O que faz com que duas pessoas aparentemente queiram devorar uma à outra num beijo em que as salivas se misturam?
Por que temos vontade de beijar uma mulher na boca por horas, engolindo a saliva dela?
Afinal, o que querem duas pessoas quando se beijam na boca? Essa questão me vinha à mente quando criança. O que faz com que duas pessoas aparentemente queiram devorar uma à outra num beijo em que as salivas se misturam?
Diretamente ligada a esta questão, uma outra que frequentava minhas indagações filosóficas infantis era: por que os homens chamam mulheres de "gostosas"? Sendo "gostosa" uma expressão usada para comida, por que, afinal, os homens aplicavam às mulheres?
Comecemos por esta (apesar de não ser a questão que me interessa propriamente). Estou longe de achar que a expressão "gostosa" seja errada ou "objetificante da mulher". Penso justamente o contrário: "gostosa" é um termo perfeito para se aplicar a um certo tipo de mulher, aquelas que nos fazem perder a cabeça.
Na verdade, o debate sobre a objetificação não me interessa. Afora o fato de que mulheres se sentem de fato gostosas quando gozam ou quando arrasam corações e vidas por aí, o termo "gostosa" é, exatamente, o que descreve a sensação que temos quando estamos diante de mulheres que temos vontade de "devorar sexualmente".
O verbo "devorar" pode, facilmente, ser substituído por "comer" ou "engolir". Lembro-me bem da primeira vez que entendi o significado de chamar uma mulher de gostosa. E esse entendimento tinha a ver com a vontade de comê-la ou engoli-la. A beleza dela se transmutava em desejo de assimila-la a mim mesmo.
Todos esses verbos, assim como a expressão "gostosa", nos remetem à ideia de gosto e de alimentação. Mulheres têm gosto e nos alimentam. Para quem as aprecia, esse gosto não é unicamente "físico".
O gosto de uma mulher é, também, metafísico. Por isso o poder de uma mulher inundar a vida de um homem: ele quer "comer" seu corpo e sua alma. Não é à toa que muitos antropólogos consideram o canibalismo indígena (o real, não o metafórico) um ato sublime e espiritual.
E aí voltamos à minha primeira indagação filosófica infantil: por que temos vontade de beijar uma mulher na boca por horas a fio, engolindo a saliva dela?
Claro que há algo relacionado ao "comer" a mulher desejada neste gesto. Ou "comer" qualquer pessoa desejada, obviamente. Não vou perder tempo aqui com questões periféricas como "gênero". Mas, haveria algo de metafísico nisso?
O filósofo e místico espanhol e mulçumano Ibn Arabi, nascido em Múrcia, Espanha, em 1165, e morto em Damasco, Síria, em 1240, escreveu uma obra (entre outras) dedicado ao amor ("Tratado do Amor") em que discorre sobre a natureza de vários tipos de amor, desde o mais natural, ao mais espiritual e místico.
Ibn Arabi é conhecido pelo impacto na tradição islâmica sufi e na mística islâmica como um todo. Um daqueles antídotos para quem pensa que o Islamismo seja uma religião de bárbaros. Aliás, o componente místico do Islã é de uma beleza avassaladora.
Vejamos um trecho específico sobre o beijo escrito pelo místico islâmico espanhol medieval: "Quando dois amantes se beijam intimamente, cada um aspira a saliva do outro, que penetra neles. Quando se beijam e se abraçam, a respiração de um se expande no outro e o hálito assim exalado penetra em ambos ao mesmo tempo".
Este trecho está na parte do tratado em que ele discorre sobre as relações entre o amor natural e o espiritual.
A ideia de Ibn Arabi é a de que ao engolir a saliva um do outro, ao respirar o hálito que sai da boca do outro e ao desejar de forma ardente esta mistura "promíscua" de elementos corporais íntimos, os dois amantes desejam estabelecer uma identidade única entre eles.
Misturar saliva e hálito representa, na análise poética do místico espanhol, essa partilha de intimidade para além de qualquer abstração vazia.
Quando desejo engolir a saliva de uma mulher ou respirar seu hálito com a minha boca, de forma ardente e apaixonada, estou dizendo a ela que gostaria de ser um com ela. De me fundir com ela. De assimilar a beleza que vejo nela e que me coloca nessa condição de desejar tê-la como parte do meu corpo. Por isso, o espírito em sua saliva me encanta.
Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
Numa terra de semianalfabetos quem lê meia dúzia de livros se jacta filósofo... de que escola mesmo?
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