o adiamento de um reajuste e uma economia de muitos bilhões num ano de enormes dificuldades. Alguns se perguntariam por que os legisladores se comportam como se fossem isentos de qualquer obrigação quanto à sustentabilidade das contas públicas. Talvez acabassem atribuindo a uma reforma do sistema partidário uma importância maior, em longo prazo, que as da Previdência, dos tributos e da engessada estrutura orçamentária.

Se a nota da S&P fosse bem mais completa, os leitores poderiam, enfim, ter-se divertido com um cenário comicamente duplo – do pessoal da agência decidindo a reclassificação do País, enquanto o presidente Michel Temer se atolava no impasse judicial da nomeação da deputada Cristiane Brasil.

* Jornalista

2018, ano crucial para 2019-2022 e muito além - PEDRO MALAN

O Estado de S.Paulo - 14/01


Nos últimos 71 anos o Brasil escolheu pelo voto direto oito presidentes: Dutra, Getúlio, Kubitschek e Quadros, antes do regime militar; Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma desde então. Nada menos que quatro dentre eles não concluíram o mandato para o qual foram eleitos. Nos últimos 91 anos, apenas três presidentes civis, eleitos diretamente pelo voto popular, passaram a faixa presidencial a outro presidente também civil e eleito diretamente pelo voto popular: Kubitschek, Fernando Henrique e Lula. Desses três, por fim, apenas um – Lula – não só transmitiu a faixa ao sucessor, como também a recebeu de outro civil, também eleito pelo voto direto.

Seriam as dores do crescimento de uma jovem democracia – que desde 1930 alternou dois períodos centralizadores/autoritários (1930-1945 e 1964-1985) e dois democráticos (1946-1964 e 1985 até o presente)? Segundo Jorge Caldeira em seus trabalhos, o Brasil teve experiências com eleições desde a colônia e o Parlamento funcionou durante o Império e na Primeira República.

O que tornou especialmente tumultuosas as últimas décadas, a meu ver, é o fato de o Brasil ter evoluído vertiginosamente, dos anos 30 até meados dos anos 80, na direção de tornar-se uma das maiores sociedades de massas urbanas do mundo. Hoje é a terceira maior democracia, após Índia e EUA, sem nenhum concorrente democrático à terceira posição.

Nossa população urbana passou de 36% (de um total de 52 milhões de pessoas) em 1950 para os atuais 86% (de um total de 208 milhões). Trata-se de um aumento, em termos absolutos, de 9,5 vezes, que não tem paralelo no mundo – nem sequer na China e na Índia. É impossível entender por que o Brasil experimenta há pelo menos três décadas o que venho chamando de pressão estrutural por crescentes gastos públicos – que se expressa em seu crescimento acima do crescimento do PIB, da inflação e da arrecadação – sem referência a essa transição demográfica e à pressão extraordinária dessas massas urbanas sobre governos em termos de investimentos em infraestrutura física e infraestrutura humana. O debate recente vem mostrando, ademais, que a esses fatores deve ser adicionada a força dos corporativismos dos setores públicos e privados na defesa de seus interesses. A conta simplesmente não fecha.

Essa longa introdução vem a propósito da crescente literatura sobre o que Dani Rodrik chamou, em livro de 2010, de O Paradoxo da Globalização, cujo subtítulo a muitos encantou: Por que mercados globais, o Estado e a democracia não podem coexistir (assim mesmo, uma afirmação, e não uma pergunta). Entre nós, André Lara Resende e Demétrio Magnoli já escreveram – e muito bem – sobre o tema. É, com efeito, espantoso o crescimento – sobretudo desde Brexit e Trump, em certas eleições europeias e com o advento de tiranias variadas no mundo em desenvolvimento – da literatura sobre a relação entre globalização, soberania nacional, democracia e sobre as dificuldades de escolher a combinação adequada entre elas.

