segunda-feira, setembro 24, 2018

A morte do amadurecimento - LUIZ FELIPE PONDÉ


A morte do amadurecimento - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 24/09
O mundo marcha para o retardamento mental como opção pedagógica
Um amigo de meu filho, de 35 anos, me contou que numa reunião com professores e pais, na escola de seu filho de sete anos (escola esta frequentada por ele, assim como pelos meus filhos até o vestibular), um pai cobrou que na nota fosse levado em conta o conteúdo “dentro das possibilidades do seu filho”. Há uma recusa ao amadurecimento no ar.
Na mesma escola, anos atrás, numa reunião dessas, ouvi uma mãe cobrar da escola que “heroínas femininas fossem usadas em sala de aula para que as meninas fossem empoderadas”, e, da mesma mãe, “que a escola deveria dar mais atenção à África do que à história romana, grega, hebraica e mesopotâmica”. 
Pensei como deveria ser um saco, para uma professora, depois de um dia inteiro de aulas, ter que aturar pais metendo o bedelho no que não entendem e, literalmente, enchendo o saco.
Sim, o mundo está bem chato. O sapiens está saturado de ruídos. Espécie pré-histórica, evoluída num cenário do alto do Paleolítico, em meio à preponderância do silêncio, agora, com iPhones na mão, assola o mundo com opiniões. Falam muito da destruição do ambiente; temo que o sapiens se destrua falando demais.
Exemplos dessa pedagogia contra o amadurecimento já estão na universidade. E logo estarão nas empresas. Pais e psicólogos atacarão o RH das empresas com ameaças de processos jurídicos, como já ensaiam nas escolas e universidades, porque essas empresas não estarão levando em conta a “economia da autoestima” de seus filhos estagiários. 
Exagero? Não exagero. O mundo marcha a passos largos para o retardamento mental como uma opção pedagógica. Frase insensível à vulnerabilidade das pessoas?
Há um culto da vulnerabilidade por aí. Pais e profissionais cada vez mais fazem pressão para que as instituições de ensino relativizem normas de avaliação em nome de ficar “dentro das possibilidades” de seus filhos.
Entre as várias hipóteses possíveis, julgo que a raiva reprimida de ter que perder tempo, dinheiro e saúde cuidando dos filhos faz com que muitos pais exagerem nas provas de “amor e cuidado” com eles, exigindo que o resto do mundo os ame, como eles mesmos não são capazes.
Exagero? Talvez um pouco, mas não muito. Lanço mão de uma tática argumentativa chamada hipérbole (quando você exagera num argumento para defender uma hipótese que está aquém da afirmação exagerada), por causa do desespero que dá ver os pais destruírem a vida dos filhos fazendo deles zumbis adictos de formas institucionais de distribuição de autoestima. 
Fala-se muito de educação, mas ela já foi para o saco há muito tempo. A fúria de fazer o mundo melhor nos destruirá a todos. O esvaziamento dos vínculos familiares pressiona o Estado e as escolas para cumprir o papel de pais narcisistas e de saco cheio. Aliás, todo mundo está de saco cheio, o Sapiens não se aguenta mais. Uma espécie pré-histórica perdida na redes.
Entre 1990 e 2010, o termo “estudantes vulneráveis” passou de 55 referências para 1.136. De 2015 a 2016 houve  1.407 referências ao mesmo termo. A fonte é LexisNexis Database. Quem a cita é o sociólogo Frank Furedi, no seu mais novo livro, “What’s Happened To The University? A Sociological Exploration of its Infantilisation” (o que aconteceu com a universidade? Uma exploração sociológica de sua infantilização, ed. Routledge, 214 págs.), sem tradução no Brasil. Proponho a leitura para pais, professores e pesquisadores do assunto.
A conclusão do autor, que se dedica a esse campo, no mínimo, desde 2004, quando publicou seu “Therapy Culture” (cultura da terapia), também sem tradução no Brasil, é que ao optarmos por uma narrativa da vulnerabilidade, optamos por estudantes infantis. 
Numa linguagem exagerada, estamos criando uma sociedade de inseguros afetivos e cognitivos. Os idiotas da tecnologia acham que porque existem crianças de três anos que mexem em iPads, elas são mais inteligentes. Numa espécie de lamarckismo para idiotas, pensam que, como os pais usam muito iPads, os filhos nascem sabendo mexer neles.
Furedi devia ser leitura obrigatória para quem pede para a escola levar em conta, na avaliação, as possibilidades do filho. E o pior é que esse pai se acha o máximo. Um dos efeitos colaterais da maior escolaridade é que a pessoa fica menos cuidadosa em assuntos que não domina. Fiéis às bobagens fragmentadas que leem, enviesadas por modinhas do Face, esses pais jogam o amadurecimento dos filhos no lixo.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

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