Os estudos mais cuidadosos mostram que o fenômeno tem raízes mais profundas – e vem sendo gestado há décadas. Em sua raiz estaria o vertiginoso processo de mudanças tecnológicas e de inovação que Schumpeter já havia denominado destruição criadora e considerou o elemento essencial do que chamava a máquina capitalista. A natureza do fenômeno afeta profundamente tanto o mercado de trabalho (em detrimento dos de menor qualificação) quanto percepções sobre injustiça na distribuição de renda, riqueza e oportunidades – tanto em escala doméstica quanto na dimensão global, entre países.

Se é verdade que o processo de mudança tecnológica é irreversível e tem dimensão global, ele impõe necessariamente restrições ao espaço para exercício de soberania nacional na dimensão econômica. Não é menos verdade, no entanto, que a política permanece, como antes, local – decidida no âmbito do Estado nacional. E nesse campo da política doméstica a questão não é tanto a disputa entre os que almejam o poder, que sempre serão muitos, mas a ampliação das demandas por aquilo que esses numerosos postulantes ilusoriamente prometem àqueles que se veem prejudicados, ou relegados, pelo processo de globalização e mudança tecnológica.

É também impressionante o volume da literatura dedicada à crise da democracia, expressão sem dúvida dessa angústia e desalento: Democracia: o Deus que Falhou, Além da Democracia, O Fim da Democracia. O fenômeno deveria causar estranheza aos que conhecem a frase famosa de Churchill sobre a democracia: “... o pior dos regimes com exceção de todos os outros que foram experimentados de tempos em tempos”. Afinal, apenas em democracias há a aceitação da diversidade, o reconhecimento da legitimidade do conflito, a absoluta liberdade de opinião, os ideais de tolerância, da não violência e de renovação gradual da sociedade pelo livre debate de ideias. Apenas democracias permitem antepor limites ao poder, mesmo quando esse poder é o da maioria.

O ano de 2018 será absolutamente crucial para o Brasil e para seu futuro – não apenas para o quadriênio 2019-2022, mas para muito além. Quase tão importante quanto o resultado das urnas, em outubro, será o teor das narrativas, dos discursos e promessas dos principais candidatos. Além do compromisso com os valores da democracia e da República, espera-se compromisso com a ética e a moralidade da administração pública e nas relações público-privadas. Espera-se dos candidatos a demonstração de que compreendem a natureza dos desafios a enfrentar na área das finanças públicas. Não porque equacioná-los constitui um fim em si mesmo, mas porque sem isso não haverá como o Brasil alcançar as taxas de crescimento da renda e do emprego, que constituem o nada obscuro objeto de desejo da maioria dos brasileiros.

* Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

Liberal não é onda - PAULO GONTIJO

O Globo - 14/01

Desinchar este Estado que falhou conosco, para que se concentre no essencial, é promover, sim, justiça social. E por aí deveria surgir a discussão das privatizações


Se, por um lado, nossa saída do Partido Social Liberal representou um baque no primeiro momento — afinal, o projeto de renovação da legenda seguia o curso planejado apesar de todos os desafios —, por outro, a ruptura vem mostrando a força do Livres e dos movimentos liberais, estejam eles instalados em partidos ou não. O quanto as ideias de liberdade vão triunfar nas urnas já em 2018 ainda é uma incógnita, mas é fato que o discurso encontra cada vez mais eco na sociedade e estará presente nos debates. O ano que passou deu provas disso. Mas por que estamos sensibilizando as pessoas em todo o país?

A pauta liberal passa pela economia e pelos costumes. Com o Brasil em lenta recuperação após crise tão severa, o componente econômico toca profundamente as pessoas, pois impacta diretamente a vida dos brasileiros em um momento em que o Estado é colocado em xeque pela falta de capacidade de investimentos. O modelo intervencionista dos últimos anos faliu na prestação dos serviços mais básicos à população. Essa é a realidade dos que sofrem com a insegurança, dos que não têm esgoto em suas casas e dos que atravessam noites em filas de hospitais. Por isso, são urgentes reformas.

Desinchar este Estado que falhou conosco, para que se concentre no essencial, é promover, sim, justiça social. E por aí deveria surgir, por exemplo, a discussão das privatizações. Como bem lembra a economista Elena Landau, que com muita honra aderiu ao nosso movimento, a própria Constituição define o que é vedado à iniciativa privada e o que é essencial. Não está lá escrito bem claro que saúde, segurança e educação são deveres do Estado e direitos de todos?

Há questões de comportamento que também precisam ser debatidas sob o mesmo prisma. Nós, do Livres, defendemos a revisão gradual da política de drogas, começando pela descriminalização da maconha. Sabe por quê? Consideramos que a prioridade do combate à violência deva ser a preservação da vida em um país onde ocorreram mais de 61 mil assassinatos em 2016, o pico da série histórica do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. E pior, sequer existe um Indicador Nacional de Investigação de Homicídios para o planejamento estratégico, diferentemente de outras nações. Ao contrário da caricatura que setores reacionários à esquerda e à direita tentam pintar, as pautas comportamentais do Livres são baseadas em evidências científicas, não em demagogia barata.

Ser liberal, portanto, não é onda passageira. É pensar políticas públicas de outra maneira. No Facebook, só o nosso movimento conta com quase 160 mil seguidores. Quando deixamos o PSL, já tínhamos conseguido renovar 12 diretórios estaduais e estávamos para atrair um grupo de jovens deputados alinhados aos nossos princípios. Infelizmente, alguns pegam carona se cobrindo de um superficial verniz liberal, mas não sobrevivem à história de suas práticas. Nós continuamos fortes e em busca de gente genuína, que não defenda liberdade só no nome ou da boca para fora. Aprendemos com nossos erros e nos mantemos convictos de que não existe solução para os nossos problemas fora da democracia. Fora dela, o que existe é barbárie.

Paulo Gontijo é presidente do Livres

A conta do Estado do bem-estar - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 14/01
O Estado do bem-estar social, criado pela Constituição de 1988, consome tantos recursos quanto seus equivalentes em países desenvolvidos. No entanto, os serviços oferecidos aos cidadãos diferem visivelmente, e qualquer paciente de hospital público ou aluno da rede pública no Brasil intui logo que não está na Noruega – exemplo de Estado do bem-estar social que consegue ser muito mais eficiente que o brasileiro gastando menos em relação ao PIB.

A explicação para essa distorção, dada pelo secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Mansueto Almeida, ao jornal Valor, é apenas uma: o rombo da Previdência, que drena os recursos que deveriam financiar educação, saúde e outras necessidades sociais. Assim, é espantoso que alguns dos mais barulhentos defensores da manutenção do Estado do bem-estar social estejam igualmente na vanguarda da defesa do atual sistema previdenciário, que é deficitário porque estimula aposentadorias precoces e porque privilegia escandalosamente a elite do funcionalismo público. Essa situação traz graves prejuízos para o conjunto dos contribuintes, em vários aspectos.

O problema mais imediato é a necessidade de recorrer ao dinheiro dos impostos para cobrir o rombo da Previdência, que em 2017, até outubro, alcançou R$ 257 bilhões, 12% superior ao déficit de 2016. Um levantamento feito pela Folha de S.Paulo mostra, por exemplo, que em 2017, até outubro, cada servidor civil da União aposentado recebeu dos contribuintes incríveis R$ 63,3 mil, dinheiro que deveria ter sido destinado a outros fins – e o que não falta, no Brasil, são setores importantes carentes de recursos. Os impostos cobrem o déficit dos sistemas previdenciários público e do INSS, mas os grandes destinatários são mesmo os servidores inativos – os da União recebem 13 vezes mais do que os aposentados pelo INSS, enquanto os dos Estados ganham 8 vezes mais. Assim, está mais do que evidente que uma reforma da Previdência, para ser efetiva, deve atacar essa distorção.

É claro que os que hoje se dedicam a sabotar a reforma da Previdência não estão preocupados com o fato de que o déficit do sistema impede que as demais demandas sociais previstas na Constituição sejam atendidas. Ainda que a Previdência não tivesse tal rombo, a ambição do texto constitucional já seria bastante imprudente, pois, como dizia o economista Roberto Campos, “a Constituição promete-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos”. O fato é que, com a Previdência a mobilizar grande parte dos recursos públicos para sua solvência, pouco resta para fazer cumprir o que a Constituição promete.

O Brasil gasta o equivalente a 25,7% do PIB com o seu Estado do bem-estar social, enquanto na Noruega esse dispêndio é de 25,1%; na Alemanha, de 25,3%; e na Grã-Bretanha, de 21,5%. No entanto, mais da metade desse gasto no Brasil, informa o secretário Mansueto Almeida, é destinada à Previdência, que ficou com 13% do PIB em 2016, contra 6% para a educação e 4,5% para a saúde. Ou seja, investimos pesado no passado e muito pouco no futuro.

Como resultado, setores considerados essenciais pela Constituição ficam, na prática, com menos recursos. O Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, prevê saúde integral, gratuita e universal, mas apenas 50% do dinheiro gasto nesse setor é público. Mansueto Almeida compara com o sistema britânico, que não é integral – isto é, não cobre todos os procedimentos –, mas ainda assim 85% dos gastos com saúde na Grã-Bretanha são públicos.

A questão de fundo, portanto, é a própria viabilidade do Estado do bem-estar social tal como previsto na Constituição. É preciso aceitar o fato de que nem todos os benefícios e direitos gravados no texto constitucional resultam em ganhos para o País – ao contrário, as distorções graves em alguns setores, como a Previdência, chegam a comprometer a realização de todo o resto. Política social não pode ser resultado apenas de vontade; é preciso que sua implementação respeite a matemática, que costuma ser implacável com os imprevidentes.

Aumenta necessidade da reforma tributária - EDITORIAL O GLOBO

O Globo - 14/01


Trata-se de ponto nevrálgico para o futuro do país, por aprimorar carga tributária, distribuição de renda, capacidade de investimento do Estado e competitividade externa


O termo “custo Brasil” deixou de ser citado com frequência, mas o que ele significa jamais perdeu a importância, porque não se trata apenas de tornar o país atraente a investimentos, com a consequente criação de empregos e renda, mas impedir retrocessos no parque produtivo.

No tema, é referência a virada radical — e necessária — dada pela Alemanha, em 2003, sob o governo do social-democrata Gerhard Schröder, com o Plano 2010. Numa Europa em aceleração do processo de unificação econômica, já começando a englobar países do Leste, do ex-bloco soviético, o “custo Alemanha” incentivava a emigração de fábricas para países como a Polônia. A China também atraía linhas de produção, e não só alemãs.

Por isso, contra a visão ideológica clássica da social-democracia, Schöreder conseguiu viabilizar politicamente uma reforma trabalhista e previdenciária que lançou as fundações da Alemanha que resistiu à crise mundial e se firmou como a mais importante economia europeia, e umas das mais eficientes do planeta.

Consideradas as devidas dimensões e diferenças, o Brasil está no estágio daquela Alemanha dos anos 1990. Recente reportagem da “Folha de S.Paulo” mapeou a migração de empresas brasileiras para o Paraguai. Razões: custo bem mais baixo que o do Brasil, com a vantagem de que os dois países fazem parte do Mercosul. Como Alemanha e Polônia eram, e são, da UE.

Não há empresário brasileiro que não sonhe em ter as condições que oferece o Paraguai: os impostos são de Renda e de Valor Agregado, 10% cada, mas, se a empresa entrar no regime de exportação (maquiladoras), tudo se resume a 1% do faturamento; chega-se a pagar por energia metade do preço cobrado no Brasil; legislação trabalhista muito simplificada (nem a reforma da brasileira consegue equipará-la à legislação paraguaia); e o custo trabalhista é de apenas cerca de 30% do salário, cerca de um terço do brasileiro. Por isso, há uma espécie de corrida de empresas brasileiras para o Paraguai, que cresce em média 5% ao ano, há uma década. Apesar de crises políticas.

Há indústrias brasileiras de menor porte que, do Paraguai, conseguem competir com os chineses na Europa e nos Estados Unidos.

A questão do custo Brasil volta a ganhar realce porque, aprovada ou não uma primeira etapa da reforma da Previdência, será crucial colocar na pauta do Congresso, para valer, a reforma tributária, um ponto nevrálgico para o futuro do país, por aprimorar carga tributária, distribuição de renda, capacidade de investimento do Estado etc. E também competitividade externa.

Esta reforma é tema antigo. Discute-se, e nada é feito, devido ao emaranhado de interesses envolvidos. Mas a realidade empurra o país a tratar a sério a questão. Não apenas pelas evidências de que a economia brasileira é hostil aos investimentos produtivos, mas também devido a mudanças na realidade mundial.

A migração de empresas para o Paraguai é um dado. Há, também, a reforma tributária de Trump, que reduz a taxação das empresas de 35% para 21%, enquanto no Brasil ela é de 34%. Quer dizer, desincentivam-se investimentos de companhas americanas no país.

Ao menos não se está na estaca zero, porque há uma proposta competente no Congresso, relatada pelo deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). Não se pode perder tempo. A Alemanha entendeu o que tinha de fazer há 15 anos. E o Paraguai já pratica um novo modelo.

O custo dos Refis - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 14/01
Só de juros e multas que não foram cobrados de contribuintes em atraso beneficiados com os seguidos programas de parcelamento de débitos tributário, a União deixou de arrecadar R$ 176 bilhões nos últimos dez anos. Esse número dá a dimensão do impacto que esses programas, conhecidos como Refis, têm sobre as receitas do governo federal. É um valor que supera o déficit acumulado de janeiro a novembro do ano passado pelo Regime Geral de Previdência Social – que atende basicamente trabalhadores da iniciativa privada –, de R$ 172,7 bilhões.

Esta é a perda fiscal passível de aferição. Há outras que os seguidos programas desse tipo impõem ao Tesouro, mas que não podem ser calculadas com a mesma precisão. O mais pernicioso deles é o estímulo gerado por esses programas para que os contribuintes deixem de pagar os tributos em dia na certeza de que contarão com alguma forma de anistia, por meio de um novo Refis.

O levantamento das perdas em que a Receita Federal incorreu nos últimos anos foi feito por ela a pedido do Estadão/Broadcast. O estudo envolve apenas os descontos de juros e multas oferecidos pelos seguidos programas adotados nos últimos anos. Adicionalmente, a Receita estima em R$ 18,6 bilhões a perda anual decorrente da suspensão de recolhimento de tributos devidos por contribuintes que esperam um novo programa de parcelamento de suas dívidas.

É certo que programas de refinanciamento de débitos tributários representam um alívio para contribuintes cumpridores de seus obrigações fiscais, mas que foram temporariamente prejudicados por fatores fora de seu controle, como a crise econômica. Nesses casos, as facilidades de renegociação do débito e a redução de multas, juros e encargos propiciadas por programas como o Refis podem ser vitais para a preservação das atividades das empresas beneficiadas. Recuperadas, estas voltarão a recolher regularmente os tributos.

É certo também que o Refis produz uma receita adicional imediata para o Tesouro, pois os contribuintes que a ele aderem são obrigados a recolher um determinado valor no momento da adesão. Esse valor corresponde à primeira parcela da dívida renegociada.

Em tese, essa receita deveria repetir-se durante a vigência do acordo, caso os contribuintes que renegociaram seu débito recolhessem regularmente as demais parcelas. Ocorre, porém, que, segundo a Receita, metade dos contribuintes que aderem aos programas de parcelamento de débitos em pouco tempo deixa de recolher as parcelas devidas. Esses contribuintes são imediatamente excluídos do programa, mas, em muitos dos sucessivos Refis dos últimos anos, adquiriram o direito de renegociar os débitos antigos. São os contribuintes que a Receita chama de “viciados em Refis”.

“O Fisco acaba recebendo mais no ano (da instituição do programa), mas o que está fazendo é abrindo mão da arrecadação do ano seguinte”, diz o secretário da Receita, Jorge Rachid. Pior ainda, os contribuintes começam a apostar que no ano seguinte poderão deixar de pagar, porque o exemplo recente deixa claro que haverá novo Refis.

Do ponto de vista da concorrência, cria-se uma situação de desequilíbrio entre os contribuintes em dia com suas obrigações e os que, à espera de um novo Refis, deixam de recolher os tributos devidos no prazo de vencimento. O efeito é nocivo para o sistema tributário. “Entre um contribuinte que paga os tributos em dia e outro que logra êxito nesses parcelamentos, o último sai com vantagem competitiva”, disse ao Estado o professor de Direito Financeiro da USP Heleno Torres. “O primeiro, então, não vê nenhuma vantagem em ser um bom contribuinte.”

Só em 2017 houve cinco programas de refinanciamento de dívida tributária. Nos últimos dias, felizmente, o presidente Michel Temer vetou integralmente o projeto que permitia a renegociação de dívidas tributárias de micro e pequenas empresas, já beneficiadas pelo regime tributário especial do Simples Nacional, e vetou parcialmente a renegociação das dívidas do Funrural.

Segunda divisão - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 14/01

Diante do novo rebaixamento da nota de crédito brasileira, nenhum observador da economia nacional terá se chocado com outro lembrete de que o Orçamento do governo não só continua a se deteriorar como padece de males crônicos.

No curto prazo, não se trata de muito mais que um alerta, de resto ocioso. Mas, num eventual momento futuro de turbulência, o país estará fragilizado.

São mais do que sabidos os motivos pelos quais a agência Standard & Poor's considerou que o Brasil é hoje uma escolha mais arriscada para investimentos.

A dívida pública permanece em alta contínua, tendo atingido o equivalente a 74% do Produto Interno Bruto pelos critérios do Banco Central (na metodologia do Fundo Monetário Internacional, 82%). É o maior patamar entre as principais economias emergentes.

Tal escalada só será contida dentro de alguns anos, à medida que a receita de impostos cresça e a despesa federal se mantenha congelada, conforme o teto inscrito na Constituição. Este, porém, só será viável com a reforma da Previdência, hoje aposta incerta.

Se é verdade que herdou um caixa destroçado, o governo Michel Temer (MDB) também cometeu erros que ora tornam ainda mais difícil a administração das contas.

Ainda em 2016, estimou de modo imprudente que haveria aumento da arrecadação. A seguir, concedeu alegremente reajustes salariais generalizados aos servidores.

Foram parcos, ademais, os avanços em privatizações e concessões, que tanto remediariam a receita como poderiam favorecer investimentos e eficiência.

Depois do escândalo provocado pela delação da JBS, o presidente teve de dar prioridade à salvação de seu mandato, em detrimento da agenda reformista. Projetos de renúncia fiscal e outros favores prosperaram no Congresso, enquanto o redesenho da Previdência foi sendo desidratado e adiado.

Esgota-se o estoque de remendos e improvisos. É provável que em 2019 o governo fique incapaz de cumprir a regra constitucional que veda cobrir despesas correntes -pessoal, custeio e juros- com mais endividamento.

O rebaixamento da nota de crédito pode não ter efeitos notáveis no momento. As condições presentes da economia mundial, que oferece crédito abundante e barato, dão tranquilidade ao país. Será grave erro, porém, tomar por duradouro esse conforto.

Este governo e os partidos aliados, assim como os candidatos a governar o Brasil no ano que vem, fariam bem em assumir compromissos para evitar que a próxima administração esteja fadada a gerenciar a recidiva da crise.

Não sou racista, minha obra prova - WILLIAM WAACK

FOLHA DE SP - 14/01

Se os rapazes que roubaram a imagem da Globo e a vazaram na internet tivessem me abordado, naquela noite de 8 de novembro de 2016, eu teria dito a eles a mesma coisa que direi agora: "Aquilo foi uma piada —idiota, como disse meu amigo Gil Moura—, sem a menor intenção racista, dita em tom de brincadeira, num momento particular. Desculpem-me pela ofensa; não era minha intenção ofender qualquer pessoa, e aqui estendo sinceramente minha mão."

Sim, existe racismo no Brasil, ao contrário do que alguns pretendem. Sim, em razão da cor da pele, pessoas sofrem discriminações, têm menos oportunidades, são maltratadas e têm de suportar humilhações e perseguições.

Durante toda a minha vida, combati intolerância de qualquer tipo —racial, inclusive—, e minha vida profissional e pessoal é prova eloquente disso. Autorizado por ela, faço aqui uso das palavras da jornalista Glória Maria, que foi bastante perseguida por intolerantes em redes sociais por ter dito em público: "Convivi com o William a vida inteira, e ele não é racista. Aquilo foi piada de português."

Não digo quais são meus amigos negros, pois não separo amigos segundo a cor da pele. Assim como não vou dizer quais são meus amigos judeus, ou católicos, ou muçulmanos. Igualmente não os distingo segundo a religião —ou pelo que dizem sobre política.

O episódio que me envolve é a expressão de um fenômeno mais abrangente. Em todo o mundo, na era da revolução digital, as empresas da chamada "mídia tradicional" são permanentemente desafiadas por grupos organizados no interior das redes sociais.

Estes se mobilizam para contestar o papel até então inquestionável dos grupos de comunicação: guardiães dos "fatos objetivos", da "verdade dos fatos" (a expressão vem do termo em inglês "gatekeepers"). Na verdade, é a credibilidade desses guardiães que está sob crescente suspeita.

Entender esse fenômeno parece estar além da capacidade de empresas da dita "mídia tradicional". Julgam que ceder à gritaria dos grupos organizados ajuda a proteger a própria imagem institucional, ignorando que obtêm o resultado inverso (o interesse comercial inerente a essa preocupação me parece legítimo).

Por falta de visão estratégica ou covardia, ou ambas, tornam-se reféns das redes mobilizadas, parte delas alinhada com o que "donos" de outras agendas políticas definem como "correto".

Perversamente, acabam contribuindo para a consolidação da percepção de que atores importantes da "mídia tradicional" se tornaram perpetuadores da miséria e da ignorância no país, pois, assim, obteriam vantagens empresariais.

Abraçados a seu deplorável equívoco, esquecem ainda que a imensa maioria dos brasileiros está cansada do radicalismo obtuso e primitivo que hoje é característica inegável do ambiente virtual.

Por ter vivido e trabalhado durante 21 anos fora do Brasil, gosto de afirmar que não conheço outro povo tão irreverente e brincalhão como o brasileiro. É essa parte do nosso caráter nacional que os canalhas do linchamento —nas palavras, nesta Folha, do filósofo Luiz Felipe Pondé— querem nos tirar.

Prostrar-se diante deles significa não só desperdiçar uma oportunidade de elevar o nível de educação política e do debate, mas, pior ainda, contribui para exacerbar o clima de intolerância e cerceamento às liberdades –nas palavras, a quem tanto agradeço, da ministra Cármen Lúcia, em aula na PUC de Belo Horizonte, ao se referir ao episódio.

Aproveito para agradecer o imenso apoio que recebi de muitas pessoas que, mesmo bravas com a piada que fiz, entenderam que disso apenas se tratava, não de uma manifestação racista.

Admito, sim, que piadas podem ser a manifestação irrefletida de um histórico de discriminação e exclusão. Mas constitui um erro grave tomar um gracejo circunstanciado, ainda que infeliz, como expressão de um pensamento.

Até porque não se poderia tomar um pensamento verdadeiramente racista como uma piada.

Termino com um saber consagrado: um homem se conhece por sua obra, assim como se conhece a árvore por seu fruto. Tenho 48 anos de profissão. Não haverá gritaria organizada e oportunismo covarde capazes de mudar essa história: não sou racista. Tenho como prova a minha obra, os meus frutos. Eles são a minha verdade e a verdade do que produzi até aqui.

WILLIAM WAACK, 65, é jornalista profissional desde os 17; trabalhou em algumas das principais redações do país e foi correspondente internacional por 21 anos na Europa e Estados Unidos